Uma das queixas recorrentes contra o cinema brasileiro diz respeito à “estética da miséria” – alegadamente, uma excessiva predileção por temáticas sociais em que pobreza, miséria e sofrimento pontificariam, em detrimento dos aspectos leves e divertidos da vida nesse nosso maravilhoso país tropical.
Não se trata de uma queixa nova: ela vem à tona já numa das primeiras vezes em que o cinema nacional demonstra interesse genuíno pela patuléia – no desaparecido Favela dos Meus Amores (Humberto Mauro, 1935) - e, sobretudo, naquele que se convencionou classificar - por inovações financeiras (sistema de cotas cooperativadas), operacionais (filmagem nas ruas) e estético-ideológicas (abordagem “realista” do universo popular) - como um dos marcos inaugurais do moderno cinema brasileiro, Rio, 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955).
Nessas primeiras encarnações, a queixa contra a pobreza nas telas mescla preconceitos de raça e de classe a um discurso nacionalista: tais filmes estariam sendo negativistas e “prejudicando a imagem do país” ao mostrar uma “gente indolente e escura demais”, habitante dos então pacíficos morros cariocas. Não é por outra razão que Rio, 40 Graus só é lançado após uma longa batalha com as forças que o queriam interditar.
Durante o Cinema Novo, a pobreza nas telas ganha status de intervenção político-social, numa década não apenas marcada por “uma imensa e inflacionada emissão de crédito superestrutural”, como quer Fredric Jameson, mas cuja hegemonia, no campo cultural brasileiro, pertence à esquerda. De acordo com a zeitgeist do período, e num meio cinematográfico majoritariamente esquerdista e de formação literária, essa opção pela pobreza nas telas logo transmuta-se em manifesto político-cultural – o mais celebrado deles (embora não o primeiro nem o mais elaborado), sendo a “Estética da Fome”, que Glauber Rocha publica na Itália em 1965 (íntegra aqui, em PDF), no qual afirma que:
Não por acaso, é a partir da chamada “Retomada” (1993) que as queixas contra a “estética da miséria” ganham força, na mídia e fora dela: o fim do cinema nacional decretado por Collor de Mello ocultava a premissa de que seu renascimento, se se desse, o faria exclusivamente sob a égide privatista e neoliberal. Ainda que as leis de incentivo à cultura que vieram a possibilitar o reavivamento do cinema nacional satisfizessem parcialmente tais condições, ao inserir no circuito do financiamento tanto os diretores de marketing das empresas – para aprovar ou não projetos – quanto empresas financeiras – para captar a verba junto à iniciativa privada -, o espaço, ainda que mínimo, de intervenção estatal e o peso da tradição cultural cinematográfica sobrepujaram os anteparos anti-denuncismo social que o novo sistema intencionalmente criara.
O resultado foi que, a partir da metade dos anos 90, o Brasil viveu um verdadeiro boom de filmes que diagnosticavam de forma incisiva seus dilemas sociais, da miséria ao crime - algo que foi ainda mais aprofundado com o ciclo de renovação do documentário brasileiro que teve lugar ao final da década e continua a pleno vapor.
A despeito de serem procedentes ou não, as queixas contra a tal da “estética da miséria” – que advém, em sua maioria, de setores da classe média que aspiram à elite (quando não da própria elite), são exemplares do processo que Anna Freud identificou como o “mecanismo de defesa da negação” – no caso, em dupla manifestação: não só o retrato daquela realidade social é rechaçado por parte do público por desidentificação egoísta (“Eu não tenho nada a ver com isso”; “O Brasil é muito mais do que isso”), mas como forma inconsiente de se defender da culpa pelo estado de coisas mostrado na tela.
O fato de a crítica dirigida à “estética da miséria’ mal disfarçar um misto de preconceito de classe, desconhecimento das tradições culturais cinematográficas brasileiras e desejo de afirmação de uma “cultura” audivisual colonizada não anula, no entanto, a expressão de um desejo genuíno por novidades no cardápio cinematográfico nacional e a constatação de que há, entre os filmes socialmente engajados e o “cinema televisivo” da Globo Filmes, um amplo espectro de temas e de conjunturas e estéticas regionais que passam virtualmente ao largo das produções nacionais.
É questionável, no entanto, se tal diversidade virá a ser produzida a partir do ataque elitista, no pior estilo "o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde" a uma das características distintivas do cinema brasileiro: sua capacidade de funcionar como locus de reflexão e debate da problemática social brasileira.
Não se trata de uma queixa nova: ela vem à tona já numa das primeiras vezes em que o cinema nacional demonstra interesse genuíno pela patuléia – no desaparecido Favela dos Meus Amores (Humberto Mauro, 1935) - e, sobretudo, naquele que se convencionou classificar - por inovações financeiras (sistema de cotas cooperativadas), operacionais (filmagem nas ruas) e estético-ideológicas (abordagem “realista” do universo popular) - como um dos marcos inaugurais do moderno cinema brasileiro, Rio, 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955).
