Um dos sucessos inegáveis da direita, desde que a má conjunção de AIDS e neoliberalismo, em meados dos anos 80, instaurou a reação conservadora ao que restara do comportamento e da ideologia pós-1968 - ao mesmo passo em que, assim como fez com o Muro de Berlim, demoliu a utopia esquerdista do socialismo versão século XX -, foi pespegar na ecologia o rótulo de coisa chata.
Nascia a pejorativa denominação "ecochato", evocada com impaciência ou humor nos 20 anos seguintes, a cada vez que alguém ousava apontar a necessidade de um uso mais racional da água ou da energia elétrica, sugeria que se reciclasse o lixo ou lembrava que o plástico demora trocentos mil anos para ser assimilado pelo meio ambiente. Se ele fosse mais longe e sugerisse sua simples substitução pelo vidro (nas garrafas) ou pelo pano ou papelão (ao invés das sacolinhas de supermercado) era tachado de xiita.
A publicidade, sempre de mãos dadas com o grande capital – para quem ecologia é sinônimo de maiores dificuldades para a provação de projetos e aumento dos custos destes – colaborou sobremaneira para associaar o ecologismo ao atraso, à recusa do progresso, ao medo de competição – enfim, a tudo o que contraria os valores de um capitalismo individualista e competitivo, que ganhou corpo durante os anos 90. Assim, as preocupações ambientais tornaram-se, para o grande público e por um longo tempo, coisa de excêntricos, maníacos, catastrofistas, políticos diversionistas, anticapitalistas, gabeiras...
Daí, de repente, o mundo se viu obrigado a se defrontar com uma realidade assustadora: o aquecimento global, em decorrência do efeito-estufa e do aumento da emissão de gases como o monóxido de carbono e o metano, está fazendo as calotas polares e as grandes geleiras derreterem, o que, segundo os cientistas, fará o nível dos oceanos subir. Além de inundações em áreas costeiras, isso provocará o crescimento e o surgimento de desertos, uma maior ocorrência de furacões, tufões e ciclones e alterações profundas nos ciclos de temperatura do globo - notadamente, “ondas de calor” na Europa e nos EUA (como as que têm ocorrido nos últimos verões, levando a um elevado número de óbitos no Velho Continente) e invernos mais rigorosos e chuvosos em zonas termperadas e tropicais (como ilustram o atual inverno no sul do Brasil, a profusão de enchentes no Norte/Nordeste e fato de que em São Paulo, capital, não chovia tanto desde que a medição se iniciou, em 1943).
Uma composição recente de Lenine em parceria com o letrista Carlos Rennó, É Fogo, traduz de forma direta e poeticamente vigorosa o percurso entre a promoção do descrédito do discurso ecológico e a “caída na real” descrito acima. Reproduzo trechos:
Ao contrário do que escrevi parágrafos acima, nada nesse processo se deu “de repente”. Repentina foi sua percepção, a partir do momento em que interesses setoriais do capitalismo passaram a ser afetados pelas mudanças (rendendo-se às evidências científicas de que o seriam mais e mais) e o advento da internet de 2ª geração democratizou a circulação de informações, em âmbito global, a um nível antes inimaginável.
Mas, olhando retrospectivamente, não há novidade nessa história: das denúncias do Partido Verde alemão nos anos 70, à irrupção da militância agressiva do Greenpeace, passando pela liberação da caça às baleias no Japão e chegando à recusa de Bush em assinar o protocolo de Kyoto, tudo faz parte de uma trajetória documentada de degradação gradual do meio-ambiente, denúncia sistemática da gravidade crescente da situação e recusa em enfrentar a questão.
É claro que, como sempre, há um grupo de teimosos reunidos em volta de cientistas que, por vontade de aparecer, birra ou por serem muito bem pagos para tal por corporações e governos, insitem em desmentir a gravidade da crise ambiental, com evidências científicas risíveis e em relação às quais há abundante material que as contradiz. Trata-se de fenômeno compreensível: é da natureza humana negar instintivamente aquilo que ameaça a própria existência da humanidade. Porém isso não faz com que tal reação deixe de se assimilar à da parcela de judeus ingênuos que, na Alemanha dos anos 30, achava que a ascensão do nazismo era uma moda política passageira.
A diferença é que dessa vez não haverá preconceito ou ideologia abomináveis regendo a escolha de vítimas, as quais tendem, a médio prazo, a ser indistinguíveis (ainda que, num primeiro momento, as consequências mais trágicas, como inundação de áreas costeiras, escassez de água potável e necessidade de migração em massa devam atingir os estratos mais pobres da humanidade).
Ao invés de uma ideologia de exceção como o nazismo, haverá tão-somente, contra o planeta e os seres que nele habitam, a persistência da voracidade do capitalismo, protegida pela desculpa desenvolvimentista e açulada por uma ideologia do progresso que protege o lucro privado em detrimento do bem comum.
Nascia a pejorativa denominação "ecochato", evocada com impaciência ou humor nos 20 anos seguintes, a cada vez que alguém ousava apontar a necessidade de um uso mais racional da água ou da energia elétrica, sugeria que se reciclasse o lixo ou lembrava que o plástico demora trocentos mil anos para ser assimilado pelo meio ambiente. Se ele fosse mais longe e sugerisse sua simples substitução pelo vidro (nas garrafas) ou pelo pano ou papelão (ao invés das sacolinhas de supermercado) era tachado de xiita.
