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domingo, 13 de dezembro de 2015

Lançamento: Coleção Cinema Brasileiro

 A história do cinema brasileiro, feita de “mortes súbitas e renascimentos precários”, como define Roberto Moura,  ainda apresenta zonas obscuras, períodos e tendências pouco conhecidos fora dos escaninhos da academia ou da cinefilia militante. 

A produção concentrada entre o final dos anos 20 e dos anos 40, em que a ousadia estético-narrativa de Limite convive com as primeiras tentativas de industrialismo, talvez seja um dos exemplos mais eloquentes.

É exatamente sobre tal período que se concentram os três volumes da Coleção Cinema Brasileiro – Clássico ▪ Industrial, organizada pela professora e pesquisadora Daniela Gillone. 

Lançado esta semana, o primeiro volume tem como tema o cinema de Humberto Mauro (foto abaixo), prospectando  o veio temático que Paulo Emílio Salles Gomes pesquisara com alento e primor há mais de 40 anos, no livro clássico Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte (São Paulo: Perspectiva, 1974).
 

Olhares diversos
Prioriza-se a análise de sua produção nos anos 30 e 40 ( quando protagoniza a aventura industrial da Cinédia), mas sem deixar de levar em conta o ciclo de Cataguases (1925-29) e sua atuação como "cineasta-educador" no INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), uma trajetória em "que se destaca pelos compromissos estéticos, políticos e sociais", como assinala a organizadora. 
 
Sheila Schwarzman, que há uma década renovou os estudos sobre o cineasta, perfaz um corte transverso na produção mauriana, com maior foco na fase do INCE (onde Mauro atuou de 1936 a 1964), período que também é privilegiado na análise de Caio Lamas. Joelma Ferreira dos Santos inventaria representações de brasilidade na fase sonora da produção mauriana, enquanto a minha contribuição ao volume examina a relação entre narratividade e representação no filme Lábios Sem Beijos (1930, foto abaixo). Já Marcelo Miranda interroga as linhas gerais da volumosa produção crítica sobre Mauro assinada por Ronaldo Werneck, cujo texto sobre cartazes dos filmes encerra o tomo.


 Acessibilidade
Com um projeto gráfico a um tempo sóbrio e refinado, o primeiro volme, com a versão integral dos textos em PDF, pode ser baixado gratuitamente no site da coleção. 

 O trabalho tem o mérito adicional de não se prender ao convencionalismo acadêmico: escritos por pesquisadores e críticos de cinema, os ensaios são mais curtos que o padrão burocrático que se tornou norma para papers, e refletem sobre os aspectos históricos, políticos e estéticos do cinema mauriano sem verborragia ou artificialismo teórico.  
  
Graças ao trabalho da Fundação Dorina Nowill para Cegos, o primeiro tomo está disponível para deficientes visuais e pessoas com  baixa visão através da tecnoogia DDReader, e a coleção será lançada também em DVD, que pode ser encomendado por bibliotecas e associações. 

Os demais volumes serão dedicados, respectivamente, ao citado  Limite, obra seminal do cinema autoral dirigida em 1929 por Mario Peixoto, e à era dos estúdios. Vale a pena esperar.



(Imagens retiradas daqui, dali, de lá e dacolá, respectivamente)


sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

A imprensa e a questão indígena na era Dilma

A denúncia contra o Estado brasileiro na Comissão de Direitos Humanos da OEA por tratamento cruel e desumano dispensado às populações indígenas passou virtualmente em branco na imprensa nacional.

Para além do comportamento da imprensa em relação ao caso em questão, o que nos interessa aqui examinar é como ela tem tratado – ou deixado de tratar - as razões que sustentam a denúncia na OEA. Que vêm de longa data e vão desde a violação impune das terras indígenas, passam pela violência recorrente que não distingue homens, mulheres e crianças, atingem a dramaticidade da mortandade infantil e dos recordes de suicídio e culminam com o que não poucos especialistas do tema qualificam como genocídio.



Informações escondidas
A maioria dessas denúncias sequer chega a ser noticiada pelas publicações de alcance nacional, só vindo à tona graças à atividade jornalística de sites como o do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e à ação, na internet, de coletivos e cidadãos interessados na causa indígena, os quais têm no trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro uma de suas referências centrais.

Tal omissão midiática, que confirma um histórico de desatenção para com a questão indígena, vai na contramão do reconhecimento que, nas duas últimas décadas, esta tem recebido internacionalmente, no bojo da ascensão das reemergência das pautas ecológicas, da ascensão da biopolítica e do advento dos Direitos Humanos de quarta geração.



Mortes e torturas
Tal omissão jornalística é particularmente grave por se dar em um momento de acirramento de tensões e conflitos. Pois, bem antes da denúncia à OEA, os dois governos Dilma já vinham sendo sistematicamente acusados de negligência e de violência contra os índios.

Em dezembro de 2012, a Polícia Federal invadiu uma aldeia em Alta Floresta (MT) e matou Adenílson Krixi Munduruku, ferindo gravemente outros dois índios e sendo acusada, conforme noticiado pela imprensa alternativa, de emprego excessivo e gratuito de violência.

Um ano e meio depois, em Belo Monte, epicentro dos conflitos na Amazônia e obra-símbolo do modelo desenvolvimentista arcaico, estilo “Brasil Grande” da era petista, a Força Nacional foi acusada de atirar bombas e balas de borracha contra os índios que protestavam, suscitando investigação do Ministério Público Federal.