Nessas primeiras encarnações, a queixa contra a pobreza nas telas mescla preconceitos de raça e de classe a um discurso nacionalista: tais filmes estariam sendo negativistas e “prejudicando a imagem do país” ao mostrar uma “gente indolente e escura demais”, habitante dos então pacíficos morros cariocas. Não é por outra razão que Rio, 40 Graus só é lançado após uma longa batalha com as forças que o queriam interditar.
Durante o Cinema Novo, a pobreza nas telas ganha status de intervenção político-social, numa década não apenas marcada por “uma imensa e inflacionada emissão de crédito superestrutural”, como quer Fredric Jameson, mas cuja hegemonia, no campo cultural brasileiro, pertence à esquerda. De acordo com a zeitgeist do período, e num meio cinematográfico majoritariamente esquerdista e de formação literária, essa opção pela pobreza nas telas logo transmuta-se em manifesto político-cultural – o mais celebrado deles (embora não o primeiro nem o mais elaborado), sendo a “Estética da Fome”, que Glauber Rocha publica na Itália em 1965 (íntegra aqui, em PDF), no qual afirma que:
“Este miserabilismo do Cinema Novo opôe-se à tendência do digestivo (...): filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, e de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida, e frágil, ou mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo de filmes. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que antes escrito pela literatura de 30, foi fotografado pelo cinema de 60; e, antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político”.O dilema latente no texto seria resolvido pela própria geração do Cinema Novo a partir dos anos 70, que tem como turning point simbólico a convocação “Mercado é cultura” de Gustavo Dahl, traduzindo a aderência a um cinema que, sem abdicar da crítica social, inscrever-se-ia no âmbito do entretenimento popular. Um dos exemplos mais bem sucedidos dessa nova fase é Bye, Bye Brasil (Cacá Diegues, 1979).
Não por acaso, é a partir da chamada “Retomada” (1993) que as queixas contra a “estética da miséria” ganham força, na mídia e fora dela: o fim do cinema nacional decretado por Collor de Mello ocultava a premissa de que seu renascimento, se se desse, o faria exclusivamente sob a égide privatista e neoliberal. Ainda que as leis de incentivo à cultura que vieram a possibilitar o reavivamento do cinema nacional satisfizessem parcialmente tais condições, ao inserir no circuito do financiamento tanto os diretores de marketing das empresas – para aprovar ou não projetos – quanto empresas financeiras – para captar a verba junto à iniciativa privada -, o espaço, ainda que mínimo, de intervenção estatal e o peso da tradição cultural cinematográfica sobrepujaram os anteparos anti-denuncismo social que o novo sistema intencionalmente criara.
O resultado foi que, a partir da metade dos anos 90, o Brasil viveu um verdadeiro boom de filmes que diagnosticavam de forma incisiva seus dilemas sociais, da miséria ao crime - algo que foi ainda mais aprofundado com o ciclo de renovação do documentário brasileiro que teve lugar ao final da década e continua a pleno vapor.
A despeito de serem procedentes ou não, as queixas contra a tal da “estética da miséria” – que advém, em sua maioria, de setores da classe média que aspiram à elite (quando não da própria elite), são exemplares do processo que Anna Freud identificou como o “mecanismo de defesa da negação” – no caso, em dupla manifestação: não só o retrato daquela realidade social é rechaçado por parte do público por desidentificação egoísta (“Eu não tenho nada a ver com isso”; “O Brasil é muito mais do que isso”), mas como forma inconsiente de se defender da culpa pelo estado de coisas mostrado na tela.
O fato de a crítica dirigida à “estética da miséria’ mal disfarçar um misto de preconceito de classe, desconhecimento das tradições culturais cinematográficas brasileiras e desejo de afirmação de uma “cultura” audivisual colonizada não anula, no entanto, a expressão de um desejo genuíno por novidades no cardápio cinematográfico nacional e a constatação de que há, entre os filmes socialmente engajados e o “cinema televisivo” da Globo Filmes, um amplo espectro de temas e de conjunturas e estéticas regionais que passam virtualmente ao largo das produções nacionais.
É questionável, no entanto, se tal diversidade virá a ser produzida a partir do ataque elitista, no pior estilo "o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde" a uma das características distintivas do cinema brasileiro: sua capacidade de funcionar como locus de reflexão e debate da problemática social brasileira.
