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sábado, 15 de agosto de 2009

O Ombudsman no jornalismo atual

Meses após a criação do cargo de Ombudsman pela Folha de São Paulo, há 20 anos, uma piada circulava nos meios jornalísticos: “o Estadão já tem o seu ouvidor, falta a Folha arrumar o dela”. O chiste dizia respeito à alegada tendência do primeiro ocupante do cargo, Caio Túlio Costa (1989/1991), de reiteradamente criticar o jornal concorrente ou de comparar instisfatoriamente a cobertura que o jornal dos Mesquita fazia de determinado assunto em relação à oferecida pela Folha.

O gracejo me veio novamente à cabeça ao ler coluna do atual Ombudsman da Folha, Carlos Eduardo Lins da Silva, intitulada “A internet a serviço do jornalismo”. Como seu título indica, nela são elencados, nas palavras do jornalista, “ exemplos de como a internet pode contribuir muito positivamente para melhorar a qualidade do jornalismo e das relações entre a sociedade e seus governantes”.

Tais exemplos advêm do jornalismo norteamericano e não há qualquer correlação à atividade de imprensa no Brasil nem ao órgão em que Lins da Silva trabalha e o qual está incumbido de criticar, alegadamente em nome do leitor e do aperfeiçoamento do jornal. Essa omissão leva a curiosas distorções. Por exemplo: Lins da Silva afirma, corretamente, que “Há quem enxergue na internet um inimigo do jornalismo. É um erro conceitual e estratégico”. Mas tal afirmação não é correlacionada a exemplos recorrentes de profissionais que alimentam tal anacronismo, facilmente encontráveis entre alguns colunistas do jornal, destacadamente na outrora “nobre” página A-2. Perde-se, portanto, uma oportunidade efetiva de agir de acordo com as prerrogativas do cargo, criticando objetivamente aspectos preconceituosos e datados vigentes em setores do jornal.

Embora haja os que defendem a licicitude de tal prática, não considere correto que, dada sua posição de representantedo leitor, um Ombudsman ocupe uma coluna semanal com temas genéricos sem correlacioná-los às práticas do veículo em que trabalha. No caso particular do ouvidor da Folha, a tal discordância vem somar-se o receio de que a incursão por aspectos genéricos do jornalismo internacional funcione como sintoma de cerceamento das possibilidades de intervenção do Ombudsman no jornal e/ou de esgotamento da disposição crítica do próprio Lins da Silva em decorrência do efeito de tais limitações, tornadas evidentes na forma como a Folha vem sistematicamente ignorando suas sugestões, objeções e críticas. Ou seja, de fatores que apontam para a exaustão do modelo de ouvidoria jornalística representado pela adoção do cargo de Ombudsman pela Folha de São Paulo.


Marketing iluminista
A criação do Ombudsman, em 1989, mostrou-se uma bela jogada de marketing, de grande repercussão, numa fase em que o jornal acabara de perder alguns dos profissionais que, em cerca de vinte anos, transformaram um diário pouco expressivo num dos líderes de venda e – em grande parte graças à postura da Folha durante a campanha pelas “diretas já” – de credibilidade, fazendo muita gente levar fé em seu lema de inspiração iluminista de que se tratava de um jornal a serviço do Brasil.

Ao contrário do que a campanha publicitária e o próprio jornal martelavam a cada oportunidade, não se tratava do primeiro Ombudsman da imprensa brasileira. Muito possivelmente era a primeira vez que a denominação de origem sueca era aplicada a um profissional nativo, mas a atividade de analisar de forma crítica a própria imprensa já fora exercida antes, e na mesma Folha, por Alberto Dines, no caderno dominical Jornal dos Jornais, que durou de julho de 1975 a setembro de 1977, como aponta Celso Lungaretti, em texto repleto de informações valiosas sobre a experiência.

De qualquer forma, o caráter aparentemente institucional do cargo e um contrato com cláusulas que impedia o profissional que o exercesse de ser demitido - garantindo, ainda, sua permanência no jornal por um determinado período após o término das atividades de ouvidor - acabaram por afiançar a credibilidade da “inovação democrática” junto ao público.

