Os textos deste blog estão sob licença

Creative Commons License

terça-feira, 31 de julho de 2012

Safatle e a greve dos professores


Vladimir Safatle tem se revelado um dos mais perspicazes e profícuos pensadores das questões contemporâneas, com uma produção que combina reflexões de corte jornalístico – onde o texto analítico deve ser, a um tempo, mais concentrado e fluente – e incursões de maior fôlego, mormente acadêmicas.

Além do alto nível reflexivo que, seja qual for a modalidade de expressão, se depreende de seu trabalho, o articulista e professor do departamento de Filosofia da USP se destaca por recusar o comodismo – tão encontradiço em seus pares – e militar contra o senso comum e a favor de uma nova esquerda, o que faz dele exemplo de intelectual não dogmático, sintonizado com o seu tempo.

Reproduzo abaixo o contundente texto que Safatle produziu acerca da greve das universidades federais e da situação da Educação no Brasil, cujo título, convém lembrar, remete a uma pequena obra-prima do cinema – e uma ode à liberdade e à rebeldia juvenil -, dirigida em 1933 por Jean Vigo – cineasta que foi descoberto para o mundo por outro notável intelectual e militante da esquerda brasileira, Paulo Emílio Salles Gomes.



Zero de Conduta
Vladimir Safatle

Há mais de dois meses, os professores das universidades federais estão em greve. Após duas propostas consideradas insuficientes pela maioria do corpo docente, o governo parece disposto a endurecer as negociações. No entanto há de estranhar a maneira com que uma questão dessa natureza está sendo tratada.

Ao ganhar as eleições, o governo atual afirmou ser a educação sua prioridade. Mas, por mais que possa parecer uma tautologia, colocar a educação como prioridade significa, entre outros, assumir as demandas que vêm de seus profissionais como prioritárias. O que os professores querem é um salário digno e uma infraestrutura adequada para desenvolver atividades de docência, orientação e pesquisa.

Enquanto algumas pessoas que nada sabem da vida universitária usam espaços na imprensa para afirmar que os professores são a “elite do funcionalismo” e que, por isso, não deveriam reclamar, policiais rodoviários continuam ganhando mais do que docentes.

Os desafios brasileiros passam pelo fortalecimento da universidade pública, com sua capacidade de formação e pesquisa. A experiência de liberalização do ensino universitário por meio da proliferação de universidades privadas foi um retumbante fracasso.

Tudo o que se conseguiu foi produzir levas de profissionais semiformados, assim como instituições nas quais os professores acabam por ser repetidores, por estar afogados em cargas horárias que não permitem o desenvolvimento de pesquisas.

Vez por outra, quando o processo de financiamento das universidades públicas volta à tona, temos de ouvir duas opiniões no limite do caricato. A primeira consiste no argumento etapista tosco que afirma: primeiro, devemos investir na escola básica, depois, nas universidades. Claro.

E, enquanto o investimento da educação básica não chega a um nível adequado, deixemos as universidades serem sucateadas e destruídas. Tais pessoas têm um raciocínio binário incapaz de entender que o investimento em educação deve ser extensivo, caso não queiramos perder completamente o bonde do desenvolvimento social.

A segunda afirma que os professores universitários devem deixar de ser subvencionados pelo Estado e procurar financiamento para pesquisas na iniciativa privada.
Só um exemplo: se um pesquisador em psicologia procurar desenvolver uma pesquisa mostrando a ineficácia de antidepressivos, a quem ele deve pedir financiamento? À indústria farmacêutica?

Ou seja, ou o governo assume o custo de eleger a educação como prioridade ou é melhor não utilizar tal discurso em época de eleição.


(Publicado na Folha de S. Paulo, em 31/07/2012, Imagem copiada daqui)

domingo, 29 de julho de 2012

O Decreto 7.777 e o autoritarismo antigreve de Dilma

O modo como o governo Dilma Rousseff vem lidando com as greves do funcionalismo público deveria suscitar preocupação não apenas entre os diretamente envolvidos na questão, mas em todos que prezam pelo avanço democrático e pelo respeito aos direitos trabalhistas.

Como veremos no decorrer deste texto, o Decreto 7.777, publicado no último dia 25 e que prevê a substituição dos grevistas de órgãos federais por servidores estaduais e municipais, é o ponto mais baixo de um processo em que a conduta do governo tem se caracterizado pela falta de diálogo, pelo recurso ao ilusionismo financeiro, pela tentativa de jogar a opinião pública contra os grevistas - e, agora, com essa medida draconiana, por um autoritarismo incompatível, na forma e no conteúdo, com o país democrático, lar de políticas sociais avançadas e player internacional que o próprio governo constantemente alardeia sermos.


Já no início, uma guinada conservadora
Eleito como um governo de centro-esquerda que prometia aprofundar as conquistas da Era Lula, a administração comandada por Dilma, não obstante seus méritos pontuais, tem se caracterizado, desde o primeiro momento, pela primazia irrestrita que concede ao campo econômico em relação às demais áreas – inclusive Educação e Saúde – e pela falta de diálogo com a sociedade.

A prioridade irrestrita ao econômico que caracteriza a administração de Dilma se traduziu, em um primeiro momento (fevereiro de 2010), na readoção de um receituário à moda neoliberal, com um duríssimo choque anticíclico que teve como meta não apenas aumentar o então já alto superávit primário, mas zerar o déficit nominal [gastos menos despesas, incluindo pagamento de juros]. Em nome desse agrado aos bancos e ao mercado financeiro foi então anunciado um corte de R$50 bilhões nos gastos públicos, que afetou diretamente Saúde, Educação e demais áreas sociais (com exceção dos programas de renda mínima), estabeleceu um salário mínimo sem aumento real, fixado em mais que módicos R$545,00, e determinou a suspensão de novos concursos e de contratação de aprovados em concursos anteriores.


Kill the messenger
No mesmo mês de fevereiro este blog denunciou o caráter recessivo das medidas, sua incoerência com o que fora defendido durante a campanha eleitoral e, sobretudo, o retrocesso que, abrindo flancos político-ideológicos potencialmente danosos à centro-esquerda, significava em relação aos avanços do governo Lula. Só faltou sermos apedrejados por blogueiros e comentaristas ainda entusiasmados pela vitoria eleitoral e inconformados com o desplante de se criticar um governo que mal entrava em seu segundo mês, num cenário de crise, pelo que viam como meros ajustes na economia.

