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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Marina Silva: prós e contras

Nos últimos dias, muita gente tem me abordado para perguntar sobre Marina Siva. São, em sua maioria, pessoas insatisfeitas com o atual cenário político e que não simpatizam com Aécio nem querem anular; parte delas está em dúvida entre votar, no primeiro turno, em Marina ou em um dos partidos de esquerda sem chance real de vitória. A maioria já notou que a massacrante campanha de desqualificação de Marina na internet faz muito barulho, mas não levanta e muito menos desenvolve nenhuma questão relevante.

Este texto é dedicado a essas pessoas, com cujo impasse eleitoral me identifico. Sem nenhuma pretensão de "fazer cabeças" , procura contextualizar a candidatura Marina no atual espectro político, analisando com maior profundidade duas de suas limitações mas evidentes e dois aspectos claramente positivos de sua candidatura. Não é, como veremos, uma personagem desprovida de dilemas. As conclusões, é claro, ficam a cargo de cada um.



Vácuo persistente
Em primeiro lugar, há de se ter claro que a candidatura de Marina Siva não anula uma das características mais preocupantes das eleições 2014: a constatação de que, a rigor, elas não oferecem ao eleitor uma candidatura competitiva de esquerda. Isso se deve, sobretudo, à primazia que as três candidaturas com chance de vitória concedem, com insignificantes nuances entre si, a um modelo econômico de origem neoliberal e que privilegia os interesses do mercado financeiro em detrimento aos da população.

Tal modelo baseia-se no propalado "tripé econômico", constituído de metas pré-definidas de inflação, dólar flutuante (ou seja, sem intervenção estatal no sentido de manipular a taxa de câmbio) e rigor fiscal, traduzido em metas para superávit primário (a relação entre receita e despesas, excetuadas aquelas dispensadas ao pagamento de juros da dívida pública).



Ao povo, os trocados
Mais grave, ele implica, ainda, na transferência mensal ao mercado financeiro de quantias extorsivas na forma de pagamento de juros, com o agravante de que estas sobem proporcionalmente à taxa de juros oficial (Selic), a qual tem sido mantida em patamares elevados pelo Banco Central sob o pretexto de combater a inflação. Para dar uma ideia do estrago: em 2011 só os juros da dívida pública custaram ao povo brasileiro R$ 230 bilhões, o equivalente a 5,6% do Produto Interno Bruto (PIB) e a 15 vezes o total de investimento anual no programa Bolsa- Família. (Convém lembrar que quando o PT era oposição, ele propunha, como convém a um partido de esquerda, o congelamento do pagamento dos juros da dívida até que ela fosse auditada por uma consultoria independente e recalculada.)

Enquanto Aécio levaria esse modelito neoliberal ao limite e Dilma o tem transigido eventualmente, manipulando índices aqui e ali, mas, com a covardia característica, sem jamais assumir uma postura critica em relação a ele – pelo contrário, ela não cansa de jurar estar sendo fel ao tripé -, Marina já deixou claro que o manterá ao pé da letra.

Trata-se de uma decisão de fundamental importância, posto que não só reduz drasticamente os recursos para a promoção de mais justiça social e mais desenvolvimento, mas enfraquece o necessário combate político-ideológico contra a hegemonia neoliberal, combate este para o qual o Brasil, devido à sua relativa independência e à sua posição de líder regional e potência global em ascensão, teria condições de protagonizar.



Liberdades individuais
Outra questão a suscitar preocupações em relação à candidatura de Marina diz respeito às suas posições relativas aos direitos individuais e questões comportamentais no âmbito da biopolítica, aí incluídas as questões de gênero. Dados os limites espaciais deste texto, vou me limitar a citar três das mais relevantes questões a tal âmbito circunscritas: a isonomia de direitos entre heterossexuais e homossexuais, a questão do aborto e a descriminalização da maconha.

É certo que a função legislativa, a priori, não figura entre as atribuições do Executivo federal. Mas, dadas as peculiares conformações do presidencialismo vigente no Brasil, é certo também que, na prática, o poder presidencial é capaz de adiar ad infinitum a discussão de tais temas, como aliás temos assistido no país desde a redemocratzação. Com isso, enquanto o mundo avançou muto nas duas últimas décadas no trato de tais questões, o Brasil, a despeito de sua mística de país de costumes liberais, foi ficando para trás e hoje se encontra defasado em relação a boa parte do mundo democrático.

