“Cinema
é cachoeira” (Humberto Mauro)
Em um dos mais
preciosos livros sobre cinema brasileiro, Paulo Emílio Salles Gomes
chama o autor da frase acima, não sem uma pequena dose de ironia, de
“nosso Griffith”, por ser Mauro possivelmente o primeiro cineasta
nativo a sistematizar de forma abrangente a linguagem cinematográfica
clássica – a exemplo do que fizera o referido cineasta
norte-americano no início do século XX -, dotando-a, talvez, de uma
pitada de brasilidade.
Escrito em um texto vivaz, elegante e fluente e com uma original metodologia de análise de filmes – reconhecida internacionalmente por críticos do porte de um Paul Willemen -, Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte (Perspectiva, 1974) proporciona um mergulho no universo mineiro de Mauro, buscando recriar a atmosfera em que foram precariamente produzidos, quatro décadas antes, os filmes que o “nosso Griffith” dirigira antes de deixar sua cidade natal rumo ao Rio de Janeiro, então capital federal. De alguns dos filmes da fase Cataguases restara pouco mais do que o roteiro, anotações, eventualmente uma ou outra foto – o que impinge ao autor do livro um trabalho de antropólogo cultural.
Nesse percurso, Paulo Emílio não apenas escava, faz aflorar e recria um cenário crível de um passado – sentimental, entre o rural e o urbano, tecnológico - como é tomado de uma espécie de nostalgia em relação a este – aí incluída uma paixão platônica por Eva Nil, que fora a mocinha de alguns dos filmes da fase Cataguases e, quando da visita do pesquisador uspiano, era uma austera senhora em que, segundo ele, ainda se adivinhavam traços da beleza de outrora.
Genealogias
Essa introspecção
a qual o paulistano Paulo Emílio, em suas andanças pela Zona da
Mata mineira, acaba por também envolver a nós, leitores, tem sido
historicamente concebida - justa ou injustamente, de forma
estereotipada ou não, como elogio, constatação ou detratação -
como um dos traços distintivos da mineiridade.
Como tal ela pode ser encontrada já nos relatos dos primeiros viajantes, notadamente nas missões artísticas europeias da época colonial, os quais, fiéis ao determinismo vigente, enxergam nos amplos espaços cercados pelas verdes cadeias montanhosas do estado não só um condicionante natural à fixação e à contemplação, mas – e talvez de forma ainda mais efetiva – uma alusão metafórica a um estado de espírito que seria inerente à natureza e ao homem da região.
Mas sua tematização, de forma aberta, no âmbito da cultura brasileira, se instaura de forma mais intensa – e torta, sob o signo da negatividade - a partir de um manifesto assinado por ninguém menos que Vinicius de Moraes, quando o “poetinha” tinha pouco mais de 30 anos. Seu título, no entanto, não combina nem com poesia nem com os diminutivos tão ao gosto do que viria a ser o grande letrista da bossa nova, e é um preâmbulo do tom que domina o texto: “Manifesto contra os mineiros”.
Nas palavras de um dos biógrafos de Vinicius – o também mineiro José Castello -, “O poeta se opõe, com veemência, ao ‘olhar para dentro’ que caracterizaria, segundo ele, a escrita mineira. Discute a opção dos mineiros pela introspecção [olha ela aí de novo] e faz uma defesa apaixonada da literatura mais engajada no real e mais extrovertida (...)”:
“Maior que vós mesmos é a humanidade que vos circunda; maior que vossa casa é o mundo; maior que vossos casos particulares, vossos segredos, vossa contida existência doméstica, é a miséria, a grandeza, a indiscrição, a sordidez do mundo”, ataca Vinicius.
A reação, como seria de se esperar, foi avassaladora. Uma tonelada de cartas, muitas delas anônimas, não poucas elogiando a mãe de Vinicius, chegaram à redação de O Jornal, periódico em que o poeta era colunista. O mundo das letras mineiro agitou-se, as armas da retórica à mão. Houve até quem sugerisse atacar as vidraças da casa do poeta com pães-de-queijo amanhecidos.
Para além das
montanhas
Curiosamente, a
defesa veio de onde menos se esperava: Fernando Sabino – o quarto
mosqueteiro da modernidade literária de Minas, ao lado de Otto Lara
Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino -, que mais para
preservar seu amigo poeta, do que por convicção e fidelidade às
ideias deste, pôs panos quentes e chamou os escritores conterrâneos
à reflexão: talvez houvesse mesmo um excesso de introspecção e
autocentrismo na produção contemporânea mineira, sustentou,
procurando evidenciar, mineiramente, que a crítica de Vinicius, a
despeito da generalização infeliz, se circunscrevia a certa
produção literária, de tendências psicologizantes e despreocupada
de questões sociais.
