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domingo, 29 de abril de 2012

Vazamento de inquérito: a mídia no banco dos réus


O vazamento do inquérito do caso Cacheira-Demóstenes, ao permitir acesso a uma série de evidências acerca de ações coordenadas pelo bicheiro visando fabricar e plantar escândalos na mídia, dirime dúvidas sobre a gravidade das acusações e o grau de envolvimento da imprensa numa operação que, de maneira indubitável, possui viés golpista, atentando contra a ordem constitucional.

Por outro lado, demarca o início de uma nova fase em que devem acirrar-se tanto as estratégias diversionistas dos setores beneficiários de tal esquema – leia-se demotucanato e mídia - quanto o confronto entre as versões que esta, acuada e prestes a sentar-se no banco dos réus, deve, com propósitos ilusionistas, oferecer e os fatos que se depreendem das evidências colhidas nos autos.


Vazamento suspeito
Uma primeira questão a ser pensada é a quem interessa o vazamento de um inquérito que tramitava em segredo de justiça e com que finalidade ele foi divulgado. Segundo o STF - que tornou pública a irritação que a divulgação indébita causou ao ministro relator Lewandowski e ao presidente Aires Britto, que teriam se reunido por cinco horas para discutir o caso -, além de membros da corte, só os advogados de acusação e de defesa haviam tido acesso ao processo . (Nota: ao contrário do que alguns analistas ora afirmam, quando Lewandowski liberou o acesso de membros da CPI ao inquérito, na sexta-feira, este já havia vazado e era passível de acesso em diversos sites.)

Afigura-se como mais provável hipótese que o vazamento advenha do campo da defesa, com vistas a pavimentar o caminho para anular o caso. Há um precedente para a adoção bem-sucedida de tal estratagema: a Operação Satiagraha – que, não por acaso, também dizia respeito a um enorme e ramificado conluio entre poder político-econômico e manipulação midiática.


Para muito além do Fla-Flu
Porém, os tempos no STF são outros, agora que conta com a liderança serena e segura de Ayres Britto, e parece pouco provável que o tribunal vá permitir que uma chicana tão barata alcance, uma vez mais, êxito. Ainda assim, a divulgação do inquérito – que absolutamente não interessa à acusação, que dispõe de fartas evidências comprovatórias – beneficiaria a defesa ao propiciar a deflagração de um cenário de ânimos exaltados em que a violação da lei pelos réus passasse ao segundo plano, substituída por uma nova edição, mais acirrada, do Fla-Flu político-ideológico entre apoiadores da aliança petista e de seus adversários demotucanos.

Uma primeira amostra de tal tática foi dada na tarde de ontem (28/04), por ocasião da reação ao tuitaço (mobilização através da rede social) que colocou a hashtag #VejaGolpista no topo dos assuntos mais comentados no Brasil e no mundo. Horas depois, a reação conservadora, embora sem lograr o êxito de seus opositores, viria com a tag #VejaNelles, que entrou para o TT Brasil.


 Democracia ameaçada
Ora, os fatos vazados do processo trazem evidências que comprovam não ser mais possível – se é que um dia foi – limitar a tal falsa dicotomia os termos do debate público. O que está em jogo, agora, não são as inclinações político-partidárias dos cidadãos e seu agrupamento em torcidas opostas, a se digladiar, mas a existência – corroborada em uma montanha de provas - de um milionário esquema criminoso com ramificações públicas e privadas, nas três esferas do poder e - , talvez o mais grave - que manipulou, plantou matérias e as editou em pelo menos um grande veículo de imprensa, com consequências tão graves para a ordem democrática do país que o impeachment de um Presidente da República eleito chegou a ser cogitado.

Ante tais fatos, não importa se o leitor ou a leitora simpatiza com o PT de Lula e Dilma, com o PSDB de FHC e Serra ou com quaisquer outras figuras e partidos da fauna política brasileira. A ordem jurídica do país e a obediência à Constituição – para não mencionar a ética cidadã - estão acima de tais predileções. Graves crimes foram cometidos e precisam ser punidos, doa a quem doer. Simples assim.


Provas falam por si
Transformar um caso jurídico dos mais estarrecedores, apoiado em farta documentação, em uma mera guerrinha de torcidas só interessa aos réus e à mídia, que, tem, pela primeira vez em nossa história, um alto volume de provas contra si reunidas em um processo judicial. Essa politização barata lhes fornece munição para ampliar sua cortina de fumaça, caracterizando o caso – como já vêm fazendo – como mais um round entre “os defensores da imprensa livre” de um lado, e, de outro, “os agitadores/a militância paga/os blogs sujos”, “que defendem a censura/que querem encobrir o mensalão/que são chapa-branca” e por aí vai - sempre de acordo com a cartilha de estereótipos com que tipifica os que aos interesses da mídia se opõem.

Por isso mesmo, há de se refletir se o momento é mesmo de manifestações ruidosas - que tendem a facilitar tremendamente a tarefa diversionista midiática de circunscrever o caso à militância política de esquerda, caracterizando-a como massa de manobra e sobrepondo o aspecto político do caso à sua natureza jurídica -, ou se a hora é de reafirmar, serenamente e sem recair no Fla-Flu e na provocação dos trolls, o primado da Justiça e a força dos fatos apurados pela Polícia Federal e descritos nos autos.