Confrontada quanto a tais temas – e em relação à incompatibilidade entre tal agenda e suas crenças religiosas pessoais – Marina respondeu, em um primeiro momento (em 2010) que submeteria tais questões a plebiscito popular; ultimamente sua assessoria tem divulgado que ela passou a suportar direitos LGBTs, mas ela própria nada declarou. A proposta de submeter tais temas a plebiscito é altamente questionável, pois, embora signifique uma forma de fazer avançar a democracia direta, o faria, contraditoriamente, em relação a questões caras a minorias, num jogo viciado que despreza a premissa contemporânea de que a democracia, além de refletir o desejo da maioria, tem por dever assegurar os direitos das minorias.



Balanço
As duas questões elencadas acima constituem os aspectos mais negativos da candidatura Marina, na opinião deste blogueiro. São suficientes para recusar o voto nela? Isso depende de cada um. Há de se levar em conta que, em relação aos mesmos quesitos elencados, nem Dilma nem Aécio oferecem melhores perspectivas – e que os candidatos que o fazem não têm chance real de vitória.

Há de se considerar, também, os pontos positivos que só a candidatura de Marina traz, dos quais dois serão comentados abaixo.



O mundo desde o fim
Com sua sólida formação em desenvolvimento sustentável, Marina poria um fim ao modelo predatório de desenvolvimento que atingiu o ápice no governo Dilma e que tem gerado danos os mais graves. Em primeiro lugar, ao próprio meio ambiente e à mobilidade urbana, na contramão de um momento histórico em que a finitude dos recursos e a necessidade de avançar sem esgotá-los são cientificamente comprovadas.

Em segundo lugar (pela ordem dos acontecimentos, não em importância), por ser responsável pela pior política indígena da história da democracia brasileira, com uma aliança nefasta entre o poder federal e o agronegócio impondo deslocamentos massivos e assassinatos, e com epidemias vitimando tribos em diversos quadrantes do país, no que não poucos antropologistas qualificam como um genocídio.



Danos ideológicos
Em terceiro lugar, pelo que tal visão "tecnocrática" de desenvolvimento, arcaica em sua essência, gerou em termos de danos político-ideológicos, ao submeter acriticamente a política ao determinismo econômico, como sublinha Moysés Pinto Neto:

"Como para Dilma a política é irrelevante, já que no final com as transformações econômicas promovidas todos lhe dariam razão, tudo que envolve um conflito é deixado de lado em torno da viabilidade desse projeto desenvolvimentista. Pior: Dilma fez preponderar no PT, que era um partido razoavelmente afinado com a causa ecológica, a mentalidade de que a preocupação ambiental está em conflito com o desenvolvimento social."
Marina Silva reúne, como poucas profissionais no mundo, condições de reverter tal quadro, tanto pelos méritos próprios internacionalmente reconhecidos, que fazem dela expert em preservação do meio ambiente, quanto por estar cercada do que de melhor o país oferece no tema. Certamente promoveria a substituição de tal modelo predatório por políticas de desenvolvimento que insiram o Brasil entre as nações que crescem de forma autossustentada, preservando o país às novas gerações. Isso significaria, necessariamente, uma revisão das políticas indígenas tanto em relação ao latifúndio quanto em prol do avanço de sua afirmação identitária e cultural.



Resgate da política
Outra área em que Marina promete inovar é em termos de práticas políticas. O fato de ela ter recebido vinte milhões de votos e, resistindo a intensas pressões, se recusado a apoiar Serra ou Dilma no segundo turno de 2010 é demonstração factual de que fala sério.

Seria um alento e um regate para um país que tanta esperança depositou no PT, para em seguida ver, desde o governo Lula, alianças políticas demasiadamente elásticas, em que toda e qualquer consideração ética foi negligenciada em prol de mais poder, abrindo espaço para figuras nocivas da vida pública brasileira, como Collor e Maluf. Nas palavras do sociólogo Luiz Eduardo Soares, "O desapreço pela mudança nos métodos políticos continuou, ajudando a jogar no pântano a credibilidade da política."

No governo Dilma, prossegue Soares, "A questão da ética pública continuou sendo abordada como capricho pequeno burguês ou simples armações políticas da grande imprensa, sem que se assumisse a sério a autocrítica que o mensalão teria exigido". Como é de conhecimento até do mundo mineral, os petistas não só deixaram de fazer a necessária autocrítica após o mensalão, mas continuam fingindo que ele nunca ocorreu nem foi julgado por um plenário em ampla maioria composto de juízes nomeados por Lula e Dilma. No universo paralelo do petismo, o mensalão é uma invenção da mídia e uma maldade do carrasco Joaquim Barbosa (ele próprio também nomeado por Lula). Acredite se quiser...