O próprio Sabino, anos depois, seria um dos principais renovadores literários na forma de expressar tais tendências introspectivas e as, digamos, reflexões existencialistas que supostamente caracterizariam a alma artística mineira: seu Encontro Marcado, publicado em 1956, não só trouxe uma lufada de ar fresco à literatura brasileira, com seu estilo telegráfico porém intenso – que, como observou o poeta, cronista (e personagem do livro) Paulo Mendes Campos, “acelerava o tempo” -, mas, ao reconstituir através do alter ego Eduardo Marciano suas próprias reminiscências afetivo-existenciais, traçou, a um tempo, um retrato da juventude de meio-de-século e um rico mosaico das referências culturais de uma das últimas gerações artísticas brasileiras com formação predominantemente literária.
O romance divide-se em duas partes (sendo que não poucos críticos – entre os quais me incluo – consideram a primeira muito superior à segunda), a infância e juventude de Marciano na Belo Horizonte de meados do século sendo o tema da primeira metade e a vida boêmia, vazia e de crise conjugal no Rio de Janeiro complementando o livro.
Legado híbrido
Trata-se de uma
divisão que reflete um fluxo migratório recorrente de setores da
inteligência brasileira. Pois a geração de Sabino e sua trupe
marca uma espécie de ponto culminante de um fenômeno
migratório-cultural que tensiona ao máximo a questão da suposta
introspecção mineira, contrapondo-a ao locus
mítico da descontração e da extrospecção nacionais, o qual o Rio
de Janeiro representa. Com efeito, para além da negociação entre a
preservação dos supostos traços do lugar de origem e a influência
do novo meio, comum à condição de migrado, e de um repertório de
estereótipos cômicos dicotômicos proporcionado por esta - o qual
servirá a comédias do cinema brasileiro, à literatura e à
oralidade popular na forma de piadas -, a presença mineira no Rio de
Janeiro acabou por imprimir, a um tempo, uma marca de estilo e um
salto qualitativo na literatura e no jornalismo nacionais, das
veredas linguísticas de Guimarães Rosa à memorialística de Pedro
Nava; da renovação da crônica brasileira nos anos 50 ao humor
subversivo d’O
Pasquim de
Ziraldo, Henfil & cia.
A produção literária do país nos deve obras que examinem os frutos dessa migração regional de forma condizente, com um espírito investigativo que transcenda a atenção ao literário e ao jornalístico e abra generosamente os olhos para questões como a boemia carioca, o furor dos amores - Drummond trocando sopapos com Sérgio Buarque de Hollanda por conta de uma certa dama; Tom Jobim compondo Lígia em homenagem à esposa de Sabino -, a fossa existencial produzindo a bílis negra inspiradora dos cânticos e poemas a la Rimbaud.
Questões em aberto
A despeito de tal
lacuna literária, é certo que essa inflexão além-montanhas da
questão da introspecção como traço da mineiridade renova e
problematiza o tema. Pois há, decerto, elementos da vida em Minas
que a princípio desmentem a hipótese da introspecção, Por
exemplo: a disseminação do verbo
botecar
(que para azar dos dicionários ainda não está dicionarizada),
corrente em Minas, como alusão a um ato coletivo de confraternização
social - e etílica - que aparentemente contradiz o “alheamento
do que na vida é porosidade e comunicação” de que nos fala
Drummond.
Mas será que contradiz mesmo, e a ponto de desautorizar, o caráter introspectivo da mineiridade? Ou permaneceria, latente, mesmo no humor de praxe como nas discussões acaloradas dos botecos, um certo regime discursivo, um determinado jogo de mais ocultar do que dizer, um “nunca dizer tudo mas de forma a deixar tudo dito” tão pleno de epifania o qual acaba, muitas vezes, por ser mais explícito do que, digamos, o sarcasmo explícito ou a argumentação cartesiana?
Quem sabe, se confirmada, a introspecção mineira, ao ocultar e embaralhar desejos e realizações, não venha a se constituir como uma exceção e um antídoto à era da hiperexposição da vida pessoal, identificada por Vladimir Safatle como a da sociedade da insatisfação administrada, na qual a recompensa egóica é tão fugaz que, mal realizado um desejo, outro imediatamente é reposto, e assim sucessivamente?
Trata-se, muito provavelmente, de questões irrespondíveis, imersas nos segredos de um lugar “onde o oculto do mistério se perdeu”, como assevera um compositor baiano – condição que acaba por remeter a outro dos fluxos migratórios externos do estado, do qual Ary Barroso, baiano de Ubá, é o protagonista inconteste, mas de modo algum o único. Minas são muitas.
Otiginalmente publicado pela Revista Mucury, que merece a visita.
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