Reproduzo, abaixo, texto da professora, jornalista e autora de livros essenciais sobre Comunicação, Sylvia Debossan Moretzsohn, que traz reflexões sérias e contundentes acerca da greve dos professores universitários federais e da cobertura ao movimento destinada. O texto foi originalmente publicado nos Cadernos de Reportagem do curso de Comunicação Social da UFF - cuja leitura recomendo -, e se encontra disponível neste link.
A lamentável cobertura da greve nas federais
Sylvia Debossan Moretzsohn
Sou professora de jornalismo na Universidade Federal Fluminense há 19 anos e acompanho, por interesse e dever de ofício, a cobertura jornalística em geral e, em particular, esta agora sobre a greve nas universidades federais, que já vai completar dois meses. Entendo que os jornais não possam entrar nas minúcias dos detalhes que envolvem as atuais reivindicações, mas deveriam ter a obrigação de esclarecer o que está em jogo. Sobretudo agora, que o governo finalmente se manifestou.
As reportagens do dia 14 de julho não dão esses esclarecimentos. A
matéria da Folha ainda tenta relativizar os números do governo (40%
e não 45% de reajuste para os próximos três anos). Ainda assim,
não mostra que o índice maior de reajuste é apenas para os
professores titulares, que representam uma minoria ínfima do total
de docentes: fala, como a maioria dos demais jornais, em “doutores”,
pura e simplesmente.
O mais grave, entretanto, não é isso: é que a proposta, a rigor, é
previsivelmente de redução salarial, e não de reajuste.
Jornalisticamente, daria bela manchete, não é? É uma questão de
fazer contas. A propósito, indico
este link, em que um professor da Federal de Sergipe corrige
os números.
Não é tudo, porém, e quem me chamou a atenção para isso foi meu
colega Kleber Mendonça, também da UFF. Nenhum jornal, até agora
(que tenhamos visto), mencionou as armadilhas embutidas no novo plano
de carreira. Por ele, como
se pode constatar neste link, todos os novos professores, independentemente de sua titulação, ingresarão no nível mais baixo da carreira, como auxiliares, e não poderão mudar de classe enquanto estiverem em estágio probatório. Na prática, isso significa que aquele que já poderia estar recebendo como doutor ficará com remuneração inferior durante três anos (o período do probatório).
Note-se que os concursos, há muitos anos, vêm sendo abertos apenas
para doutores, e só excepcionalmente para mestres. Ou seja, exige-se
a titulação, mas a remuneração correspondente pode esperar. Isso
é porque o governo diz que quer valorizar os professores de maior
titulação... Além disso, as progressões se darão com base em
critérios ainda a serem definidos pelo MEC, e não pelos
departamentos, como é hoje. Ou seja, aceitar a proposta significa
aceitar critérios que não foram explicitados. Maquiavel foi mesmo
um gênio, não foi?
O pior é que a aprovação de tal medida representará um retorno
aos tempos da ditadura, em que as universidades não tinham autonomia
para deliberar sobre a promoção de seus professores. Naquele tempo,
em que não havia concurso, os contratos eram renovados regularmente
mediante a apresentação do famigerado atestado ideológico,
expedido pelo Dops. É claro que vários professores não conseguiam
o documento – nem mesmo tentavam obtê-lo, pelo receio de serem
presos. Essa prática terminou depois da aprovação da Lei da
Anistia, em 1979, mas ainda assim algum chefe de Departamento que não
gostasse de algum professor poderia não renovar o seu contrato.
O jornalista João Batista de Abreu, que iniciava então sua carreira
docente, recorda que a greve deflagrada em fins do ano de 1980
conquistou esse direito de autonomia em que as universidades puderam
constituir suas comissões de progressão docente e estabelecer
critérios para a promoção dos professores. O que se propõe agora,
portanto, é uma volta no tempo – no caso, tempos sombrios, que os
próprios governantes deveriam rejeitar. Para concluir, a planilha
comparativa divulgada pelo governo mostra apenas os salários atuais
(antes e depois do reajuste de 4% já concedido no mês passado, e
retroativo a março) e os salários de 2015. O hiato de três anos
até lá é apagado, mais ou menos como em certos anúncios
imobiliários em que algumas ruas são suprimidas do mapa para dar a
impressão de que o belo imóvel fica a poucas quadras da praia ou de
um maravilhoso bosque.
Quem olha as planilhas fica com a sensação de que os professores
que recebem hoje, digamos, R$ 7.600 (adjunto 1, doutor com dedicação
exclusiva), passarão logo a ganhar R$ 10 mil, quando esta é a
remuneração para daqui a três anos. Realmente não compreendo como
essas armadilhas, tão claras para quem analisar a proposta do
governo, continuaram escondidas do leitor. Como se a reportagem se
contentasse em expor a versão oficial e o "outro lado",
numa breve manifestação da presidente do Andes.
Chamo a isso de jornalismo de mãos limpas: o repórter ouve um lado,
ouve o outro e lava as mãos, deixando supostamente a conclusão para
o leitor. Mas a que conclusão o leitor pode chegar, se não tem as
informações fundamentais para refletir? Além disso - se bem que
isso diz respeito a uma colunista de política, responsável pelo que
assina -, não compreendo como alguém possa afirmar que uma proposta
é “definitiva”, tal como Eliane Cantanhêde escreve,
reproduzindo o discurso da ministra Miriam Belchior. Propostas, por
definição, são passíveis de negociação. Se não é assim, não
se trata de proposta, mas de decisão, deliberação, imposição ou
qualquer outro substantivo que expresse uma resolução unilateral de
quem tem, ou pensa que tem, poder para agir dessa forma.
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