Guerra de informação
De qualquer modo, o maior desafio, agora, será difundir a real dimensão do caso para além dos limites das mídia corporativa, fazendo com que as parcelas mais conservadoras do público, tanto em termos das formas como buscam ou recebem informação quanto de posicionamento político, tomem ciência da ameaça à ordem democrática que, efetivamente, tem significado o conluio entre crime organizado, políticos da oposição e imprensa.

Neste momento, carregar ideológica e partidariamente as denúncias é contraproducente, assim como, é mister reconhecer, limitar sua difusão aos circuitos alternativos  de comunicação  - não obstante o importante papel destes - é insuficiente. Será preciso alcançar o leitor/ouvinte/espectador não familiarizado com blogosfera e redes sociais e fazê-lo tomar conhecimento dos crimes relatados nos autos. Trata-se de um desafio hercúleo - posto que setores da própria mídia farão de tudo para impedir ou deturpar a circulação de tais notícias -, mas necessário.


Atualização (20h16min): A Record, ao noticiar em seu portal, com o máximo destaque, que "Serra deu R$34 milhões à revista Veja quando era governador de SP" dá mostras de que nem toda a mídia sucumbirá ao diversionismo corporativo.

(Imagem retirada daqui)

terça-feira, 24 de abril de 2012

A CPI e as estratégias diversionistas da mídia

As reações do grosso da mídia à Operação Monte Carlo, às ligações Cachoeira-Demóstenes-imprensa, e à aprovação da respectiva CPI têm apresentado características que, embora não surpreendam, suscitam preocupação e desalento.

A esperança de que as evidências de associação com o crime organizado que paira sobre setores da imprensa fosse, por sua gravidade, promover um processo de revisão de seus métodos, condutas e deontologia se dissipa ante a constatação de que omissões, distorções e um perfil marcadamente partidário de atuação continuam ditando o perfil da cobertura do tema.


Operação-abafa
Em um primeiro momento, tratou-se de abafar o caso, já que este envolvia um dos ídolos do neoudenismo midiático – e, logo se soube, a mais raivosamente antipetista das revistas semanais. Tal fase durou pouco mais de uma semana, até que o burburinho gerado na internet, somado à gravidade das acusações contra Demóstenes, fez com que parte da mídia – talvez receosa de que seu silêncio fosse interpretado como cumplicidade criminosa – passou a acompanhar o caso.

É forçoso constatar, no entanto, que isso se deu de forma relutante – ainda que sem o estardalhaço moralista costumeiro (substituído por uma prudência acusatória inaudita) e se valendo de pesos e medidas desproporcionais aos habitualmente empregados na sucessão de denúncias contra a aliança governista, a mídia teve de se resignar a entregar a cabeça do senador catão à opinião pública.


Inversão de culpa
Teve início, então, um segundo movimento, que se perpetua até os dias atuais: tentar atribuir às forças demotucanas a autoria da CPI e o ímpeto investigativo contra “mais um episódio de corrupção”. Cabe destacar dois truques baratos acoplados a tal estratégia: o primeiro é que tal caracterização, ao tipificar o mais grave caso de envolvimento da imprensa com o crime organizado como mais uma falcatrua dentre tantas, o banaliza.

Esse segundo truque combina elementos de mistificação e de total desapego aos fatos, ao classificar o escândalo Cachoeira-Demóstenes como “mais um caso de corrupção no governo petista”. Desnecessário apontar o quanto a adoção de tal estratégia - à qual incorreu inclusive um ex-jornalista de prestígio, hoje convertido em hidrófobo blogueiro corporativo – é desrespeitosa para com o leitor/cidadão, concebido como um idiota desinformado incapaz de se aperceber do absurdo de se debitar as faltas da oposição conservadoras na conta das forças governistas que se lhe opõem.

O movimento de inverter responsabilidades e confundir a opinião pública contou, no início, com o auxílio luxuoso de Fernando Henrique Cardoso, que durante dois dias monopolizou a mídia que o adora e adula com declarações de apoio à CPI. Daí em diante passou-se a bola da embromação a focas menores, na imprensa e na política – inclusive lideranças do DEM (sic) bem próximas a Demóstenes -, que continuam a empiná-la à ponta do focinho, para deleite do público cada vez menor que lhes é cativo.


Bode expiatório
Um terceiro movimento midiático visa desviar o foco da atenção, de Demóstenes para alguma figura da aliança governista. A questão, para a mídia e para a oposição, não é de escala: ou seja, não importa que as acusações contra o ex-senador do DEM tenham centenas de provas a sustentá-las, enquanto as suspeitas contra, digamos, o governador Agnelo se baseiem em escassos indícios – eles apostam que, através do seu poder de ampliação, conseguirão convencer a opinião pública de que estas são mais graves do que aquelas. Para tais forças não importará, portanto, se, após o escrutínio milimétrico dos documentos da CPI, só lambaris e agulhinhas da aliança governista caírem na rede – o trabalho da mídia e dos setores conservadores será, então, transformá-los em pirarucus e em tubarões bem mais ameaçadores do que Demóstenes.


É dentro desse diversionismo descalibrado que se inserem as tentativas recentes de associar, a priori, o governo federal (ou qualquer governo estadual da aliança capitaneada pelo PT) e a Delta, empresa envolvida em uma série de denúncias envolvendo Cachoeira na Operação Monte Carlo. E tome a enxurrada de manchetes no estilo “DEM quer investigação da Delta em todos Estados (sic)”, ontem disponibilizada no site yahoo!, ou o destaque a falas no mesmo sentido vindas de ninguém menos do que Agripino Maia.