No início, tinha-se a impressão de que as críticas surtiam efeito: pareciam ocorrer alterações significativas, por exemplo, no relacionamento dos colunistas com determinados temas e um cuidado maior (embora ainda insatisfatório) com a interlocução com o leitor; as restrições do citado Túlio Costa ao estilo, digamos, pouco afeito a convenções de Paulo Francis – então considerado por muitos o principal articulista do país, com sua cultura enciclopédia, seu texto de alto nível e um estilo que prefigurava, em nível bem mais alto do que corrente, a moda neocon - foram o principal motivo por ele alegado para sua transferência para o Estadão, em 1990.

Seguiu-se um longo perído durante o qual jornalistas de renome ou com a carreira em ascensão se revezaram no cargo, uns mais incisivos, outros mais parcimoniosos, uns agradando a gregos, outros desagradando a troianos, mas sem que provocassem grande celeuma (veja aqui a lista completa de ouvidores, seu tempo no cargo e a primeira e última coluna de cada um deles).


Figura decorativa
O caldo começou a entornar com a posse e a disposição crítica demonstrada pelo nono Ombudsman, Mario Magalhães (2007/2008), que se recusou a compactuar com o jornalismo partidário que a Folha insiste em praticar desde a posse de Luís Inácio Lula da Silva. Seguiu-se uma queda-de-braço entre Redação e Ombudsman, culminando com a decisão daquela de restringir ao “público interno’ a circulação da crítica diária. Para Magalhães, foi o estopim e ele não renovou o contrato, tornando-se o primeiro Ombudsman do jornal “a deixar o posto por não compactuar com sua descaracterização e esvaziamento”, nas palavras de Lungaretti.

Sua substituição por Lins da Silva inicialmente causou apreensão. Embora se tratasse de um profissional com um currículo jornalístico e acadêmico dos mais respeitáveis, temia-se que o fato de assumir o cargo com suas funções originais parcial mas gravemente reduzidas, somado à sua relação de proximidade com o jornal, pudesse significar uma postura de anuência para com o jornalismo praticado pela Folha, acusado, com frequência e intensidade inéditas, de tendencioso e antiético. Afinal, quando o diário dos Frias criou o cargo de Ombudsman, em 1989, Lins da Silva havia acabado de publicar em livro sua tese de livre-docência, sob o título de Mil Dias: Os Bastidores da Revolução em um Grande Jornal e a “orelha” do volume o apresentava aos leitores como “Um dos líderes da equipe que provocou profundas transformações na Folha de S. Paulo (onde é diretor-adjunto de redação)”. São precisamente tais transformações – em relação às quais a criação do cargo de Ombudsman é uma espécie de culminância –, enfocadas criticamente como um processo de profissionalização da produção jornalística em todos os níveis, incluindo o ético, o tema do livro.

As suspeitas em relação ao novo Ombudsman logo revelar-se-iam infundadas, com Lins da Silva assumindo postura crítica em relação não apenas a questões mais comezinhas, mas a episódios extremamente graves como a utilização do neologismo “ditabranda” para se referir à ditadura militar, o ataque aos professores Maria Victoria Benevides e Fabio Konder Comparato, e a utilização de ficha policial falsa da ministra e pré-candidata Dilma Roussef em reportagem sobre sequestro hipotético que nunca ocorreu.

O problema é que a postura correta e incisiva do atual Ombudsman não tem surtido efeito algum, com a Redação ignorando de forma olímpica o resultado de suas análises e suas objeções. É motivo passível de constrangimento não apenas para o próprio Lins da Silva, mas para o leitor, logrado em sua representação junto ao jornal, a manutenção do Ombudsman como mera figura decorativa.

Assim, só me resta concordar com Lungaretti quando, em outro artigo, publicado em seu blog em 31/07 e desta feita acerca do “caso Sarney”, afirma:


“Infelizmente, os leitores há muito deixaram de ser representados no jornal, que só mantém a seção do ombudsman para não passar recibo de que sua arrogância olímpica é incompatível com os limites que jornais mais sérios impõem a si próprios. Criou tal seção, apresentou-a como um grande avanço na democratização dos meios de comunicação, depois arrependeu-se do que havia feito e a esvaziou, mantendo-a apenas como fachada.