Chance única
Além da renovação per se das práticas políticas – uma demanda da sociedade brasileira tornada urgente desde as Jornadas de junho e que Marina Silva e Marcelo Freixo foram das poucas lideranças a incorporar a seus programas políticos –a candidata do PSB encara, neste momento, na prática, a única chance real de tirar o PT da Presidência.

Trata-se de uma demanda que não só se tornou legítima, mas urgente. Para o blogueiro Tsavkko, para quem Marina representa o atraso, mas Dilma é ainda pior, "O país precisa disso, a esquerda precisa disso e os movimentos sociais mais do que nunca precisam de espaço para se renovar". E, acrescento eu, dados o grau de autoilusão e de ilusionismo aos quais os governo petista, com o auxílio de sua brigada de fanáticos, tem mantido a população, só a derrota e a imprescindível e há tempos esquecida autocrítica poderá trazer tal força política de volta ao mundo real.

Pois, além de tudo o que já foi mencionado ao longo do artigo, impedir a continuidade do governo Dilma seria a resposta cívica a uma governanta que não hesitou incorrer em estelionato eleitoral ao se comprometer, em comercial de campanha, a não privatizar o Pré-Sal e, uma vez no poder, privatzar-lhe, e a troco de banana. A uma mandatária que foi fiadora e parceira dos governos estaduais na brutal repressão aos protestos populares, o pior legado da Copa a ameaçar de maneira permanente o direito constitucional à manifestação nas ruas do país. A uma presidente autoritária e arrogante, que reprimiu grevistas, destratou professores das universidades públicas e só se dispôs ao diálogo com a sociedade - de forma torta e breve - após o povo sair, de forma massiva, às ruas, num movimento que deixou claro a farsa do mundo maravilhoso do petismo, mas que estes até hoje não compreenderam.




Ventos de renovação
Como toda mudança, o voto em Marina traz algo de aposta. Não nos iludamos quanto a isso. Mas antes um risco calculado do que uma certeza representada pela continuação, por mais quatro longos anos, do péssimo governo Dilma. Teme-se que o país não aguente. Eu, embora ainda não tenha fechado questão, me encontro, a princípio, neste momento, disposto a preferir um voto pela mudança a um voto ideológico (no PSOL no primeiro turno; nulo no segundo) em que expresse meu desagrado pelos rumos da política institucional no Brasil. E você, leitor(a)?

Dentre os estímulos para tal opção, alem dos já elencados, a declaração de Luiz Eduardo Soares, figura pública que não pode ser acusado de identificação com a direita (e que foi ministro de Lula), em texto de no qual diz ver Marina na Presidência como "uma oportunidade histórica absolutamente extraordinária para retomarmos a gigantesca tarefa de imaginar, coletiva e dialogicamente, um outro mundo possível, um outro Brasil possível, respirando novos ares.". Oxalá tenha razão.



(Imagens retiradas daqui e dali e fundidas digitalmente)

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A dupla tortura de Miriam Leitão

Uma jovem de 19 anos, grávida, é presa por militares a paisana e atirada em uma perua. Após ser humilhada, surrada, ameaçada de estupro coletivo e de morte, é mantida durante horas em um quarto escuro, nua, na companhia de uma enorme jiboia.

A jovem era a jornalista e escritora Míriam Leitão e o relato acerca do que sofrera é, por seu ineditismo e dramaticidade, o fecho de ouro da matéria "A repórter pergunta, o ministro gagueja", publicada no Observatório da Imprensa e da autoria de Luiz Cláudio Cunha, jornalista especializado no período da ditadura. O trabalho pode ser considerado uma das melhores reportagens publicadas este ano, dada a combinação de embasamento, contundência e sensibilidade com que o autor analisa o papel do Estado democrático, da Comissão da Verdade e da imprensa em relação ao passado de tortura e ao presente de negação das Forças Armadas.


Reações extremadas
É certo que muitos, como este blogueiro, se indignaram e se emocionaram, em alguns casos profundamente, com o que a reportagem relata. Mas outros tantos, talvez mais ruidosos, reagiram mal à confissão de Miriam. Chama a atenção que tantos setores governistas quanto o jornalismo neocon de Veja e similares tenham concentrado os mais ferozes ataques à jornalista, como a evidenciar as afinidades entre extremos que se repelem mutuamente.