Mais alto o coqueiro...
Soma-se a essas estratégias da mídia a tradicional técnica diversionista do assobiar para o lado e fingir que não é com ela, como exemplifica a inigualável capa da última Veja, que assegura que “Do alto tudo é melhor”. Não é preciso ser um expert em Análise do Discurso para se aperceber que se trata, naturalmente, de uma afirmação a ser entendida como uma metáfora socioeconômica e geopolítica, uma confissão de que a publicação dos Civita vê tudo pela ótica da elite predadora que ocupa o cume de nossa pirâmide social, e, por outro lado, o faz como convém aos colonizados, sob o tacão ideológico e material aos interesses da nação imperialista situada nas altas latitudes do Atlântico Norte.

O que fica claro desde já é que a mídia corporativa brasileira, seja em sua porção predominante, ideologicamente tendenciosa e useira e vezeira em verdadeiras campanhas políticas que mal se assemelham a jornalismo, seja na banda podre propriamente dita, flagrada pela Operação Monte Carlo, não está disposta em promover um mea culpa efetivo e, muito menos, em cortar na carne seu tecido necrosado, à la News of the World.

A impressão que fica é que, para além da CPI, faz-se necessária uma grande mobilização popular de pressão pela regeneração da mídia brasileira em bases republicanas e pela instauração de instrumentos efetivos de monitoração e controle - como os existentes nas principais democracias europeias -, os quais preservassem a liberdade de expressão mas coibissem a difamação e a violação da lei.


(Imagem retirada daqui)

domingo, 22 de abril de 2012

A volta do diploma de Jornalismo


Na semana que se inicia pode vir a ser aprovada, no Senado, a PEC 33/09, que estabelece a volta da exigência do diploma de Jornalismo para o exercício da profissão. Fruto de uma longa articulação, coordenada pela Federação Nacional de Jornalistas (FENAJ) e que envolveu juristas, parlamentares e professores e profissionais do meio, a emenda constitucional, de autoria do senador Antonio Carlos Valadares (PSB/SE), seria, na prática, uma forma de reverter decisão do STF, que em junho de 2009 seguiu o voto do relator Gilmar Mendes e decidiu pela não-obrigatoriedade do título universitário.

Cronologicamente, tal decisão coincidiu, por um lado, com um período de reafirmação da blogosfera política brasileira como polo de contrainformação e análise e, por outro (e um tanto em decorrência da crítica de mídia pelos blogs produzida), da evidência de que a crise ética do jornalismo praticado pelos grandes grupos midiáticos transcendera, em muito, os limites do aceitável.

Excesso de simplismo
Desse modo, o debate sobre a exigência do diploma tornou-se não apenas palco de uma disputa por espaço e e legitimidade entre blogueiros e jornalistas – disputa esta a meu ver marcada pela premissa equivocada de oposição entre atividades afins -, mas um tema assaz contaminado pelo mau jornalismo que as principais corporações de mídia têm praticado – a um ponto tal que, a julgar pelo grau de virulência das manifestações contra o jornalismo e a favor da decisão do STF, estas parecem frequentemente partir do pressuposto de que a atividade jornalística se resume a trabalhar para Veja, Folha de S. Paulo, Estadão ou Rede Globo.

Negligencia-se, assim, o exame de uma situação complexa, em favor de um argumento geral excessivamente simplista: há maus jornalistas com diploma atuando na grande mídia, então o diploma não serve para nada. Trata-se de um sofisma.

O que se despreza com essa visão reducionista e descolada da realidade é, em primeiro lugar, que o Jornalismo, como campo, engloba uma enorme área de trabalho e de estudo, no setor público e no setor privado, para muito além da porcentagem ínfima de formados que vai trabalhar nos grandes veículos de mídia.


A mídia invisível
Em segundo lugar, tal opinião incorre em uma generalização injusta. Pois se é verdade que a mídia corporativa tem atuado como partido político de oposição às administrações federais petistas – e que os jornalistas que emprega, em sua maioria, deixaram-se cooptar -, é fato também que a estratégia de comunicação estabelecida a partir do governo Lula, ao pulverizar a verba publicitária federal, limitada a 499 veículos em 2002, em nada menos do que 5.297 veículos em 2009, assegurou a manutenção e a eventual expansão de uma mídia capilarizada que deu emprego a um número substancialmente maior de jornalistas comprometidos com os fatos e a deontologia da profissão, e não com a plataforma neoliberal da aliança mídia-demotucanato.

A internet, com a blogosfera e as redes sociais, teve um papel relevante nas últimas eleições, como o próprio então presidente Lula reconheceu em encontro com blogueiros. Mas negligenciar a importância que as milhares de rádios e de publicações do interior do país tiveram na eleição de Dilma Rousseff corresponde a adotar uma postura elitista e obtusa. Os dados oficiais são eloquentes: em 2003, a verba publicitária da Presidência desaguava em apenas 499 veículos, número que subiria para 4.795 cinco anos depois, contemplando principalmente rádios (270 em 2003; 2.597 em 2008) e jornais de médio e pequeno porte (179 antes, 1.273 depois).


Maniqueísmo e contrasenso
Ora, as dezenas de milhares de radialistas, pauteiros, editores, redatores, repórteres, diagramadores e demais profissionais de imprensa que ganham honestamente sua vida trabalhando como jornalistas não podem ser socialmente achincalhados - e terem o diploma pelo qual estudaram anos picotado - só porque uma “elite” numericamente ínfima de profissionais dos grandes grupos de comunicação sucumbiu, aceitando leiloar sua pena e seus escrúpulos na bacia das almas da mídia corporativa brasileira em sua maior crise ética.