O jornalista e blogueiro Luis Nassif foi uma das raríssimas vozes da blogosfera a, no calor da hora, apontar a inadequação e a prognosticar danos futuros à economia brasileira por conta de tal “pacote econômico” - sem o qual, como ele demonstra em coluna da semana passada, o momento econômico atual tenderia a ser outro, bem melhor. Mas a equipe econômica chefiada por Mantega levaria meses para se dar conta do desacerto e voltar a apostar na expansão do crédito e do consumo e numa ralentada retomada de investimentos estatais como forma de melhorar o desempenho da economia – sempre sem exorcizar a obsessão com os altos superávits, o que acaba por levar, inexoravelmente, a resultados contraditórios, dos quais a atual situação do servidor público é, como veremos, exemplo cabal.


Perfis públicos
Antes, porém, examinemos a questão da falta de diálogo do governo com a sociedade, que é hoje traço distintivo do poder federal. Ela foi inicialmente interpretada como uma impressão advinda da mudança de estilo trazida pela sucessão presidencial, do expansivo e brincalhão Lula para a mais reservada e austera Dilma. Criou-se inclusive um anedotário a respeito, o qual, por sua vez, não esteve livre dos preconceitos que de ordinário imbuem as questões de gênero em um país profundamente machista.

Por outro lado, a própria mídia, interessada em criar um falso antagonismo entre a atual mandatária e o seu antecessor - em detrimento deste -, acabou por ressaltar, em inúmeras matérias, a “seriedade”, “determinação” e “objetividade” da presidenta como características positivas, em oposição ao que sempre viu como excessos, mau gosto e populismo inculto de Lula, a quem nunca engoliu. Ao final, como parece indicar o grau de aprovação pessoal de Dilma, o país não só se acostumou, mas acabou por afeiçoar-se ao seu estilo.


Silêncios do palácio
Ocorre, porém, como agora fica dolorosamente claro, que a questão nunca se restringiu a uma mera mudança de estilos pessoais na Presidência. É provável, na verdade, que as discussões sobre o tema tenham colaborado para desviar o foco do problema real: o fato de que foi a administração Dilma como um todo que abandonou a saudável prática de dialogar constantemente com a sociedade, vigente nos oito anos anteriores, e, sob uma liderança por demais concentradora e a primazia de uma área econômica que se crê onipotente e tem sempre a última palavra, isolou-se em tecnicismos e certezas palacianas.

No governo Lula, o diálogo constante com a sociedade – através de lideranças, sindicatos, grupos de trabalho, ONGs -, além de distender as tensões e, em algum grau, facilitar a empatia entre um lado e outro, dava a ambos, em curtos intervalos de tempo, uma noção dos termos pretendidos pelos requerentes e pelos donos das canetas. Sem isso, a atual administração dá frequentemente mostras de estar sendo surpreendida pelas demandas trabalhistas (o que é evidentemente falso, já que ela acompanha os sindicatos por outros canais, unilaterais), reage mal, demora uma enormidade para agendar uma mera reunião conciliatória (mais de um mês, no caso dos professores federais) e as raras contrapropostas que faz trazem a evidência do mais primário improviso.


Quem não se comunica..
No primeiro dos textos deste blog dedicados à greve dos professores federais, afirmei que a paralisação teria sido facilmente evitada se o governo tivesse simplesmente mantido o diálogo aberto. Tal premissa tem sido corroborada também pela greve dos funcionários públicos federais como um todo, que envolve 25 categorias profissionais, e que só foi deflagrada quando ficou claro que não havia possibilidade de diálogo. A nota oficial difundida pela CUT em relação ao decreto 7.777 confirma os aspectos deletérios do isolamento governamental: “Para resolver conflitos, o caminho é o diálogo, a negociação e o acordo. Sem isso, a greve é a única saída”.

Na ausência de tais canais de comunicação, o confronto entre grevistas e patrões, natural numa democracia, é deslocado do espaço público presencial de debate e negociação - que num governo democrático, trabalhista e alegadamente de centro-esquerda deveria ser a mesa de negociações - e virtualmente restrito, nas condições e frequência que o governo determinar, à arena pública – a qual, nas sociedades contemporâneas, é dominada pela mídia.


Mídia e mercado
E a mídia corporativa, como está sobejamente demonstrado na literatura a respeito, tem hoje seus interesses de tal forma consonantes aos do mercado que se tornou não apenas seu porta-voz, mas uma sua parte constituinte. Com ele divide, naturalmente, a adoção do receituário neoliberal como panaceia de todas as horas, evidência que o atual rumo dos países europeus em crise não apenas corrobora mas cujos efeitos, através do esgarçamento de seu tecido social, denuncia.

Para compreender como o governo Dilma tem conseguido, em larga medida, instrumentalizar a mídia – de ordinário, refratária ao governo petista - a seu favor durante as greves deste ano é preciso ter claro a afinidade entre a orientação neoliberal das corporações midiáticas - aí incluída sua repulsa pelo funcionalismo público e por tudo que seja estatal, com exceção das verbas publicitárias – e a hesitação de um governo em profundo conflito entre, de um lado, o “modelo” de retomada do papel do Estado tal como inicialmente a aliança federal petista propusera e, de outro, as restrições impostas pelo economicismo hegemônico no interior da administração, o qual tende a açular ainda mais os temores relativos à crise econômica mundial. (A respeito da aliança mídia-governo em relação à greve dos professores, vale muito a pena ler este post de Weden.)


Questões fundamentais
Como dito parágrafos acima, a situação dos servidores públicos ora em greve é didaticamente exemplar do efeito de tais contradições: ao mesmo tempo que eles assistiram, nos anos Lula, à notável expansão percentual de sua presença no mercado de trabalho nacional, veem-se sujeitos a longos períodos sem aumentos salariais e, no mais das vezes, a trabalhar em situações que variam do precário ao intolerável; enquanto boa parte do país se refestela – ainda que a custa de endividamento - numa festa de consumismo, desenvolvimentismo, otimismo e outros ismos, eles viram sua aposentadoria futura ser substancialmente reduzida, numa medida que combinou agressão à expectativa de direito de alguns e regressão dos direitos trabalhistas potenciais de toda a sociedade; enquanto uma maioria de brasileiros afirma, nas pesquisas, a prioridade que deve ser dada a educação, saúde e segurança pública, professores, médicos do SUS e policiais continuam não apenas sub-remunerados mas subvalorizados socialmente.