Choque assimétrico
No bojo e para além de tais graves eventos, um conflito latente marca a relação dos governos Dilma com a questão indígena, advindo da contraposição entre a visão tecnocrata e antiecológica que vinha caracterizando o modelo desenvolvimentista brasileiro pré-crise econômica - baseado no consumismo e em megaobras energéticas -, e o perspectivismoameríndio que informa a concepção de mundo indígena, para quem a preservação de suas terras e da fauna e flora circundantes afiguram-se não só essenciais à própria sobrevivência (mesmo se esta se der em diferentes graus de relação com o capitalismo vigente), mas à sobrevivência do próprio mundo.

Uma versão seminal de tal conflito estava, de certa forma, configurada já no embate pré-presidencial petista que, em 2006, opôs a “gerentona” Dilma e a “ecológica” Marina Silva. A escolha de Dilma como candidata representou, em si, a vitória de tal visão ultrapragmática e infesa a reivindicações de cunho ecológico (as quais são vistas como meros empecilhos).

O desastre ambiental que é Belo Monte e a pior política indigenista desde o período militar derivam de tal processo, que vem se alastrando ao longo dos dois mandatos da atual presidente e atingem o escárnio com a nomeação para o ministério da Agricultura - na cota pessoal de Dilma, e não por imposição da aliança - da ruralista Kátia Abreu (PMDB/TO), apelidada de “Miss Motosserra” e contra quem pesam acusações de trabalho escravo, crime ambiental e grilhagem de terras. Não por acaso, tal nomeação foi interpreta por setores indigenistas como uma senha ao ruralismo para a violação impune das terras demarcadas.



Questão indígena, eterna coadjuvante
Seria, no entanto, inexato afirmar que a imprensa negligencia por completo a violência relacionada aos povos indígenas. Ainda que com raridade, ela até aparece, aqui e acolá, nas páginas das publicações nacionais: com viés policial na cobertura dos conflitos de terra; nas projeções econômicas sobre os fatores delimitantes para a expansão do agronegócio; ou, por conta do alto índice de mortandade infantil e de suicídios, como nota de rodapé de reportagens sobre saúde.

O problema, que deriva diretamente da aliança cada vez mais forte entre as corporações de mídia e o grande capital, é a ausência de cobertura sistemática, a omissão ante a gravidade do drama humano e da violação de direitos, e a manutenção da questão indígena em um terceiro plano em termos de escala de valores editoriais - sobrepujada, em primeiro lugar, pela prioridade aos desígnios do mercado financeiro; e, em segundo, pelos ditames da supremacia econômica expansionista do agronegócio.

Uma imprensa que efetivamente cumprisse suas funções públicas haveria de fornecer a seus leitores informações e análises que, cotejadas, permitissem um melhor entendimento do necessário equilíbrio entre as demandas comerciais e mercantis do agronegócio, a obrigatoriedade de respeito aos direitos indígenas em sua plenitude, e a importância de que o governo exerça com imparcialidade e determinação o seu papel de mediador e de responsável pela obediência aos preceitos constitucionais.



Respostas insuficientes
Evidentemente, não é o que ocorre – muito pelo contrário – nem na imprensa, nem no governo, como ficou patente, uma vez mais, no comportamento do representante do governo brasileiro ante as graves acusações feitas à OEA, as quais limitou-se a rebater com respostas protocolares e lacunares, além de vagas promessas.

Em relação ao jornalismo televisivo, a situação é ainda pior. Pois além do misto de omissão e brevidade que também se verifica na cobertura impressa, há casos de sistemática perseguição e tentativa de criminalização dos povos indígenas, cujo exemplo maior – e mais repugnante – é o telejornalismo da TV Bandeirantes, que oferece uma cobertura desonesta e distorcida à incredulidade, tratando sempre os índios como invasores e sanguinários e os grandes latifundiários como vítimas. Execrável.



Hora decisiva
Se mantidos, os interesses e omissões que regem o tratamento da questão indígena – e sua cobertura pela imprensa - podem vir a ser decisivos em um futuro muito próximo.

Pois estamos em um momento em que algumas das piores previsões relativas à construção da usina de Belo Monte começam a se confirmar – como a ausência de meios de subsistência para os ex-ribeirinhos deslocados à força para conjuntos habitacionais periféricos, longe do rio de onde tiravam seu sustento. Com isso, cresce o receio pelo destino das três tribos que sobrevivem às margens dos 100 quilômetros de rio que deixarão de ser navegáveis e terão o volume de peixes drasticamente reduzido.

Ainda mais ansiedade desperta a possibilidade de que a PEC 215, que transfere da União para o Legislativo a prerrogativa de demarcar terras indígenas – e que já foi aprovada, por 27 a zero, pela Comissão Especial de Demarcação de Terras Indígenas -, venha a ser em breve referendada pelo Congresso. Dado o conservadorismo do atual parlamento, repleto de deputados e senadores ruralistas ou com laços com o agronegócio, afigura-se iminente tal propabilidade, que para lideranças indígenas e especialistas equivaleria, na prática, à legalização de um extermínio.



(Segunda versão de texto publicado originalmente no Observatório da Imprensa)