Em terceiro lugar, a generalização de uma visão negativa da atividade jornalística como justificativa para defender a não-obrigatoriedade do diploma finge desconhecer o fato de que o fortalecimento – inclusive ético – e o aperfeiçoamento do desempenho de determinado ramo de atuação depende, em larga medida, justamente de sua constituição como área profissional - incluindo desde o ensino (teórico, prático e deontológico) ao exercício das profissões a tal área conectadas. Daí decorre a constatação de que é um contrasenso cobrar pelo aprimoramento ético da atividade jornalística e, ao mesmo tempo, apoiar uma medida que só faz enfraquecê-la institucionalmente. Pois quanto menor o poder institucional do jornalismo - e, em decorrência, dos jornalistas -, maior o poder do grande capital de manipular a seu bel-prazer os meios de comunicação tradicionais.


Formação ética
Além disso, tal posição faz com que se negligencie a constatação de que os (bons) cursos universitários de Jornalismo, além de ensinarem o aspecto operacional da profissão, de proporcionarem aos alunos uma cultura jornalística a qual o leigo dificilmente tem, enfatizam a formação ética e deontológica para o exercício da profissão (se alguns profissionais depois não a seguem, isso é outra questão, que deveria ser passível de punição pela sociedade).

Porém, mesmo essa desejável instauração de mecanismos de regulação ou de autorregulação ética foi dificultada ainda mais pelo fim da exigência de diploma, que tornou o campo ainda mais desregulamentado. Nesse sentido, a aprovação da PEC 33/09 – que, vale lembrar, não justifica a acusação de reserva de mercado, pois não torna o campo exclusivo - abriria caminhos para a adoção de parâmetros éticos para a profissão e um modo efetivo de torná-los correntes e de punir os desvios, à maneira do que ocorre nos conselhos regionais de medicina, odontologia, engenharia, etc.).

Até agora, de concreto, a não-obrigatoriedade do diploma só manteve ou agravou efeitos deletérios: fragilizou ainda mais as condições para o exercício da atividade jornalística, as garantias trabalhistas e, mesmo em um ambiente de vigor econômico, aumentou o desemprego e arrochou os salários; “naturalizou” de vez o contrato do jornalista como entidade jurídica - uma excrescência que deveria, há muito, ser coibida pelos poderes de direito -, e instaurou a insegurança profissional ou estudantil em jovens profissionais e estudantes universitários, com consequências psicológicas potencialmente graves.


Contrato quebrado
Este último item nos leva ao último ponto a ser abordado por este texto, versando sobre uma questão de justiça histórica e de expectativa de direito. Durante 40 anos, milhares de jovens ingressaram anualmente num curso universitário – muito concorrido, no caso das boas universidades - com a garantia legal de que, após quatro ou cinco anos assimilando teorias e conceitos, aprendendo e praticando técnicas à exaustão e realizando dezenas de trabalhos, receberiam, ao final, um diploma de curso superior necessário ao exercício da profissão de jornalista.

De repente, decide-se subtrair substancialmente a importância de tal diploma: justamente em um momento de revalorização do ensino superior, em que novas classes sociais adentram, pela primeira vez, as portas da universidade, que se enobrece ao se democratizar (ainda que só um pouco), as dezenas de milhares de bacharéis em Jornalismo (ou em Comunicação Social, habilitação Jornalismo), dos recém-formados aos prestes a se aposentar, são informados que o diploma específico pelo qual tanto se dedicaram tornou-se algo entre um diploma universitário genérico e um pedaço de papel sem valor.

É preciso uma dose brutal de insensibilidade social, de desprezo pela coerência jurídica e histórica, de negligência para com o papel formador do ensino superior em sua especificidade planejada, e de desrespeito aos direitos adquiridos e aos esforços pessoais de longo prazo para não se escandalizar com a arbitrariedade de tal decisão – e para deixar de temer que ela se alastre para outros campos profissionais passíveis de incomodar o grande capital.


O ressentimento enquanto critério
É compreensível e se justifica de forma plena que a inaceitável atuação da grande mídia nos anos recentes tenha gerado um grande volume de insatisfação e de repulsa, ainda mais em blogueiros que procuram fazer um trabalho sério de contrainformação. Agora, é preocupante que tal ojeriza tenha derivado para um ressentimento generalizado e generalizante, e que este tome o lugar do critério e do rigor, gerando uma aversão ao jornalismo como atividade e aos jornalistas em geral e fazendo com que, no caso da não-obrigatoriedade do diploma, muitos blogueiros que se dizem de esquerda tenham se aliado às posições de Gilmar Mendes, da plutocracia midiática e do grande capital – que vibraram com a conquista de sua bandeira histórica - contra a ABI, a FENARJ, os sindicatos de trabalhadores e as demais associações e pessoas físicas que defendem o jornalismo.

Atravessa-se, assim, a arisca fronteira entre o voluntarismo militante e a ingenuidade política.

terça-feira, 17 de abril de 2012

A sexualidade nas telas


Dois filmes em cartaz têm como tema sexualidade e universo afetivo nos dias atuais, a partir de personagens adultos e examinando tópicos como prazer, solidão, novos e velhos ritos de acasalamento, carência, sexo (com amor e sem amor), além, é claro, do papel das novas tecnologias nos relacionamentos interpessoais.