Queremos ou não ser uma nação com nível educacional aprimorado? Vamos realmente investir num modelo de saúde pública inclusivo e de qualidade, que preserve o cidadão tanto das filas insuportáveis do atual sistema público quanto da farra dos planos de saúde? Está no horizonte do país realmente enfrentar a questão da segurança pública de modo a erradicar nossos pornográficos índices de violência, de abuso policial e de corrupção? A resposta a essas perguntas passa, necessariamente, pela valorização não apenas do professor, do médico e do policial, mas de todo o aparato de recursos humanos que possibilita a ação do Estado.

E é nesse contexto, como um primeiro e necessário choque de realidade, que se insere a greve dos servidores. O movimento não é, de forma nenhuma, um episódio de mesquinhas disputas partidárias, como alguns aspones mal intencionados querem caracterizar, mas parte de um embate decisivo sobre que modelo de desenvolvimento vamos priorizar como país, qual lugar os recursos humanos e o próprio Estado enquanto agente social e ente econômico vão nele ocupar.


Autoritarismo e regressão
Porém ao recusar o diálogo e manter-se inflexível, ao apelar a artifícios enganadores e, sobretudo, ao radicalizar e lançar mão do instrumento por si autoritário do decreto para, na prática, violar o instituto do direito de greve, o governo Dilma transpassa a barreira do aceitável em uma sociedade democrática e suscita sérias dúvidas quanto às suas intenções e horizontes. Para a CUT, Esta inflexão do decreto governamental nos deixa extremamente preocupados. Reprimir manifestações legítimas é aplicar o projeto que nós derrotamos nas urnas.”

Pois graças à inflexibilidade, à atitude de confronto e, agora, à tentativa de esvaziar uma forma de protesto prevista na lei incitando fura-greves e procurando inseminar cizânia entre os próprios trabalhadores, assiste-se à irrupção de uma forma de autoritarismo inédita no passado recente do país, patrocinada por um governo que se publiciza como progressista e de centro-esquerda.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

A greve e os truques do governo


À medida que vêm à tona análises mais detalhadas da proposta do governo Dilma aos professores em greve, fica cada vez mais evidente que se trata não apenas de uma resposta insatisfatória em termos salariais e de estruturação da carreira. Depreendem-se do caso aspectos preocupantes quanto às estratégias comunicacionais adotadas pelo governo no episódio, no modo como ele concebe e se relaciona com o professor universitário no Brasil e, sobretudo, no que toca à posição da Educação ante a área econômica do governo, tendo em vista seu planejamento e perspectivas futuras.


Ilusionismo financeiro
Quanto aos aspectos propriamente salariais, claro está que a proposta do governo é de tal ordem sujeita a variações de dados macroeconômicos futuros e à definição exata de datas de reajuste – deixadas em aberto - que não se pode falar categoricamente em aumento. Pois, a depender da inflação de 2012, 2013 e 2014 e de como o governo dividirá percentualmente entre tais anos os reajustes salariais, estes podem ser anulados ou mesmo superados pelo aumento do custo de vida.

Aumentos trienais sem garantia de percentual acima da inflação não significam a priori aumento real, mas uma aposta.


Plano de carreira
A atual greve dos professores prioriza duas reivindicações: plano de carreira e melhoria salarial. Se esta, como vimos, depende de uma aposta, o plano de carreira delineado pelo MEC - que, embora protocolado em abril de 2011, recende a improvisação - apresenta, infelizmente, aspectos que não apenas pioram as condições atuais como evidenciam, de forma indubitável, a priorização das demandas da área econômica do governo em detrimento do planejamento sério e consequente do que deva ser a evolução profissional de um professor universitário.

Em meio a brechas e indefinições potencialmente danosas, o mais contraditório desses aspectos é a determinação de que mesmo mestres e doutores devem ingressar no magistério superior como Professor Auxiliar, e que só podem evoluir após os três anos de estágio probatório. Ora, isso, além de não fazer o menor sentido, é uma afronta à própria expectativa de direito anteriormente assegurada àqueles que ora cursam mestrado ou doutorado, para os quais ingressaram, em sua imensa maioria, justamente para ascender à (ou ingressar na) classe referente à sua titulação.


Papo reto
Se o governo realmente estivesse bem-intencionado e prezasse os professores das federais, não apresentaria uma aposta, mas uma proposta concreta de aumento salarial, superior à inflação projetada para este ano, e efetiva a partir de março de 2013 (pois um ano após o aumento de 2011). Simples assim.

Tivesse tomado essa medida trivial e apresentado um plano de carreira decente – obrigações básicas de qualquer governo, ainda mais de um que diz privilegiar a educação –, a greve já teria há tempos se encerrado.

Ao invés disso, após mais de um mês de paralisação, rompe o silêncio e monta uma verdadeira operação de marketing para divulgar sua proposta – incluindo um texto em que dá destaque aos aumentos maiores, relativos à ínfima minoria dos professores titulares,e tabelas comparativas sui generis, que, numa manipulação injustificada e claramente mal-intencionada, contrapõem os salários de 2010 aos que os professores poderão vir a receber em 2015. Convém lembrar que estamos em 2012.


Marketing e mídia
Com estratagemas tais, e contando com a colaboração preciosa da mídia – que tantos alegam ser implacavelmente contrária à administração Dilma -, o governo tem sido parcialmente bem-sucedido em sua estratégia de jogar o público contra a greve. Basta ler os jornais e portais – e, neles, os comentários – para se ter a impressão de que os professores universitários estariam prestes a virar os novos marajás: “45% de aumento!”, “R$17 mil reais”, “Maior aumento da história”. 

(Como se vê, a cobertura que a mídia destina à greve fornece mais um exemplo claro de que a oposição simplista entre PIG (Partido da Mídia Golpista) e governo Dilma não é efetiva, como querem alguns. E que havendo afinidade de interesses entre mídia corporativa e governo, a imprensa não se furta a se posicionar ao lado deste. Deixa de ser o malvado PIG e vira jornalismo amigo.)