(Imagem do filme Estamira (Marcos Prado, 2006) retirada daqui)
11 comentários:
Muito bem dito, nada faltando. Acho que o melhor comentário que posso deixar é a citação daquela música do Max Gonzaga, que cai que nem uma luva no contexto dessa discussão:
Eu quero é que se exploda a periferia toda
Toda tragédia só me importa quando bate em minha porta
Porque é mais fácil condenar quem já cumpre pena de vida
Maurício,
Vou na mesma direção da sua análise - especialmente no que toca o antepenúltimo parágrafo: Uma coisa muito interessante sobre o Brasil, é como nossa elite tem um sentimento de culpa muito forte. Ela se depara com a miséria que provoca e entra em pânico, se alienando de uma maneira particularmente muito violenta e reagindo com igual agressividade contra quem a lembra disso.
O sistema político partidário ilustra bem essa coisa: A UDN sempre foi um anti-PTB, nada mais, nada menos do que isso. A Ditadura Militar foi uma tentativa de usar o Estado Desenvolvimentista de um modo que você pudesse não apenas retomar como ampliar os privilégios pré-30 - em suma, também uma espécie da anti-varguismo sem deixar de ser aproveitar de certas características do Estado Novo que não somente podiam como lhe foram úteis.
Hoje, a dicotomia PSDB x PT é bem isso. Não há PSDB. Esse partido não é social-democrata coisa nenhuma. Nunca foi. Ele nunca construiu nada, em primeiro lugar ele também foi o anti-Estado Varguista e o varreu, quando já estava decrépito, mas não construiu nada no lugar, apenas fez as gambiarras necessárias para manter a máquina funcionando. Neste exato momento, ele é o anti-PT, ele é o Outro e não consegue ser nada mais do que isso...Você tem medo de movimentos sociais, odeia petistas? Então vote na gente.
Ele é apenas essa reação violenta contra qualquer força que ouse lembra-los dos esqueletos no armário em relação aos quais nutrem muito medo ao mesmo tempo em que acham cômodo demais tê-los ali.
Essa reação à cinema de crítica social é bem isso: A minha luta pelo meu privilégio de expolorar e me anestesiar dos efeitos da minha exploração. Em outras palavras, uma amostra da tensão dialética que é o em si da História: Memória x Esquecimento.
Lembrando também que é a própria elite quem produz os filmes com a "estética da miséria", basta lembrar do filho de banqueiro Walter Salles e seus filmes.
Inclusive lembro de ter lido um artigo sobre uma exibição do seu filme mais recente, "Linha de Passe" numa periferia e a reação dos moradores, que não se sentiram representados no filme. Acharam o tom pessimista exagerado...
Um dado muito interessante que perpassa os três comentários - o do Anônimo em sentido inverso - é o da agressividade entre as classes, que o Hugo referencia diretamente.
Na minha opinião, nem a agressividade da elite contra a pobreza - que a sensacional e engraçadíssima música citada pelo Flávio aborda - nem a acusação de elitismo a Walter Salles fazem com que a pobreza não mais constitue, como dado abjeto da realidade social brasileira, um tema cinematográfico de primeira ordem, nem Walter Salles deixe de ser um dos talentos com maior acuidade de visão social do cinema brasileiro atual, a despeito de sua origem milionária.
Um abraço a todos,
Maurício.
O cinema deve ser pensado com a grandeza que ele merece. Parabéns pelo artigo, abraço.
Obrigado, Miguel, apareça!
Um abraço,
Maurício.
Como sempre o anônimo...tsc tsc..acho curioso que o crítico numa mostre a cara...
Mas excelente mais uma vez o post. Eu estav ainda hoje pensando em como é permaente essa dificulddae de diálogo entre classes e de uma classe de se ver como pertecente realmente ao seu lugar, e seu post sobre cinema, que no momento nada tinah a ver com o que eu me indagava tem tudo a ver com isso, assim como os bons comentários e como sempre a figuar do anônimo, com a qual me deparo desde que comecei a frequentar blogs.
Iaiá,
Legal você comentar aqui, fico feliz.
É curioso como a luta de classes aparece até mesmo nas discussões culturais, ainda que a direita tenha sido bem-sucedida em transformar o conceito marxista num anacronismo.
Apareça!
Um abraço,
Maurício.
Maurício: belíssima análise. Algo semelhante ocorre no campo da literatura - há um ataque ao "realismo" de Ferréz e cia., ao predomínio da violência etc. - ainda que os motivos sejam outros. Ainda pretendo escrever a respeito. Abraço
Nodari,
Obrigado. Imagino que no campo da literatura a coisa seja ainda pior, pois, além do pedigree ser mais antigo e nobre, não é apenas uma questão estético-temática, mas da própria origem (e posição) de quem escreve, não?
Um abraço,
Maurício.
O cinema como toda arte busca imitar a realidade e como tal está bem longe a verdade, e se executa tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de uma aparição.
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