Shame, dirigido pelo cultuado Steve McQueen (Hunger), acompanha o cotidiano de um trintão atlético e bem-sucedido (Michael Fassbender, indicado ao Globo de Ouro) que, a despeito de sua aparente timidez, tem uma vida sexual intensa e diversificada, fugindo do compromisso como o diabo da cruz. Porém a chegada inesperada da irmã – uma cantora com tendências depressivas – e o envolvimento com uma secretária que questiona seu horror a envolvimento emocional vão, pretensamente, levá-lo a se defrontar consigo mesmo


Ao menos era essa a intenção. Trata-se, no entanto, de uma narrativa que, além de não avançar para além do argumento inicial, peca pelo moralismo: não sendo hábil em caracterizar, na fase inicial do filme, um presumido vazio existencial do protagonista, a impressão que fica, em última análise, é que o personagem de Fassbender é punido por ser sedutor e gozar de uma vida sexual muito ativa e diversificada. Ou seja, a velha e conhecida “Síndrome de Freddy Krueger”, vulgarizada no “transou, morreu” dos filmes de horror, deslocada para o habitat de um filme “sério”, cult e com clara ambição de crítica sociológica. (O título que o filme recebeu na Espanha, Deseos Culpables, entrega o ouro.)
Jantar constrangedor - para o casal e para o espectador
Muito da má impressão moralista que o filme causa advém da pobreza do roteiro, que tem momentos constrangedores, daqueles de provocar vergolha alheia - como quando, após um primeiro encontro em que o personagem de Fassbender não só é rejeitado, mas obrigado a ouvir um sermão sobre afetividade e compromisso, ele, até então um alegre e desreprimido namorador, cai de amores pela garota, sem o roteiro fornecer a mínima motivação que justifique tal fascínio.

Assim, o sobrevalorizado McQueen - que abusa da criação de “atmosferas” ambientadas por música eletrônica e dá mostras de confiar demais no poder epifânico do material filmado, em detrimento do aperfeiçoamento do roteiro –  acaba, quem diria, por recorrer à velha moral repressiva para produzir um filme moderninho.Shame on you, McQueen!



Jovens Adultos tem elenco afiado
Bem melhor resultado alcança o drama com pitadas de humor Jovens Adultos, protagonizado por Charlize Theron (indicada ao Globo de Ouro) e dirigido com mão segura por Jason Reitman, de Amor sem Escalas e de Juno.

Ela interpreta Marcis, uma ghost-writer de livros infanto-juvenis que vive uma vida confortável mas um tanto vazia em Minneapolis, a bela capital setentrional apelidada de Mini Apple por conta de seu cosmopolitismo e de sua paisagem urbana extasiante, a qual ela observa da varanda de seu amplo apartamento, no vigésimo andar.

É na solidão desse local, entre tentativas de trabalhar no tal livro e distrações frequentes com e-mails, redes sociais e games (a narrativa retrata muito bem a presença quase invasiva do universo virtual no cotidiano de hoje em dia) que Marvis recebe um anexo com foto anunciando o nascimento de um bebê, filho de um ex-namorado. Acusa o baque.

Após mais uma noite de sexo casual e insatisfatório, ela decide, num rompante, pegar suas tralhas, seu cãozinho e reencontrar o antigo namorado (Patrick Wilson, o protagonista da série A Gifted Man), que ainda mora em Mercury, a cidade caipira onde ela vivera sua adolescência de rainha da beleza.

Patton Oswalt quase rouba a cena
 O roteiro de Diablo Cody (que ganhou o Oscar por Juno) é cheio de sutilezas e tem personagens sólidos e complexos – com destaque para a gordinho vivido por Patton Oswalt, traumatizado após ter sido brutalmente espancado na adolescência por suspeitarem que fosse gay. Cody manipula com maestria o processo de identificação do espectador com os personagens e dosa muito bem o equilíbrio entre drama, humor e pitadas certeiras de sarcasmo para contar o retorno de Marvis, jogando com a dualidade entre sua imagem exterior (a ex-cheerleader e atual autora bem-sucedida, despertando rancores, admiração e inveja) e sua auto-imagem em crise (extremamente carente, alcoólatra, à beira do desemprego e de um colapso nervoso). Ao contrário do que acontece em Shame, aqui a crise existencial da personagem é bem crível, não só porque sua vida afetiva e sexual, embora bem ativa, é logo no início caracterizada como insatisfatória para ela, mas por aludir, através da foto do bebê de seu ex-namorado, à questão da maternidade e a um episódio do passado que só ao final do filme será revelado.

Reitman é um diretor que cuida com esmero dos enquadramentos e que se vale muitas vezes apenas das imagens, em montagem eventualmente criativa, para insinuar sentidos e criar climas. Observe-se, nesse sentido, o modo como filma a noite de Mercury ou as transformações frenéticas do visual de Mavis, com atenção aos rituais detalhistas e algo penosos aos quais ela se submete em suas idas e vindas ao salão de beleza.

Jovens adultos, embora longe de ser uma obra-prima, consegue tocar com propriedade em alguns dos principais dilemas afetivos atuais, uma era em que, felizmente, se pode usufruir a sexualidade de forma muito mais livre e desreprimida, mas sem que isso, necessariamente, torne menos tenso, no universo afetivo, a paradoxal relação entre necessidade de liberdade e desejo de estabilidade, ou seja, de ininterrupta e continuamente amar e ser amado.