Porém, a realidade fria dos números é bem outra. Para se aprofundar sobre os meandros da cobertura midiática, vale a pena ler os textos de Joana Tavares (no Vi o Mundo) e os de Sylvia Debassan Moretzsohn, “A lamentável cobertura da greve nas federais” (no post abaixo) e “O jornalismo cego às armadilhas do discurso oficial” (no Observatório da Imprensa).


Equívocos e autoritarismo
Ao apresentar aos professores universitários uma proposta que mal disfarça o seu caráter de peça de ilusionismo monetário, o governo Dilma denota possuir uma visão estreita e subvalorizada do que seja o docente de nível superior, esse ente público que fatalmente tem e terá uma função essencial na formação das novas gerações de brasileiros e no redesenho futuro do país.

A impressão que fica é que o governo os toma por tolos, incapazes de fazerem contas financeiras ou de desvelarem truques de marketing de massas. Isso evidencia a existência de um erro de postura da administração Dilma, certamente menos decisivo e efetivo, na prática, do que as propostas que apresenta podem ser, mas denotador, por um lado, de uma incompreensão profunda do que seja o professor universitário enquanto categoria profissional do Estado e, por outro, uma vez mais, da tendência a evitar o diálogo e a negociação ou a exercê-los em bases mínimas e restritas - a um passo do autoritarismo, como a autorização para o corte de ponto dos grevistas evidencia.


Contradições óbvias
É altamente significante da posição subalterna e desprestigiada que tanto o servidor público federal como a educação como um todo ocupam atualmente no país o fato de que o Ministério do Planejamento foi quem efetivamente comandou e deu a palavra final aos termos da inaceitável proposta apresentada aos professores. Mercadante, se digladiando entre sua passividade conservadora e sua ânsia por holofotes características, limitou-se, se tanto, a barganhar, enquanto o ministro do Trabalho sequer foi chamado à mesa de negociações.

Mais: o mesmo governo que faz de tudo para irrigar a economia através da ampliação do crédito – portanto, de capital advindo de endividamento junto ao sistema financeiro, que acaba por se traduzir em lucro para os bancos – parece não querer irrigá-la com salário – capital originário das relações sociais do trabalho, que teoricamente beneficiaria o assalariado (e, ainda mais, quem o emprega), mas que, na visão economicista predominante, eivada de premissas (neo)liberais, prejudicaria o governo por aumentar seus gastos.


Tire suas conclusões
Assim, no final das contas, apesar das inegáveis conquistas sociais representadas pela redução da pobreza no país, mesmo o investimento em áreas fundamentais como saúde e educação mantém-se submetido às diretrizes ditadas pelo setor financeiro, que tem na área econômica do governo o seu representante no Estado. Os bancos que atuam no Brasil são, atualmente, os que mais lucram no mundo. Já a educação oferecida no país ocupa posições vergonhosas em comparação com o contexto internacional. Diga o leitor qual é a prioridade do governo.



(Imagem copiada daqui)

Greve nas federais: cobertura pífia

Reproduzo, abaixo, texto da professora, jornalista e autora de livros essenciais sobre Comunicação, Sylvia Debossan Moretzsohn, que traz reflexões sérias e contundentes acerca da greve dos professores universitários federais e da cobertura ao movimento destinada. O texto foi originalmente publicado nos Cadernos de Reportagem do curso de Comunicação Social da UFF - cuja leitura recomendo -, e se encontra disponível neste link.


A lamentável cobertura da greve nas federais
Sylvia Debossan Moretzsohn

Sou professora de jornalismo na Universidade Federal Fluminense há 19 anos e acompanho, por interesse e dever de ofício, a cobertura jornalística em geral e, em particular, esta agora sobre a greve nas universidades federais, que já vai completar dois meses. Entendo que os jornais não possam entrar nas minúcias dos detalhes que envolvem as atuais reivindicações, mas deveriam ter a obrigação de esclarecer o que está em jogo. Sobretudo agora, que o governo finalmente se manifestou.
As reportagens do dia 14 de julho não dão esses esclarecimentos. A matéria da Folha ainda tenta relativizar os números do governo (40% e não 45% de reajuste para os próximos três anos). Ainda assim, não mostra que o índice maior de reajuste é apenas para os professores titulares, que representam uma minoria ínfima do total de docentes: fala, como a maioria dos demais jornais, em “doutores”, pura e simplesmente.
O mais grave, entretanto, não é isso: é que a proposta, a rigor, é previsivelmente de redução salarial, e não de reajuste. Jornalisticamente, daria bela manchete, não é? É uma questão de fazer contas. A propósito, indico este link, em que um professor da Federal de Sergipe corrige os números.
Não é tudo, porém, e quem me chamou a atenção para isso foi meu colega Kleber Mendonça, também da UFF. Nenhum jornal, até agora (que tenhamos visto), mencionou as armadilhas embutidas no novo plano de carreira. Por ele, como se pode constatar neste link, todos os novos professores, independentemente de sua titulação, ingresarão no nível mais baixo da carreira, como auxiliares, e não poderão mudar de classe enquanto estiverem em estágio probatório. Na prática, isso significa que aquele que já poderia estar recebendo como doutor ficará com remuneração inferior durante três anos (o período do probatório).
Note-se que os concursos, há muitos anos, vêm sendo abertos apenas para doutores, e só excepcionalmente para mestres. Ou seja, exige-se a titulação, mas a remuneração correspondente pode esperar. Isso é porque o governo diz que quer valorizar os professores de maior titulação... Além disso, as progressões se darão com base em critérios ainda a serem definidos pelo MEC, e não pelos departamentos, como é hoje. Ou seja, aceitar a proposta significa aceitar critérios que não foram explicitados. Maquiavel foi mesmo um gênio, não foi?
O pior é que a aprovação de tal medida representará um retorno aos tempos da ditadura, em que as universidades não tinham autonomia para deliberar sobre a promoção de seus professores. Naquele tempo, em que não havia concurso, os contratos eram renovados regularmente mediante a apresentação do famigerado atestado ideológico, expedido pelo Dops. É claro que vários professores não conseguiam o documento – nem mesmo tentavam obtê-lo, pelo receio de serem presos. Essa prática terminou depois da aprovação da Lei da Anistia, em 1979, mas ainda assim algum chefe de Departamento que não gostasse de algum professor poderia não renovar o seu contrato.
O jornalista João Batista de Abreu, que iniciava então sua carreira docente, recorda que a greve deflagrada em fins do ano de 1980 conquistou esse direito de autonomia em que as universidades puderam constituir suas comissões de progressão docente e estabelecer critérios para a promoção dos professores. O que se propõe agora, portanto, é uma volta no tempo – no caso, tempos sombrios, que os próprios governantes deveriam rejeitar. Para concluir, a planilha comparativa divulgada pelo governo mostra apenas os salários atuais (antes e depois do reajuste de 4% já concedido no mês passado, e retroativo a março) e os salários de 2015. O hiato de três anos até lá é apagado, mais ou menos como em certos anúncios imobiliários em que algumas ruas são suprimidas do mapa para dar a impressão de que o belo imóvel fica a poucas quadras da praia ou de um maravilhoso bosque.
Quem olha as planilhas fica com a sensação de que os professores que recebem hoje, digamos, R$ 7.600 (adjunto 1, doutor com dedicação exclusiva), passarão logo a ganhar R$ 10 mil, quando esta é a remuneração para daqui a três anos. Realmente não compreendo como essas armadilhas, tão claras para quem analisar a proposta do governo, continuaram escondidas do leitor. Como se a reportagem se contentasse em expor a versão oficial e o "outro lado", numa breve manifestação da presidente do Andes.
Chamo a isso de jornalismo de mãos limpas: o repórter ouve um lado, ouve o outro e lava as mãos, deixando supostamente a conclusão para o leitor. Mas a que conclusão o leitor pode chegar, se não tem as informações fundamentais para refletir? Além disso - se bem que isso diz respeito a uma colunista de política, responsável pelo que assina -, não compreendo como alguém possa afirmar que uma proposta é “definitiva”, tal como Eliane Cantanhêde escreve, reproduzindo o discurso da ministra Miriam Belchior. Propostas, por definição, são passíveis de negociação. Se não é assim, não se trata de proposta, mas de decisão, deliberação, imposição ou qualquer outro substantivo que expresse uma resolução unilateral de quem tem, ou pensa que tem, poder para agir dessa forma.