Quanto às reações dos conservadores, foram diversas e se concentraram em atacar Miriam por ter se aliado à esquerda na luta contra a ditadura. Aquele papo acéfalo de sempre. Um exemplo é significativo o suficiente: Rodrigo Constantino, um subletrado blogueiro de Veja, publicou um texto tão virulento (até para os padrões da revista) que o patrão ordenou que fosse retirado do blog, sendo prontamente obedecido. Quanta coerência!

Mas talvez ainda mais grave tenham sido as reações da autointitulada esquerda petista: na seção de comentários do blog do Nassif, reduto de governistas fanáticos, Miriam Leitão foi execrada e atacada impiedosamente pela turba. Deram vazão tanto ao ódio contra os prognósticos da jornalista em relação ao governo Dilma (que levaram seu ex-colega de Rede Globo, Paulo Henrique Amorim, em um flagrante ato de falta de ética jornalística, a pespegar-lhe apelidos jocosos), quanto ao fato, agora para eles irreconciliável, de ela trabalhar na citada emissora, representante-mór da mídia que odeiam e que acusam de perseguir o petismo, mas contra quem o próprio governo por eles apoiado não moveu uma palha, em 12 anos, no sentido de regulamentar – muito pelo contrário: continua a abastecê-la regularmente, via Secom, com vultosas verbas públicas.



Mercado e mídia
Não compartilho dessa visão a meu ver maniqueísta, de um esquematismo raso e indisfarçavelmente machista acerca de Miriam Leitão. O problema, para mim, não é que ela trabalhe na Globo: considero não só perfeitamente possível trabalhar na emissora e manter a dignidade, como tantos fazem ou, enquanto vivos, fizeram - de Fernanda Montenegro a Franklin Martins, de Gianfrancesco Guarnieri a Caco Barcellos -, como admiro o esforço (e as conquistas efetivas) que figuras claramente ligadas à esquerda - como Vianinha, Dias Gomes ou Eduardo Coutinho– empreenderam para, através da emissora, adentrar o "sistema" e, recuando aqui, avançando ali, modificá-lo por dentro. Clássicos da representação política na TV, como O Bem-Amado, Roque Santeiro, ou as series do Globo Repórter dos anos 70/80 não teriam jamais sido produzidos sem essa ligação empregatícia de tais profissionais com a emissora.

Minhas restrições em relação a Míriam Leitão não são de ordem pessoal: o que nela crítico é valer-se da posição midiática que ocupa para difundir, naturalizar e usar como régua e norma pressupostos econômicos que guardam íntima ligação com (e são muitas vezes ditados por) interesses do mercado financeiro internacional. No entanto, seria ingênuo achar que ela ocuparia tal função sem fazê-lo. Pois Miriam faz parte do que Muniz Sodré identifica como "elite logotécnica", agentes midiáticos neste momento histórico encarregados de fornecer uma retórica de legitimação para o neoliberalismo, através de uma lógica discursiva segundo a qual “a economia de mercado é traduzida como resultado de uma natureza eterna e imutável do homem” (trecho do artigo "O globalismo como neobarbárie", do livro Por uma outra Comunicação, de Dênis de Moraes (Record, 2003)).



Direitos básicos
Tais objeções quanto à função e ao modo de operação de Miriam Leitão não significam, feitas as ressalvas correspondentes, que eu deixe de reconhecer a qualidade de seu trabalho jornalístico per se – em relação à política econômica de Dilma, por exemplo, ela tem antecipado com precisão problemas que o voluntarismo e o fanatismo em voga se recusam a reconhecer -. ou que eu nutra um ódio de natureza pessoal contra ela. E mesmo levando em conta que, sendo a teledifusão uma concessão pública, o jornalismo econômico que pratica deveria, necessariamente, refletir também parâmetros outros que não os do mercado, nada disso autoriza que eu– ou qualquer outra pessoa - desqualifique o passado militante da jornalista nem, de forma alguma, menospreze ou zombe da violenta violação de seus direitos em mãos militares.

Ao contrário: ao menos desde o Iluminismo os direitos da pessoa humana não deveriam mais guardar relação com o teor de suas ideias. A afirmação de Voltaire de que pode discordar de tudo que o interlocutor diz, mas lutará sempre pelo direito de ele se expressar implica, necessariamente, não só no abandono de uma lógica punitiva baseada em critérios ideológicos mas, em decorrência, na condenação dos que continuam a se valer de tal critério para punir, com eventual violência, ou assassinar.

As reações agressivas contra Miriam Leitão, por revelar a violência que sofreu nas mãos do Estado, são expressivas do acirramento de parâmetros pré-Iluministas também na arena política brasileira. O fato de tamanho ódio ser comum a coluistas de Veja e a comunidades blogueiras "progressistas" deixa claro, como já mencionado, que tais pretensos antagonistas, na verdade, partilham pressupostos similares e práticas marcadas por ódio, intolerância e, de lado a lado, nenhum pudor  em promover "assassinatos sistemáticos de reputação".