(Imagens retiradas, resectivamente, daqui, dali e dacolá)

terça-feira, 10 de abril de 2012

A dupla moral da mídia no caso Demóstenes


A pressa com que a mídia tenta tirar de cena o escândalo Demóstenes-Cachoeira, evidente nos últimos dias, deixa claro até para os que ainda insistem em nela crer que sua campanha implacável contra a corrupção e seu moralismo vigilante são de fancaria e atendem a interesses político-partidários específicos.

Tal afirmação certamente parecerá redundante para os que seguem a blogosfera e acompanham a profunda crise – material, de credibilidade e ética – em que a imprensa brasileira se meteu na última década, mas é preciso não se iludir: a internet, entre outros fatores, trouxe efetivos avanços à diversidade ideológica da comunicação no país, porém a mídia corporativa ainda preserva um considerável poder de repercussão junto a diversos estratos da população.


Crime ramificado
E é precisamente através do exercício de tal poder – decadente, mas efetivo – que a mídia, embora não tenha conseguido abafar e tenha adiado ao máximo a publicização do escândalo envolvendo Demóstenes Torres (eleito pelo DEM/GO), vem efetivamente ocultando do grande público que o país está diante de um dos maiores e mais bem documentados casos de corrupção de sua história.

Pois, além de envolver cifras impressionantes, as ramificações do poder amealhado por Cacheira e seus comparsas, apontam as provas, atingem o Senado, a Justiça, a atual administração estadual de Goiás, a PM goiana, os grupos de mídia e mais um sem-número de entes privados, alguns deles com enorme poder de mobilização de lobbies e de capital.

Comparada, no entanto. à cobertura dispensada ao chamado mensalão - que, a partir de uma denúncia de ninguém menos que o ex-collorido Roberto Jefferson, de muito “ouvi dizer” e de factoides que, hoje se sabe, partiram do próprio núcleo duro dos envolvidos na Operação Monte Carlo, parou o país por meses em 2005 – a atenção dispensada pela mídia às graves evidências colhidas na operação Monte Carlo é minúscula e na base do “vamos deixar pra lá” - vide o apelo cínico do catão-mór da imprensa Merval Pereira para que “não politizem as denúncias”.


Cadê o polvo?
Ora, quando as denúncias envolviam as forças políticas que desagradam à plutocracia midiática a qual Merval serve, a regra era uma exploração política máxima das acusações - mesmo que de rumores, factoides ou armações se tratasse; mesmo que dissesse respeito a uma tapioca de R$8,00, a uma diária de motel ou a uma carona num avião. Daí a exploração era não só política, mas eleitoreira e na base do derruba-ministro.

As mais de 40 capas de Veja contra um determinado partido político, sempre repercutidas pelo consórcio midiático de jornais, revistas e emissoras de rádio e TV - que, como reconhece uma das principais executivas do setor, atua como partido político –, aí estão para nos lembrar de como era voluntariosa e virulenta a indignação da mídia contra seus inimigos.

Mas e agora, que um dos políticos campeões de indignação moral pública sob os holofotes da mídia tem contra si contundentes provas que o envolvem até o pescoço em um esquema criminoso com penetração nacional, cadê as capas com um polvo maléfico? Os editoriais que se proliferam de jornal a jornal, cada vez mais empesteados da baba hidrófoba da autêntica indignação cívica? As passeatas cansadas querendo incendiar o congresso e dar um basta nessa democracia que só elege corruptos?



Ameaça à democracia
Tudo isso somado, é preciso se ter claro que, para muito além de sua significação para as relações entre corrupção e mundo político, as evidências contra o senador – e, até anteontem, bastião midiático da ética - Demóstenes Torres são reveladoras da ameaça à democracia que, no Brasil, as táticas empregadas pelo consórcio entre partidos conservadores e mídia corporativa representam.

Idealmente – e de acordo com o próprio papel social que historicamente reivindica para si -, uma das principais funções da imprensa seria informar o cidadão acerca dos meandros, práticas e significados das ações políticas e, assim, em um regime democrático, ajudá-lo a se posicionar e a decidir o destino de seu voto.

Tal cobertura naturalmente também incluiria, em alguma medida, a apuração e denúncia de corrupção contra figuras públicas ou partidos, o que acrescenta ao mencionado papel político-informacional da imprensa a formação de juízos de valor moral não apenas quanto a determinados políticos, mas em relação à própria atividade política como um todo.


À margem da lei
Agora, se, como evidenciam as provas relativas à Operação Monte Carlo, uma organização à margem da lei - da qual seria beneficiário direto um senador da República - tinha a capacidade não só de influir, mas até de pautar relevantes setores da mídia de forma efetiva, inclusive com a criação de factoides sem lastro na realidade, não só a própria função institucional da mídia está seriamente comprometida, mas o funcionamento pleno da ordem democrática ameaçado.

Portanto, as denúncias devem ser politizadas, sim - e cabe à blogosfera e ao que restou dos setores da mídia comprometidos com o avanço democrático avivá-las e publicizá-las -, sem a demagogia populista que caracteriza a atuação do consórcio do conservadorismo político-midiático, mas no intuito de fazer chegar ao público a verdade dos fatos e a necessidade de justiça para tão graves transgressões.