(Ilustração criada pelo professor Ildo Nascimento copiada daqui

Atualização: na edição do Observatório da Imprensa desta semana há uma outra versão, mais aprofundada, do texto.

domingo, 15 de julho de 2012

Os bárbaros de mira torta


A comemoração dos 80 anos de Janio de Freitas acabou por gerar subsídios para uma reflexão mais profunda acerca do futuro do jornalismo e de suas relações com o público e com a internet, seja pela reação emocionada do homenageado, seja pelas reações agressivamente desqualificadoras de comentaristas virtuais.

Com uma trajetória que se confunde com a modernização da imprensa brasileira, “tido e havido como o maior mito vivo do jornalismo”, como o caracteriza Claudio Julio Tognolli, Janio de Freitas pertenceu, com destaque, a três redações míticas: na do Diário Carioca comandado por Pompeu de Sousa, a qual Matias M. Molina descreve como alegre e franca, foi diagramador e repórter; em meados dos anos 50, como redator-chefe, acompanharia de perto e protagonizaria a modernização da revista Manchete; e, em seu momento profissional mais celebrado, comandaria a reforma gráfica e editorial que transformaria o seboso Jornal do Brasil no arejado e inteligente JB dos anos 60 e 70 – lido e cultuado por gregos e troianos e, na opinião de muitos, o melhor diário já disponível por estas plagas.


Um modernizador
Nas últimas três décadas, o carioca Janio manteve, na Folha de S. Paulo, uma coluna política que inicialmente se destacou por antecipar, de forma espetacular, a corrupção em concorrências públicas, feito que lhe valeu os principais prêmios jornalísticos do país. Caracterizado pela independência e pelo destemor com que emite opiniões, não raro na contramão das tendências dominantes - seja a respeito do partido a ou b ou mesmo contra o comportamento da imprensa, inclusive do veículo no qual trabalha -, seu espaço no jornal acabou por constituir uma espécie de oásis de sensatez e senso crítico em meio ao rancor antipetista que os Frias impuseram à linha editorial na última década.

Pois bem, em matéria sobre seus 80 anos, esse profissional, que tem opiniões com as quais se pode concordar ou não, mas cujas contribuições para elevar o nível da análise política e para estimular um desenvolvimento mais aguçado do senso crítico não podem ser negligenciadas, foi equiparado por comentaristas a “viúvas chorosas da ditadura”, classificado como pertencente à “direita conservadora” e chamado de “fariseu”, “mentiroso”, “vendido” e, é claro, a serviço do "PIG".


Mídia em seu pior momento
Há, de fato, razões de sobra para o descrédito e mesmo para o rancor que a ação da imprensa (e da mídia corporativa, de forma geral), no Brasil, provoca. Se, em termos mundiais, a crise financeira e de credibilidade vivenciadas pela imprensa na última década vêm afetando, com raras diferenças de monta, a quase totalidade dos países democráticos, em parte por conta da competição com a internet – como aponta o próprio Jânio na matéria citada -, em nosso país a situação se agrava consideravelmente devido à atuação marcadamente partidária, aos preconceitos de classe e aos interesses econômicos e políticos que opõem a plutocracia midiática ao governo federal petista.

Exemplos a ilustrar tal distorção, altamente prejudicial ao exercício do jornalismo, não faltam: a revista Veja, que já era um caso caricatural de antipetismo, com seus “blogueiros” que latem e suas dezenas de capas com denúncias mirabolantes, foi flagrada sendo pautada por ninguém menos que Carlos Cachoeira; a Folha de S. Paulo considera que tivemos uma ditabranda no país, publicou ficha policial falsa da candidata Dilma Rousseff na capa de uma edição dominical e deu espaço para um lunático em crise de abstinência acusar o presidante da República de estupro; e a Rede Globo a cada eleição participa de uma grande armação, da edição do debate Lula x Collor aos sequestradores de Abílio Diniz com camiseta do PT; do caso Proconsult à bolinha de papel na careca do Serra.