Passado presente
Mais do que o retrato de uma luta justa, contra aqueles que usurparam o poder através de um golpe desferido em um presidente constitucionalmente eleito, a história da prisão e tortura dos jovens que lutaram contra a ditadura – da qual a de Míriam, como ela mesma fez questão de assinalar, é apenas um caso entre outros bem piores - pode ser lida como uma narrativa da perda de inocência, como um brutal rito de passagem, das esperanças douradas de jovens militantes para a desolação e a dor dos cárceres, da torturada sistematizada e, em não poucos casos, da morte.

Nesse sentido, a reportagem de Luiz Cláudio Cunha é epifânica, pois, lida no atual contexto, acaba por não dizer respeito "apenas" ao que vivenciamos durante a ditadura, mas, indiretamente, ao momento presente, no qual, a despeito da alegada democracia institucional em que vivemos, jovens têm sido rotineiramente reprimidos com brutalidade não apenas policial, mas judicial, e com afiada articulação ente poder federal e estados.

Antes, como agora, a sociedade mostra-se alheia a essa violação sistemática de direitos, que há décadas assola periferias, morros e outros não-lugares e se tornou geral e descontrolada a partir da Copa do Mundo, afetando desde então cidadãos e cidadãs que ousam sair às ruas e lutar por um mundo melhor. O relato da tortura de Miriam, mais de quatro déadas depois, nos formula assim uma questão essencial: quantos anos teremos de esperar para despertar para a urgência de denunciar a perpetuação do militarismo fora da lei e reprimir a violência de Estado de ontem e de hoje?


(Imagem da jovem Miriam Leitão no dia de sua prisão. Retirada daqui e editada digitalmente)


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Ataques a Marina denotam desespero petista

O final de semana foi marcado, nas redes sociais, pela escalada da agressividade e dos esforços de desqualificação de Marina Silva por militantes e simpatizantes petistas. Trata-se de num movimento coordenado, que tende a atingir o ápice nos próximos dias, com a eventual confirmação da candidatura da ex-senadora, em substituição a Eduardo Campos.

Nas três últimas eleições presidenciais difundiu-se, com amplo auxílio dos chamados blogs progressistas, a ideia de que os métodos sujos de campanha eram um traço distintivo do PSDB, particularmente do sempre candidato José Serra. Estamos, uma vez mais, em um período eleitoral e, a julgar pelo que vem sendo visto nas redes sociais, mesmo antes da explosão de ódio do último final de semana, teremos uma campanha presidencial das mais sujas – só que, desta vez, graças sobretudo ao petismo (ou será que sempre foi assim e não nos dávamos conta?).

De qualquer modo, o fato é que se assistiu a um verdadeiro festival de baixarias, um profundo esvaziamento da discussão de questões programáticas em prol de uma catarse em que o ódio serviu de alimento às agressões pessoais contra quem fora, durante décadas, uma correligionária e companheira de luta, além de uma das principais responsáveis pela expansão inicial do PT na Amazônia.



Voo próprio
Mas a cria desgarrou, tornou-se internacionalmente reconhecida como uma expert no desenvolvimento sustentável. Preterida por Lula, em sua sucessão, em prol de Dilma, rompeu amarras, ganhou vida própria, provou-se capaz de se constituir em uma liderança personalista, chegando a expressivos 20 milhões de votos nas eleições de 2010. Com um diferencial em relação ao neopetismo: Marina manteve-se como uma crítica contumaz das alianças por demais elásticas e do vale-tudo político em que o PT se embrenhou e cujo mais visível símbolo é o "mensalão".

E é justamente o temor despertado no petismo pela possibilidade iminente de perda do poder contra uma candidatura com tal simbologia que tem levado parte significativa de seus ativistas nas redes sociais – incluindo medalhões como Greenhalgh e Emir Sader - a preterir o debate civilizado em prol de um verdadeiro linchamento, uma campanha difamatória e desqualificadora, baseada em mentiras a granel e em um moralismo tosco, ao pior estilo imprensa marrom.