E o ônus pelo comportamento da direita e da mídia não pode mais recair somente no aparato político e midiático - é preciso que o público/eleitor que lhes dá audiência e voto seja também cobrado. Pois não é mais possível, nesse caso, a manutenção de uma moral dupla. Aqueles que compraram o discurso neoudenista que coloca uma idealizada pureza ética como o virtualmente único parâmetro axiológico da política têm de se decidir: ou sustentam tal posição e renunciam tanto à fidelidade aos partidos conservadores que têm violado a ética quanto à mídia que camufla tais violações, aligeira escrúpulos e é leniente com tal trangressão; ou, arcando com ônus da hipocrisia, admitem que o que os moveu nunca foi a ética, mas sim a identificação com as posturas elitistas, preconceituosas e socialmente discriminatórias do conservadorismo brasileiro e da plutocracia midiática que o apoia.



Coerência, por favor
Pois o caso Demóstenes/Monte Carlo demostra, com abundância de provas, que o grau de degradação da mídia corporativa, em suas relações ocultas com as forças conservadoras, é gravíssimo. A perda da tábua de salvação do moralismo, por onde se equilibrava a direita nativa, implica no reconhecimento de que os setores conservadores não têm projeto para o país.

Ao contrário do que as aparências sugerem, não se trata de algo que mereça comemoração: ter uma oposição que atue de forma programática e apresente propostas alternativas às das forças políticas no poder e contar com uma mídia que - ainda que sem ilusões de imparcialidade efetiva ou de descomprometimento com o capital - atue nas balizas determinadas pela deontologia do jornalismo seriam duas conquistas que fariam evoluir muito a democracia brasileira.

Porém, no momento, como o caso Demóstenes-Cachoeira e a cobertura que (quase não) recebe da mídia evidenciam, seria irreal acalentar a esperança de tal evolução.



(Imagem retirada daqui)

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Introspecção e Mineiridade: Um Olhar Cultural



“Cinema é cachoeira” (Humberto Mauro)
  

Em um dos mais preciosos livros sobre cinema brasileiro, Paulo Emílio Salles Gomes chama o autor da frase acima, não sem uma pequena dose de ironia, de “nosso Griffith”, por ser Mauro possivelmente o primeiro cineasta nativo a sistematizar de forma abrangente a linguagem cinematográfica clássica – a exemplo do que fizera o referido cineasta norte-americano no início do século XX -, dotando-a, talvez, de uma pitada de brasilidade.

Escrito em um texto vivaz, elegante e fluente e com uma original metodologia de análise de filmes – reconhecida internacionalmente por críticos do porte de um Paul Willemen -, Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte (Perspectiva, 1974) proporciona um mergulho no universo mineiro de Mauro, buscando recriar a atmosfera em que foram precariamente produzidos, quatro décadas antes, os filmes que o “nosso Griffith” dirigira antes de deixar sua cidade natal rumo ao Rio de Janeiro, então capital federal. De alguns dos filmes da fase Cataguases restara pouco mais do que o roteiro, anotações, eventualmente uma ou outra foto – o que impinge ao autor do livro um trabalho de antropólogo cultural.

Nesse percurso, Paulo Emílio não apenas escava, faz aflorar e recria um cenário crível de um passado – sentimental, entre o rural e o urbano, tecnológico - como é tomado de uma espécie de nostalgia em relação a este – aí incluída uma paixão platônica por Eva Nil, que fora a mocinha de alguns dos filmes da fase Cataguases e, quando da visita do pesquisador uspiano, era uma austera senhora em que, segundo ele, ainda se adivinhavam traços da beleza de outrora.


Genealogias
Essa introspecção a qual o paulistano Paulo Emílio, em suas andanças pela Zona da Mata mineira, acaba por também envolver a nós, leitores, tem sido historicamente concebida - justa ou injustamente, de forma estereotipada ou não, como elogio, constatação ou detratação - como um dos traços distintivos da mineiridade.
 
Como tal ela pode ser encontrada já nos relatos dos primeiros viajantes, notadamente nas missões artísticas europeias da época colonial, os quais, fiéis ao determinismo vigente, enxergam nos amplos espaços cercados pelas verdes cadeias montanhosas do estado não só um condicionante natural à fixação e à contemplação, mas – e talvez de forma ainda mais efetiva – uma alusão metafórica a um estado de espírito que seria inerente à natureza e ao homem da região.

Mas sua tematização, de forma aberta, no âmbito da cultura brasileira, se instaura de forma mais intensa – e torta, sob o signo da negatividade - a partir de um manifesto assinado por ninguém menos que Vinicius de Moraes, quando o “poetinha” tinha pouco mais de 30 anos. Seu título, no entanto, não combina nem com poesia nem com os diminutivos tão ao gosto do que viria a ser o grande letrista da bossa nova, e é um preâmbulo do tom que domina o texto: “Manifesto contra os mineiros”.

Nas palavras de um dos biógrafos de Vinicius – o também mineiro José Castello -, “O poeta se opõe, com veemência, ao ‘olhar para dentro’ que caracterizaria, segundo ele, a escrita mineira. Discute a opção dos mineiros pela introspecção [olha ela aí de novo] e faz uma defesa apaixonada da literatura mais engajada no real e mais extrovertida (...)”:
 “Maior que vós mesmos é a humanidade que vos circunda; maior que vossa casa é o mundo; maior que vossos casos particulares, vossos segredos, vossa contida existência doméstica, é a miséria, a grandeza, a indiscrição, a sordidez do mundo”, ataca Vinicius.

A reação, como seria de se esperar, foi avassaladora. Uma tonelada de cartas, muitas delas anônimas, não poucas elogiando a mãe de Vinicius, chegaram à redação de O Jornal, periódico em que o poeta era colunista. O mundo das letras mineiro agitou-se, as armas da retórica à mão. Houve até quem sugerisse atacar as vidraças da casa do poeta com pães-de-queijo amanhecidos.