Constatações desagradáveis
Ainda assim, e na iminência de se completar uma década de intensa crítica de mídia via blogosfera - e, mais recentemente, redes sociais -, é forçoso reconhecer que a imprensa brasileira não se desacreditou de todo, já que não deixou de exercer, com algum grau de efetividade, o seu papel de fonte de informação para dezenas de milhares de pessoas e que mesmo alguns dos principais blogs não corporativos – como, por exemplo, o de Luis Nassif ou o Conversa Afiada de Paulo Henrique Amorim –, não obstante sua visão crítica à mídia, continuam a ter a imprensa convencional como principal fonte, transformando diariamente em posts e submetendo aos comentários matérias dos principais jornais. O blogueiro progressista Eduardo Guimarães, em post recente, chegou a identificar episódios em que colunistas consagrados claramente desguiaram-se da linha editorial do jornal.

Tais fatos demonstram, entre outras coisas desagradáveis, que, no momento, não passa de miragem a premissa de que os blogs estariam substituindo a imprensa – e não só devido à constatação de que a produção de material jornalístico original – como reportagens ou entrevistas – é ainda por demais incipiente na blogosfera, mas - o que é muito mais grave - que, em uma medida não desprezível, a imprensa ainda pauta parte considerável da blogosfera, incluindo alguns dos blogs de maior audiência.


Nem sempre  tudo é PIG
É preciso, portanto, para o bem da análise, interrogar de forma mais complexa e sistemática a relação entre política e jornalismo – vale dizer, entre fato político e interpretação ideológica via editoração – no país. Isso inclui, necessariamente, a adoção de uma visão mais matizada e criteriosa sobre a ação da mídia corporativa, que permita colocar em perspectiva e explicitar não apenas seu tendenciosismo e sua ação manipuladora - como a de um partido político disfarçado, como frequentemente é o caso no Brasil -, mas suas contradições e estratégias de compensação que, apesar de tudo, continuam a assegurar-lhe penetrabilidade e algum grau de confiabilidade - ainda que em menor escala, se comparado ao de um passado já não tão recente.

A recorrência com que o termo PIG é assacado pode ser compreendida a partir de sua pregnância e da crítica mordaz que de imediato faz, sobretudo no ambiente veloz e informalmente dialógico das redes sociais, mas sua transformação em um diagnóstico definitivo, imutável e sempre válido sobre a imprensa e a mídia pode eventualmente ser, como mostram os fatores acima aludidos, não apenas questionáveis, mas improcedentes.



Jogo de interesses
Assim, sua consumada transformação em uma arma multiuso, bradada contra toda e qualquer acusação feita contra o governo petista, pode revelar-se nem sempre justificada e eventualmente perigosa, pois tende a negligenciar a autocrítica em favor da instauração de um processo vicioso de atribuição de culpa ao mensageiro. Há algo de profundamente totalitário nessa atitude.

Tal processo – e as distorções decorrentes - é facilmente observável nas ultimamente não tão raras questões em que os interesses do governo e da plutocracia midiática são coincidentes, como, por exemplo, na alteração, para menos, da aposentadoria dos servidores públicos ou na privatização dos aeroportos. Nesses casos, não só os ataques da imprensa se transformam em elogios, mas estes são reproduzidos nos blogs e nas redes sociais, gerando, por vezes, situações curiosas, como, por exemplo, um perfil que vive xingando o PIG retuitar um editorial elogioso d'O Globo.

Ante essa lógica malandra, que reduz a imprensa a PIG quando é contra o partido do sujeito, mas a prestigia quando ela é elogiosa, dá vontade de perguntar: afinal, é PIG ou não é?


Discursos totalitários
Não obstante a gravidade da questão midiática no Brasil – tantas vezes abordada neste blog -, o uso genérico e descriterioso do termo PIG traduz uma sobreposição, na arena virtual, de determinados interesses político-partidários ao resultado de análises ponderadas, caso a caso, mais rigorosas e embasadas, resultando, por sua repetição ad nauseum, numa grave distorção.

Tão grave quanto negar ao octogenário Janio de Freitas o reconhecimento pelo grande jornalista que ele é e foi.



(Fotografia de Jorge Araújo/Folhapress, retirada daqui)

terça-feira, 10 de julho de 2012

Greve: Dilma anuncia corte de ponto


O corte de ponto dos servidores federais em greve, anunciado pelo governo Dilma, é incompatível com um governo eleito, alegadamente de centro-esquerda, de um partido dito dos trabalhadores, em um regime democrático.

Ao tomar essa medida autoritária, que mesmo alguns presidentes conservadores evitaram, deixa claro que lida de forma truculenta com uma manifestação reivindicatória legítima, durante a qual o comportamento do governo para com os cidadãos e cidadãs que compõem a força de trabalho do Estado vem se caracterizando pelo descaso, pelo descompromisso com a coisa pública e pela incompatibilidade com o que se espera de uma administração que se diz progressista.


Da negligência à hostilidade
Até então, a morosidade com que vinha tratando as reivindicações das diversas categorias de servidores em greve, com o não-cumprimento de acordos anteriormente estabelecidos e reuniões escassas e sem propostas minimamente consistentes, já vinha demonstrando, uma vez mais e de forma explícita, o caráter pouco afeito ao diálogo, a baixa sensibilidade para com reivindicações trabalhistas e o perfil turrão, palaciano que caracteriza a administração de Dilma Rousseff.

O corte de ponto dos grevistas transforma o que era uma grave deficiência gerencial em uma truculência inaceitável. Ao invés do diálogo construtivo que deveria caracterizar as relações de um governo popular com os funcionários que fazem a máquina do Estado funcionar, o que se vê é intransigência, confronto e tentativa de intimidação.

As semelhanças com os métodos adotados por FHC para lidar com greves, inclusive com cortes de ponto, são evidentes. Não por acaso, a medida, tida pelos representantes dos grevistas como provocação, tem acirrado os ânimos.


Para além do salário
É preciso atentar para o fato de que as paralisações – que ora atingem 95% dos docentes federais, além de cerca de 12 outras categorias profissionais – são motivadas por três reivindicações principais:

      1. O estabelecimento de planos de carreira que permitam a ascensão profissional no interior de determinadas categorias profissionais, de acordo com tempo de serviço, eventual titulação e faixas salariais pré-definidos;
      2. Maior volume de investimentos e rapidez na sua aplicação a universidades que funcionam precariamente devido a falta de instalações físicas ou que têm problemas como goteiras, infiltrações, etc.;
      3. Concessão de aumentos salariais.
Os três tipos de demanda implicam, evidentemente, no aumento do peso das despesas, sobretudo salariais, no orçamento federal, e não só no curto prazo. Mas, independentemente da questão financeira, a qual abordaremos a seguir, o que salta aos olhos é o misto de descaso com as demandas da educação e de falta de profissionalismo do MEC no cumprimento da agenda previamente acordada: a pauta de reivindicações do sindicato nacional dos docentes foi protocolada em abril de 2011, e até agora não foi sequer respondida. Prevalece a enrolação: na mesma época, o governo firmara um acordo se comprometendo a instaurar o Plano de Carreira da categoria até março de 2012. Agora, o ministro Mercadante, que fala grosso com os grevistas, mas fininho com a área econômica do governo, anuncia, de forma autoritária e sem maiores explicações, que a medida ficou para 2013. Desnecessário assinalar que o cumprimento de acordos entre governo e sindicatos, por ambas as partes, é condição imprescindível ao bom funcionamento da democracia.