Táticas de esgoto
Num dos exemplos mais gritantes de mau jornalismo e tentativa de manipulação da boa fé pública, o portal petista 247 anunciou, em manchete ilustrada por fotos, que Lula chorara no velório, enquanto Marina rira. Não bastasse a fragilidade do critério de tal "denúncia", o poder de contrainformação das redes sociais logo trouxe o contexto que a originou: o meio sorriso de Marina, perpassado pela dor, fora um gesto de solidariedade e reconhecimento da bravura de uma criança que acabara de perder o pai de forma súbita: destinava-se, como se vê na fotografia original, a um dos filhos de Campos debruçado sobre a parte debaixo do caixão, e o qual o Photoshop malandro tratara de apagar da cena.

Mas essa discussão bizantina sobre quem chorou ou riu no velório, não obstante virulenta – e atiçada até por um dos principais blogueiros "progressistas", momentaneamente transformado em especialista em ética e luto -, foi denúncia das mais suaves, comparada ao que viria: uma saraivada fétida de acusações que implicam na invasão da vida privada de Marina, em especulações sobre sua sexualidade, em comentários desagradáveis quanto a sua aparência física, além de acusações diversas como as de que teria, ela mesma, forjado assinaturas para a Rede, "usado" o presidente Lula (de quem foi ministra do Meio Ambiente por sete anos), "sugado" o PSB. Complementando o show de horrores, as indefectíveis teorias da conspiração que, sabe-se lá como, responsabilizam-na pelo acidante aéreo que vitimou Campos.



Religião e bancos
Do cipoal de acusações, duas são tão insistentes quanto contraditórias, ainda mais por virem do petismo: a alegada ligação da candidata com a cúpula do Itaú e a suposta ameaça à laicidade do Estado que Marina representaria por professar a fé neopentecostal.

Quanto aos bancos, ora, Lula e Dilma não cansam de sustentar, com orgulho, que eles nunca faturaram tanto quanto em seus governos e, como mostra a prestação de contas da campanha eleitoral de Dima em 2010, o Itaú foi seu terceiro maior doador.

E soa no mínimo descriterioso que o petismo acuse Marina de ser refém do poder religioso quando não faz nem uma semana que a própria Dilma, após um mandato em que sacrificou as questões de gênero no altar dos pactos com a bancada religiosa, foi ao megatemplo da Igreja Universal pedir as bençãos do "bispo" Macedo, com quem deixou-se fotografar.

Tais acusadores exploram, assim, uma confusão ora recorrente entre a obrigação constitucional de manter a laicidade do Estado e o direito individual de liberdade de religião, do qual a pessoa que ocupa a Presidência da República não está privada. Prova disso é que há precedentes históricos: Geisel era espírita, Color e Dutra católicos, todos praticantes – isso não ameaçou a laicidade do Estado. Na eventualidade de ser eleita, as relações da Marina com o poder religioso, pela sua própria condição de evangélica, talvez tendam a ser fiscalizadas com mais atenção do que as dispensadas aos obscuros tratos da atual mandatária com tal bancada.



Candidatura enigmática
Decerto há muito a se questionar – ou mesmo a criticar - em relação à candidatura de Marina Silva, ainda mais nas circunstâncias excepcionais em que se consolidou. Suas ligações com Elena Landau e economistas da PUC/RJ podem ser lidas como indícios de uma política econômica ainda mais marcada pelos preceitos ortodoxos do neoliberalismo; sua habilidade em separar suas opiniões pessoais sobre temas polêmicos e sua postura republicana como presidente ainda precisa ser provada; não obstante os sete anos à frente do Ministério do Meio Ambiente, sua capacidade propriamente administrativa é um enigma (mas, sejamos justos: também o eram as de Collor, FHC, Lula e Dilma – ou seja, de todos os presidentes eleitos após o final da ditadura).

Porém, como procuramos relatar ao longo deste texto, não é sobre tais temas, de fato periclitantes, que o petismo tem inquirido Marina Silva. Muito pelo contrário. E a agressividade desmedida, essencialmente antidemocrática pois tolhedora do debate civilizado de propostas e programas, não é exclusividade do ambiente inflamado das redes sociais em períodos eleitorais. Ela também vem sendo promovida pelos chamados blogs "progressistas", os quais muitos ainda confundem com porta-vozes da esquerda - quando, na verdade e em sua ampla maioria, toraram-se mera corrente de transmissão do petismo. Isso fica uma vez mais evidente através das sucessivas tentativas de desqualificar Marina Silva que ora ganham destaque em suas páginas, com ataques pessoais baratos e modus operandi muito similares aos do jornalismo marrom de Veja, que justificadamente tanto criticam.