Para além das montanhas
Curiosamente, a defesa veio de onde menos se esperava: Fernando Sabino – o quarto mosqueteiro da modernidade literária de Minas, ao lado de Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino -, que mais para preservar seu amigo poeta, do que por convicção e fidelidade às ideias deste, pôs panos quentes e chamou os escritores conterrâneos à reflexão: talvez houvesse mesmo um excesso de introspecção e autocentrismo na produção contemporânea mineira, sustentou, procurando evidenciar, mineiramente, que a crítica de Vinicius, a despeito da generalização infeliz, se circunscrevia a certa produção literária, de tendências psicologizantes e despreocupada de questões sociais.

O próprio Sabino, anos depois, seria um dos principais renovadores literários na forma de expressar tais tendências introspectivas e as, digamos, reflexões existencialistas que supostamente caracterizariam a alma artística mineira: seu Encontro Marcado, publicado em 1956, não só trouxe uma lufada de ar fresco à literatura brasileira, com seu estilo telegráfico porém intenso – que, como observou o poeta, cronista (e personagem do livro) Paulo Mendes Campos, “acelerava o tempo” -, mas, ao reconstituir através do alter ego Eduardo Marciano suas próprias reminiscências afetivo-existenciais, traçou, a um tempo, um retrato da juventude de meio-de-século e um rico mosaico das referências culturais de uma das últimas gerações artísticas brasileiras com formação predominantemente literária.

O romance divide-se em duas partes (sendo que não poucos críticos – entre os quais me incluo – consideram a primeira muito superior à segunda), a infância e juventude de Marciano na Belo Horizonte de meados do século sendo o tema da primeira metade e a vida boêmia, vazia e de crise conjugal no Rio de Janeiro complementando o livro.


Legado híbrido
Trata-se de uma divisão que reflete um fluxo migratório recorrente de setores da inteligência brasileira. Pois a geração de Sabino e sua trupe marca uma espécie de ponto culminante de um fenômeno migratório-cultural que tensiona ao máximo a questão da suposta introspecção mineira, contrapondo-a ao locus mítico da descontração e da extrospecção nacionais, o qual o Rio de Janeiro representa. Com efeito, para além da negociação entre a preservação dos supostos traços do lugar de origem e a influência do novo meio, comum à condição de migrado, e de um repertório de estereótipos cômicos dicotômicos proporcionado por esta - o qual servirá a comédias do cinema brasileiro, à literatura e à oralidade popular na forma de piadas -, a presença mineira no Rio de Janeiro acabou por imprimir, a um tempo, uma marca de estilo e um salto qualitativo na literatura e no jornalismo nacionais, das veredas linguísticas de Guimarães Rosa à memorialística de Pedro Nava; da renovação da crônica brasileira nos anos 50 ao humor subversivo d’O Pasquim de Ziraldo, Henfil & cia.
 
A produção literária do país nos deve obras que examinem os frutos dessa migração regional de forma condizente, com um espírito investigativo que transcenda a atenção ao literário e ao jornalístico e abra generosamente os olhos para questões como a boemia carioca, o furor dos amores - Drummond trocando sopapos com Sérgio Buarque de Hollanda por conta de uma certa dama; Tom Jobim compondo Lígia em homenagem à esposa de Sabino -, a fossa existencial produzindo a bílis negra inspiradora dos cânticos e poemas a la Rimbaud.


Questões em aberto
A despeito de tal lacuna literária, é certo que essa inflexão além-montanhas da questão da introspecção como traço da mineiridade renova e problematiza o tema. Pois há, decerto, elementos da vida em Minas que a princípio desmentem a hipótese da introspecção, Por exemplo: a disseminação do verbo botecar (que para azar dos dicionários ainda não está dicionarizada), corrente em Minas, como alusão a um ato coletivo de confraternização social - e etílica - que aparentemente contradiz o “alheamento do que na vida é porosidade e comunicação” de que nos fala Drummond.

Mas será que contradiz mesmo, e a ponto de desautorizar, o caráter introspectivo da mineiridade? Ou permaneceria, latente, mesmo no humor de praxe como nas discussões acaloradas dos botecos, um certo regime discursivo, um determinado jogo de mais ocultar do que dizer, um “nunca dizer tudo mas de forma a deixar tudo dito” tão pleno de epifania o qual acaba, muitas vezes, por ser mais explícito do que, digamos, o sarcasmo explícito ou a argumentação cartesiana?

Quem sabe, se confirmada, a introspecção mineira, ao ocultar e embaralhar desejos e realizações, não venha a se constituir como uma exceção e um antídoto à era da hiperexposição da vida pessoal, identificada por Vladimir Safatle como a da sociedade da insatisfação administrada, na qual a recompensa egóica é tão fugaz que, mal realizado um desejo, outro imediatamente é reposto, e assim sucessivamente?

Trata-se, muito provavelmente, de questões irrespondíveis, imersas nos segredos de um lugar “onde o oculto do mistério se perdeu”, como assevera um compositor baiano – condição que acaba por remeter a outro dos fluxos migratórios externos do estado, do qual Ary Barroso, baiano de Ubá, é o protagonista inconteste, mas de modo algum o único. Minas são muitas.



(Fotos retiradas, respectivamente, daqui, dali e dacolá
Otiginalmente publicado pela Revista Mucury, que merece a visita.