Crise e verbas
No que concerne às questões financeiras, a principal desculpa do governo para sua postura inflexível é a imprevisibilidade do contexto internacional. É, de fato, justificável a preocupação que demonstra ter com o cenário econômico mundial, cuja crise se arrasta desde 2008 e neste momento atinge em cheio a Europa. Há de se questionar, no entanto, em primeiro lugar, a verdadeira obsessão que tem pela obtenção de altos superavits primários – uma herança do neoliberalismo desabrido de FHC que Lula e Dilma teimaram não apenas em manter, mas em ampliar, como forma de, economizando, deixar bem calminho o mercado –, em detrimento da oferta de condições minimamente dignas para o funcionalismo público e para a ampla clientela que atende na educação, na saúde e na burocracia estatal, entre outras áreas fundamentais para a cidadania.

Em segundo lugar e de forma mais objetiva, é preciso ter claro que, a despeito dos temores de agravamento da crise e dos superavits sufocantes, dinheiro há e continua sendo fartamente distribuído - para perdoar dívidas milionárias das teles, para empresários que se beneficiam de redução do IPI mas demitem, para o agronegócio, etc.. A questão é o que priorizar na destinação dos recursos – se o grande capital, como a enumeração acima evidencia, ou os assalariados.


Investimento socialmente relevante
Correlacionando educação, questão salarial e crescimento econômico, Vladimir Safatle comenta, em ótimo artigo, a fala do ministro da Fazenda, Guido Mantega, segundo a qual a proposta do Legislativo de destinar 10% do Orçamento nacional a gastos com educação poderia quebrar o país: “Ele deveria dizer, ao contrário, que a perpetuação dos gastos em educação no nível atual quebrará a Nação (…) O investimento em educação é, além de socialmente importante, economicamente decisivo.”

É preciso ser mesmo muito alienado para não reconhecer que os servidores públicos – e, notadamente, pela desproporção ante a alta qualificação exigida, os professores - são muito mal remunerados no Brasil, além de alvos constantes de um processo de depreciação pública, que atingiu seu auge nos anos FHC, mas que continua a todo vapor na mídia corporativa, inclusive no universo ficcional da programação televisiva. A novidade dos governos petistas foi voltar a contratar, embora pagando mal – o que é insuficiente para reverter tal quadro.


Silêncio cúmplice
Sendo a educação um tema social prioritário, seria de se esperar que o grave momento por que passa atraísse a atenção da blogosfera engajada. Infelizmente, com raríssimas exceções – como o Blog doMiro e o de Mestre Aquiles – não é o que vem acontecendo. Por razões partidárias comezinhas, agravadas pelo clima eleitoral, grande parte da blogosfera que alegadamente deveria se contrapor às vicissitudes da mídia corporativa prefere calar-se ante a greve e assumir a atitude covarde a la Ricúpero, de exaltar os feitos do governo e esconder seus erros – o que faz com que impere um silêncio epifânico na grande maioria dos blogs políticos não corporativos no que concerne à greve.

Mas façamos um exercício mental e imaginemos se fosse o governo FHC que cortasse o ponto de servidores grevistas, qual e o quão estridente seria a justa reação da blogosfera indignada. Dois pesos, duas medidas.


Direita, volver!
E la nave va... Após, numa medida deplorável em relação aos direitos e à economia social do trabalho, ter achacado a aposentadoria dos funcionários públicos, a administração Dilma, ao enrolar os grevistas e autorizar o corte de ponto, deixa claro que se afasta cada vez mais do que se espera de um governo de centro-esquerda em temas fundamentais como educação, funcionalismo público e previdência social - e que, fiando-se em altos índices de aprovação parcialmente advindos de setores que são inimigos históricos da esquerda, opta por servir ao grande capital em detrimento dos assalariados.

Tal postura vem agravar um cenário dominado por polêmicas sobre o modo de escolha dos candidatos e das alianças adotado pelo PT nas eleições em curso, num momento em que a tradição de debate democrático no interior do partido parece sobrepujada pelas escolhas personalistas, determinadas de cima para baixo.

Não custa lembrar que o funcionalismo público federal é, historicamente, um reduto petista, bem como não deixa de ser oportuno observar que não há garantia alguma de que o apoio que a classe média conservadora ora dá a Dilma irá efetivamente se traduzir em votos no contexto de eleições presidenciais disputadas contra um autêntico representante do conservadorismo.


Discurso é um; prática, outra
Por fim, é preciso relembrar que Dilma, durante a campanha eleitoral, nos debates televisivos e no discurso de posse, afirmou não só que educação seria uma prioridade do governo, mas, explicitamente, que considerava a valorização do salário dos professores item essencial para o aperfeiçoamento da qualidade do ensino no país. Esse foi o discurso para se eleger, mas a prática tem sido bem outra.

Cortar ponto de servidores grevistas é atitude típica de ditadura - como o próprio Lula, liderança surgida nas lutas sindicais, bem sabe. Não coaduna com democracia.


(Imagem retirada daqui e digitalmente manipulada)

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Petistas com Freixo publicam Manifesto


Um grupo de militantes do PT do Rio de Janeiro, formado apenas para atuar nas atuais eleições municipais e que se autointitula “Movimento Petistas com Freixo”, divulgou hoje um manifesto através do qual, além de explicitar e justificar as razões do apoio ao candidato do PSOL, formula uma crítica aguda e, na minha opinião, quase sempre correta, ao comportamento recente do PT no governo e, sobretudo, nestas eleições, sem deixar de reconhecer-lhe as conquistas e méritos.