A publicidade, sempre de mãos dadas com o grande capital – para quem ecologia é sinônimo de maiores dificuldades para a provação de projetos e aumento dos custos destes – colaborou sobremaneira para associaar o ecologismo ao atraso, à recusa do progresso, ao medo de competição – enfim, a tudo o que contraria os valores de um capitalismo individualista e competitivo, que ganhou corpo durante os anos 90. Assim, as preocupações ambientais tornaram-se, para o grande público e por um longo tempo, coisa de excêntricos, maníacos, catastrofistas, políticos diversionistas, anticapitalistas, gabeiras...
Daí, de repente, o mundo se viu obrigado a se defrontar com uma realidade assustadora: o aquecimento global, em decorrência do efeito-estufa e do aumento da emissão de gases como o monóxido de carbono e o metano, está fazendo as calotas polares e as grandes geleiras derreterem, o que, segundo os cientistas, fará o nível dos oceanos subir. Além de inundações em áreas costeiras, isso provocará o crescimento e o surgimento de desertos, uma maior ocorrência de furacões, tufões e ciclones e alterações profundas nos ciclos de temperatura do globo - notadamente, “ondas de calor” na Europa e nos EUA (como as que têm ocorrido nos últimos verões, levando a um elevado número de óbitos no Velho Continente) e invernos mais rigorosos e chuvosos em zonas termperadas e tropicais (como ilustram o atual inverno no sul do Brasil, a profusão de enchentes no Norte/Nordeste e fato de que em São Paulo, capital, não chovia tanto desde que a medição se iniciou, em 1943).
Uma composição recente de Lenine em parceria com o letrista Carlos Rennó, É Fogo, traduz de forma direta e poeticamente vigorosa o percurso entre a promoção do descrédito do discurso ecológico e a “caída na real” descrito acima. Reproduzo trechos:
“Éramos uma pá de apocalípticos,
De meros hippies, com um falso alarme...
Economistas, médicos, políticos
Apenas nos tratavam com escárnio.
Éramos uns poetas loucos, místicos,
Éramos tudo o que não era são;
Agora são com dados estatísticos
Os cientistas que nos dão razão.
De que valeu, em suma, a suma lógica
Do máximo consumo de hoje em dia,
Duma bárbara marcha tecnológica
E da fé cega na tecnologia?
O que será, com mais alguns graus Celsius,
De um rio, uma baía ou um recife,
Ou um ilhéu ao léu clamando aos céus,
se os Mares subirem muito, em Tenerife?”
Ao contrário do que escrevi parágrafos acima, nada nesse processo se deu “de repente”. Repentina foi sua percepção, a partir do momento em que interesses setoriais do capitalismo passaram a ser afetados pelas mudanças (rendendo-se às evidências científicas de que o seriam mais e mais) e o advento da internet de 2ª geração democratizou a circulação de informações, em âmbito global, a um nível antes inimaginável.
Mas, olhando retrospectivamente, não há novidade nessa história: das denúncias do Partido Verde alemão nos anos 70, à irrupção da militância agressiva do Greenpeace, passando pela liberação da caça às baleias no Japão e chegando à recusa de Bush em assinar o protocolo de Kyoto, tudo faz parte de uma trajetória documentada de degradação gradual do meio-ambiente, denúncia sistemática da gravidade crescente da situação e recusa em enfrentar a questão.
É claro que, como sempre, há um grupo de teimosos reunidos em volta de cientistas que, por vontade de aparecer, birra ou por serem muito bem pagos para tal por corporações e governos, insitem em desmentir a gravidade da crise ambiental, com evidências científicas risíveis e em relação às quais há abundante material que as contradiz. Trata-se de fenômeno compreensível: é da natureza humana negar instintivamente aquilo que ameaça a própria existência da humanidade. Porém isso não faz com que tal reação deixe de se assimilar à da parcela de judeus ingênuos que, na Alemanha dos anos 30, achava que a ascensão do nazismo era uma moda política passageira.
A diferença é que dessa vez não haverá preconceito ou ideologia abomináveis regendo a escolha de vítimas, as quais tendem, a médio prazo, a ser indistinguíveis (ainda que, num primeiro momento, as consequências mais trágicas, como inundação de áreas costeiras, escassez de água potável e necessidade de migração em massa devam atingir os estratos mais pobres da humanidade).
Ao invés de uma ideologia de exceção como o nazismo, haverá tão-somente, contra o planeta e os seres que nele habitam, a persistência da voracidade do capitalismo, protegida pela desculpa desenvolvimentista e açulada por uma ideologia do progresso que protege o lucro privado em detrimento do bem comum.
3 comentários:
Maurício,
O Capitalismo fagocitou muitas ideias de autores que lhes eram contrários, como um Marx, para sobreviver - salvando-se da hecatombe iminente que batia às suas portas na metade do século 19º.
Ele conseguiu postergar o colapso político que sofreria, mas uma nova variável veio à tona: O Capitalismo não destrói aquilo que Marx chamava de nossa segunda natureza, a Cultura, mas também a primeira; o impacto desse sistema econômico sobre o meio-ambiente será fatal tão logo.
Curioso você citar Marx, Hugo, pois pensei muito nele - não exatamente no momento de conceber o post, mas antes, logo após ler a escelente entrevista que o Lungaretti postou no blog dele.
Definitivamente, como você ilustra, falta o velho Carlos para aprimorar algumas discussões ora em andamento.
amigo, tou dando uma passadinha para dizer que vêm chegando notícias quentinhas no liberdade, e que desencanem de entrar no algodão, pois está sendo derrubado e nóis sem tempo de colocá-lo no ar de volta.
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