Tudo pelo poder
Parece incerto que tal estratagema dê resultado. O mais provável será que gere mais antipatia e desgaste à imagem de Dilma e do partido. Os petistas, que dizem tanto se orgulhar das administrações Lula e Dilma e do tanto que fizeram pelo social, melhor fariam se contrapusessem, no plano das ideias, dos programas e das realizações, as biografias da líder seringueira de origem humilde que se tornou referência mundial em desenvolvimento sustentável à da primeira mulher a alcançar a Presidência do país, com resultados polêmicos mas efetivos.

Não tem sido este o caso, pelo contrário. E ao substituir essa saudável disputa pela overdose de ataques grosseiros, o PT evidencia, uma vez mais e ao mesmo tempo, sua indistinção em relação às forças mais retrógradas da sociedade, até onde vai o seu apego descomunal pelo poder, e o vale-tudo que rege a sobreposição de seus interesses à missão, urgente, de desenvolver e aprimorar a democracia no Brasil, inclusive no que diz respeito à qualidade dos embates eleitorais.


(Caricatura de Marina Silva por Batistão retirada daqui e editada em desenho disponível aqui)

domingo, 3 de agosto de 2014

O "pessimismo" e os bodes expiatórios

Depois de dois anos marcados por escasso diálogo com a imprensa, a presidente Dilma Rousseff agora se digna a dar entrevistas, graças à proximidade crescente das eleições – e à possibilidade de perdê-las. Usou uma das mais recentes para acusar a mídia de "negativismo". Pouco depois, em um palanque, rotulou genericamente a oposição de "mercadores do pessimismo".

Foi a senha para que seus simpatizantes e militantes espalhassem aos quatro ventos a boa nova: a inflação está baixa, apesar de acima do teto estabelecido; a economia vai de vento em popa, não obstante as previsões agora apontarem para um PIB abaixo de 1%, um dos piores de toda a América Latina; a Educação é prioridade, apesar de, após 12 anos de PT, continuar na rabeira dos rankings internacionais, ao lado de potências como Granada e Serra Leoa.

Ou seja, o país vai muito bem, obrigado, e quem diz o contrário e desmente a excelência da gestão Dilma é a mídia malvada, ainda que esta muitas vezes se baseie em dados governamentais e em análises consolidadas entre analistas das mais variadas tendências.



Desculpa multiuso
Mas nem sempre a mídia brasileira serviu ao petismo como bode expiatório e cortina de fumaça para tirar a visibilidade das mazelas e dos problemas de suas administrações. Houve um tempo em que os reais e gravíssimos problemas de nossa mídia – oligopolização, elitismo, tendenciosismo, conservadorismo, entre outros ismos tão ou mais nocivos – faziam com que a reforma da mídia ocupasse a prioridade na agenda dos partidos não conservadores – inclusive do PT, que naquela época ainda convencia os incautos de que era uma força política de esquerda.

A presidência Lula foi perpassada pela urgência em regulamentar a mídia. Alegava-se, porém, ausência de clima político para mexer nesse vespeiro, mesmo no segundo mandato. Mas pareciam favas contadas que, se a candidatura Dilma vencesse, uma nova Lei de Mídia seria aprovada – e para tal Franklin Martins, secretário da Comunicação do governo Lula, deixara à candidata um projeto debatido, reelaborado e praticamente pronto.

Porém, e por livre e espontânea vontade, Dilma Rousseff perdeu, logo no início de seu mandato, uma grande oportunidade de promover a regulamentação da mídia, uma pauta até então dita prioritária pelo próprio governo. Ela tinha na ocasião mais apoio parlamentar do que Lula conseguira em seus dois termos e gozava ainda do período de tolerância com que, segundo os cientistas políticos, os brasileiros costumam brindar os presidentes recém-empossados.



Adiamentos sucessivos
Ao invés de avançar, Dilma surpreenderia a muitos com uma política de aproximação com a mídia, com direito a noite de gala na sede da Folha de S. Paulo - que durante a campanha divulgara uma ficha policia falsa da candidata - e a uma aula de como fritar omeletes, ao lado de Ana Maria Braga e seu papagaio global.

A partir daquele momento, e no decorrer dos meses seguintes, ficaria claro que a regulamentação da mídia fora adiada ad infinitum, dando lugar a uma estratégia de tentativa de cooptação de setores conservadores. Estes incluíam inimigos históricos do petismo, então contentes com o desempenho econômico sem sobressaltos e com um modelo de redistribuição de renda baseado na ampliação do mercado e do consumo, e não em uma reestruturação efetiva e protoigualitária de toda a pirâmide social, a qual reduzisse seus ganhos e status social.