Mesmo os que eventualmente discordem da posição defendida pelos signatários do manifesto poderiam tirar proveito dessa análise que, malgrado curta, certamente se situa entre as melhores recentemente publicadas a enfocar, com ênfase na questão eleitoral, os impasses do PT e os rumos da esquerda no país.

Infelizmente, as reações iniciais de petistas e simpatizantes à nota evidenciam uma intolerância e uma recusa ao diálogo que é lamentável, mas de modo algum surpreendente.

Segue abaixo, na íntegra, o manifesto, originalmente publicado no blog do movimento e que descobri através do Twitter, por indicação de @Pagu_Vitoria.

Eis o manifesto:


POR UMA CIDADE PARA OS CIDADÃOS

Somos Petistas com Freixo, porque não concordamos em apoiar uma aliança em torno da reeleição do atual Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro, decisão tomada pelo nosso partido, de forma autoritária e pouco transparente, sem consulta às bases do partido e sem amplo processo de debate interno. Somos sim, favoráveis a alianças que sejam construídas em torno de programas políticos, de projetos e de princípios, e não sejam fruto de negociatas fisiológicas e oportunistas que descaracterizam a história do nosso PT, um partido comprometido com as lutas sociais do nosso povo. Sim, somos petistas de corpo e alma, de militância histórica e tradição, alguns filiados, e outros apenas militantes e simpatizantes, e ousamos dizer não ao excesso de pragmatismo, não às conversas com Gilmar Mendes e aos abraços a Paulo Maluf, não ao vale tudo do Mensalão e dos Aloprados, não às conversas e negociatas com os Cachoeiras da vida, não à submissão à gestão antidemocrática que ora acontece em nossa Cidade. Somos petistas que acreditam que a política pode ser feita de forma diferente, com ética e com generosidade, com firmeza de princípios e com respeito à diversidade. Com a política no posto de comando, para transformar e mudar para melhor. Somos petistas que reconhecem e apoiam os avanços históricos conquistados nos Governos Lula e Dilma, que ajudamos a construir: o combate e diminuição da miséria, a distribuição de renda, a geração de empregos, as políticas sociais inclusivas; sem que isso nos faça perder nossa capacidade de criticar e de nos indignar frente aos mal-feitos.

Somos Petistas com Freixo, porque não concordamos com a privatização da saúde do Rio através das OS, gestão avaliada pelo Ministério da Saúde como a pior de todas as capitais. Não concordamos com a precarização da educação baseada em profissionais mal remunerados e onde malabarismos estatísticos procuram mostrar como positivos os resultados de uma gestão autoritária, que vai na contramão dos princípios freirianos de uma educação como prática da liberdade. Não concordamos com uma lógica de megaeventos, cujos grandes investimentos prevalecem sobre as reais e urgentes necessidades da maioria de nossa população, nem com a política de arrocho do funcionalismo público municipal. Não concordamos com uma cidade que continua partida e ferida, sem planejamento urbano e sem plano diretor amplamente discutido, na qual predomina a lógica da especulação imobiliária, o desrespeito ao meio ambiente, o trânsito caótico dominado pelos interesses da máfia dos ônibus, realidades essas que são maquiadas por gastos em publicidade e propaganda.

Somos Petistas com Freixo, porque queremos uma Cidade para os cidadãos, uma cidade de direitos, uma cidade de inclusão. Queremos uma Cidade em que as grandes decisões sejam tomadas com a participação de cidadãos e cidadãs bem informados. Queremos que haja transparência na gestão pública, com a implantação do Orçamento Participativo, marca histórica da administração municipal petista. Queremos que os Conselhos Municipais sejam de fato implementados e funcionem, e as Audiências Públicas para ouvir os cidadãos sobre os temas mais polêmicos não sejam meras formalidades. Queremos que o debate e o interesse público se imponham sobre os interesses privados e corporativos. Queremos uma Cidade mais justa, mais fraterna, uma Cidade construída com os cidadãos e para os cidadãos, uma Cidade de Direitos.

Somos Petistas com Freixo, porque acreditamos que Marcelo Freixo é o candidato da esperança e da mudança. Ele é o candidato de todos aqueles que querem mudar o Rio para melhor. Sua campanha toca profundamente os corações e mentes de homens e mulheres da nossa Cidade. É por essa razão que ele aglutina em torno de sua campanha lideranças políticas e sociais representativas, artistas e acadêmicos, juventude e profissionais liberais, militantes e ativistas dos mais diversos movimentos e segmentos sociais, além de dissidentes de vários partidos políticos que, como nós, vislumbram em Freixo as características pessoais que o credenciam para esta disputa: honestidade, coerência, firmeza e generosidade. Marcelo Freixo transcende os limites do PSOL, ele é o candidato da Cidade, dos Direitos Humanos, da Cidadania. A população do Rio vai provar que é possível vencer o poder do Capital e de uma coligação de 18 partidos, com ideias claras, garra, criatividade, esperança e vontade de mudar.

Somos Petistas com Freixo, e ousamos desafiar os atuais ‘donos’ do nosso partido em nossa Cidade, que nos ameaçam de expulsão como forma clara de intimidação. Não temos medo! Muitos de nós lutaram contra a ditadura e o autoritarismo, e ajudaram a resgatar a democracia em nosso país. Durante muitos anos, nos movimentos sociais e nas lutas do nosso povo, mas também na construção do nosso partido, e na gestão pública de Governos Municipais, Estaduais e Federal (de Lula e Dilma) demos nossa energia e nosso coração a um projeto no qual sempre acreditamos, e que alguns insistem em tentar destruir. Não nos intimidarão. O PT também é nosso! Ele é o patrimônio de mais de um milhão de filiados e muitos outros milhões de simpatizantes e eleitores. Um patrimônio da sociedade brasileira, que não pertence a este ou aquele dirigente, a esta ou aquela corrente interna. Aderimos à candidatura de Marcelo Freixo num ato de lucidez, sinceridade, esperança, desprendimento e ousadia. Estamos na luta, dentro e fora do PT, por amor à nossa bela cidade, por uma sociedade mais fraterna, mais inclusiva, mais democrática, mais justa!

UM RIO PARA OS CARIOCAS ! UM RIO PARA AS PESSOAS !
POR UMA CIDADE DE DIREITOS ! CIDADE, COLETIVO DE CIDADÃOS!