Então, de nada adianta Carlos Eduardo estar sempre com a posição correta, salvo em benefício de sua biografia como profissional de dignidade exemplar. Mas, a única obrigação da redação da Folha tem sido a de escutar pacientemente suas ponderações; depois, age como bem entende”.

Em decorrência das constatações elencadas acima, duas questões se impõem:


1) Por que um profissional de primeiro nível e um homem público da estatura
ética de Carlos Eduardo Lins da Silva se presta a tomar parte dessa pantomima?

2) Ombudsman, para quê?

(Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa. Fiz mínimas modificações).

Adendo (15/08):
A quase totalidade das respostas a este artigo, na ocasião – em comentários ou via email –, ressalvaram que a função que o atual Ombudsman exerce diretamente junto aos leitores, dando encaminhamento e respondendo às suas queixas, seria de suma importância e justificaria a manutenção do cargo e de Lins da Silva, ainda que este tivesse suas demandas praticamente ignoradas pela Redação.

O próprio Lins da Silva, com uma urbanidade e firmeza que confirmam as considerações acerca de seu caráter feitas ao longo do texto, dedicou coluna dominical comemorativa dos 20 anos da criação do cargo de Ombudsman na Folha aos temas cobertos por mim e por Lungaretti (coluna disponível aqui, infelizmente só pára assinantes do UOL ou da Folha). Embora admita "que experimente frustração vez ou outra ao ver minhas sugestões e linha de raciocínio ignoradas", Lins da Silva não apenas corrobora a visão dos leitores acima citada - afirmando que "Mesmo que nunca a Redação acatasse as opiniões do ombudsman, ainda assim ele teria um papel importante" - como, traçando analogias com o o mito grego de Cassandra e com o personagem Grilo Falante, de Pinóquio, aponta a importância histórica das críticas, concluindo: “Mas Cassandras, grilos e alter egos só têm valor quando são atendidos?”.

Como o perfil do público do blog costuma divergir consideravelmente do dos leitores do Observatório e como há o dado novo das considerações de Lins da Silva, republico o artigo aqui para um renovado exame da questão e nova coleta de opiniões.

(Imagem retirada daqui)

3 comentários:

Hugo Albuquerque disse...

Maurício,

Vou direito aos pontos:

1.: Por status - do mesmo modo que muita gente na redação de lá corroborou em baixar o nível na cobertura do Governo Lula, para não perder a cabeça e ficar na sua posiçãozinha cômoda de jornalista da Folha. Convenhamos que perto disso, aguentar o que Lins aguenta não é nada.

2. Para nada. O cargo de ombudsman é uma jaboticaba - desculpe, não poderia deixar passar - oriunda do parlamentarismo sueco que foi "jornalificada" e depois trazida para o Brasil. Não faz sentido e entra numa lógica de liberalismo 2.0, onde não se nega a neutralidade, objetividade e imparcialidade dos jornalistas, apenas se admite que eles podem se desviar delas - como se pudessem chegar nelas - e colocam um representante dos leitores ali para corrigir esses eventuais desvios. Besteira. Ao meu ver, toda a lógica que envolve a presença de um ombudsman numa redação é falha, o negócio seria exigir honestidade, distanciamento crítico e transparência da redação, garantindo isso por meio da figura de um diretor de redação devidamente cobrado e respaldado e dar voz aos leitores via seção - ou mesmo um caderno - de correspondência.

abraços

Unknown disse...

Hugo,

Muito interessante sua tese do Ombudsman nessa lógica do neoliberalismo 2.0, nunca tinha pensado nisso, mas faz todo o sentido.

Quanto ao status, ele é livre-docente na USP, será que precisaria - ou consideraria status - ser Ombudsman?

Um abraço,
Maurício.

Hugo Albuquerque disse...

Não é incomum ao Homem procurar aumentar seu status no grupo, Mauricio - e isso só deixará de ser com o avanço do pensamento e da reflexão, supondo que isso aconteça um dia. Aliás, levando em consideração como essa nossa inteligentsia é muito mais vaidosa do que inteligente, eles sempre estão a procura de um status maior - por que ele toparia exercer uma função irracional de uma maneira ainda por cima adversa? Porque não é suficientemente inteligente, é isso.