Vitória de Pirro
A estratégia presidencial deu frutos, em um primeiro momento: seus índices de aprovação bateram recordes históricos, com picos inéditos em setores antes refratários a mandatários petistas.

Já quando tal tendência apenas começava a se delinear, apontamos, neste blog, para a fragilidade de tal estratégia e para o que representava de ameaçador em termos politico-ideológicos e eleitorais - por deslocar o pêndulo petista para uma pauta ainda mais conservadora, diminuindo a já rareante plataforma de esquerda e gerando perda de votos entre integrantes da seara canhota.

Alertamos, sobretudo, para o caráter fugaz de tal estratégia: tão logo o conservadorismo apresentasse o seu candidato, tais votos tenderiam a para ele refluir, e aí talvez fosse tarde para recuperar o voto dos esquerdistas que debandaram.




A história revelaria que, infelizmente, tais premissas estavam corretas. Das Jornadas de junho em diante, a aprovação a Dilma e suas intenções de voto como candidata presidencial despencaram e, apesar de oscilações para cima e para baixo, sem jamais atingir os patamares anteriores. Mais importante: como mostram as pesquisas, os votos que se foram e não voltaram são exatamente os referentes, por um lado, aos setores mais conservadores do Sudeste e, por outro, a categorias profissionais e estratos socioeconômicos historicamente ligados ao petismo em seu formato original, ideologizado e crítico às alianças de interesse e ao convencionalismo econômico.

Não é com satisfação que constatamos o acerto em nossas previsões. É, antes, com um sentimento de frustração e de impotência que vemos um partido dito trabalhista desperdiçar uma chance histórica de apresentar uma alternativa ao neoliberalismo, preferindo dar sobrevida a práticas políticas e, sobretudo, a ideologias orientadoras de políticas econômicas as quais teve a oportunidade de soterrar sob camadas de cal. Preferiu o inverso, chegando ao cúmulo de reviver até práticas privatistas, culminando com a concessão do Pré-Sal, medida que rompeu compromisso assumido em campanha.



Tietismo acrítico
E tudo isso se deu, em grande medida, por conta de uma turba de apoiadores e militantes que se comportam como fãs histéricos ante o ídolo - e não como cidadãos críticos e racionais, capazes de discernir e apontar erros e acertos mesmo se estes estiverem sendo praticados pela força política com a qual simpatizam. Mantêm uma relação de crença quase religiosa na clarividência petista - e não raro agridem e buscam desqualificar quem com eles não compartilha essa fé baseada no dogma, e não em fatos. Em última análise, isso leva a uma negação dos fatos e à condenação automática e invariável da mídia por eventualmente reportá-los.

Açularam tremendamente essa tendência as novas tecnologias de comunicação, destacadamente as redes sociais e demais recursos interativos trazidos pela web 2.0, os quais, pesquisas confirmam, tendem a estimular o movimento de manada e a isolar as vozes críticas.

Enquanto o petismo militante apoiava a guinada conservadora do governo, ocupava-se destilando seu ódio a Joaquim Barbosa e elegia a mídia como o bode expiatório para todo e qualquer problema, no mundo real os problemas derivados da má gestão pública se avolumavam: os relatos do genocídio indígena evidenciam a volta de um modelo de desenvolvimento arcaico e antiecológico, em descompasso com o momento civilizatório; agora, a volta da inflação faz estragos nos orçamentos domésticos, ao mesmo tempo em que o volume de endividamento das famílias – sobre o qual se sustenta parte da economia - atinge um nível temeroso; visto de perto, o desemprego evidencia uma dinâmica bem diferente da mostrada nos índices generalistas do IBGE, com férias coletivas devido a queda da produção indústria, reposição de quadros por salários menores, e maior desemprego entre profissionais com alta qualificação.



Estratégia diversionista
Mas os militantes, em seu fanatismo intransigente, continuam a atribuir tudo isso à mídia, que estaria insuflando um suposto "pessimismo negativista". Repetem, bovinamente, as críticas contra a mídia explicitadas pela própria Dilma, fingindo não se dar conta de que foi a própria presidente quem se acovardou ante a necessidade de regulamentar a mídia – pauta que, em obediência à agenda conservadora que abraçou e veio pra ficar, já foi devidamente retirada do programa de governo da candidata.

Afinal, a despeito e para além da urgência da regulamentação da mídia, é preciso dar aos militantes um bode expiatório para que ataquem, enquanto, no mundo real, o governo petista se rende cada vez mais ao conservadorismo, sob a complacência canina da militância.


(Imagem de autoria de Gordo Nerd, retirada daqui e editada)