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domingo, 29 de novembro de 2009

Cesinha na Folha: a ética no lixo

2009 é um ano marcado, na imprensa brasileira, pela degringolada inconteste da Folha de São Paulo. Foram nada menos do que cinco episódios de extrema gravidade, que atentam contra os parâmetros éticos mínimos que deveriam reger a atividade jornalística:

1) Em fevereiro, a adoção do neologismo “ditabranda” para se referir à ditadura militar brasileira, numa clara tentativa de promover um revisionismo histórico à direita e de relativizar a gravidade das práticas levadas a cabo por um regime que usurpou o poder democrático e utilizou-se do Estado para perseguir, torturar e assassinar opositores;
2) Em seguida, a agressiva reação do diretor de redação Octávio Frias Filho a carta de protesto contra a utilização do termo “ditabranda” enviada pelos eminentes professores Maria Victoria Benevides e Fabio Konder Comparato. Como procurei demonstrar em texto escrito no calor da hora, a truculência trazia em seu bojo uma tentativa de restringir e dirigir o debate público, além de reforçar o processo de relativização da ditadura em curso;
3) Em maio, a perda de referenciais éticos mínimos se evidencia com a utilização de ficha policial falsa da ministra e pré-candidata Dilma Rousseff, em matéria fantasiosa e jornalisticamente insustentável sobre um seqüestro que jamais ocorreu. Após peritos da UnB e da Unicamp atestarem que a ficha era falsa, o jornal produz uma pérola de cinismo ao afirmar que não podia confirmar a autenticidade da mesma nem sua falsidade – o que corresponde a admitir como lícita a publicação de qualquer material, verdadeiro ou não (leia post certeiro de Nassif sobre o caso);
4) O show de desrespeito a normas básicas do jornalismo – e a transformação deste em atividade político-partidária – prossegue no segundo semestre com a sustentação, semanas a fio, de um factóide dos mais grosseiros – o alegado encontro de Dilma com a ex-Secretária da Receita Federal Lina Vieira -, baseado tão-somente na palavra desta, que fora demitida pela acusada. Apesar dos rocambolescos esforços e das diversas tentativas, seguidas de desmentidos, não foi possível encontrar uma data na agenda da esposa do ex-ministro de FHC para sequer tornar plausível o encontro. Após exploração intensa, o assunto morreu, como sói acontecer com factóides.

Embora muitos não cressem que a Folha poderia descer ainda mais, eis que, covardemente travestida de “análise” do filme Lula, o Filho do Brasil, o jornal publica, com grande destaque e no primeiro caderno, artigo melífluo de César Benjamin – candidato à vice-Presidência pelo PSOL nas últimas eleições -, com acusações tão graves quanto risíveis acerca do passado do presidente Luís Inácio Lula da Silva, que, segundo a mente doentia de “Cesinha”, teria estuprado um preso em 1979.

As fantasiosas acusações não ficaram em pé 24 horas, tendo sido desmentidas tanto pelos que conviveram com Lula na prisão – incluídos o delegado, o potencial “estuprado’ e diversos colegas de cela, até um membro do PSTU que, mesmo na oposição a Lula, fez questão de desmentir Cesinha - quanto pelos que presenciaram o momento em que Lula, descontraído em uma mesa de bar, anos antes de ser presidente, fez uma piada “sacaneando” um companheiro e tentando escandalizar um conviva norteamericano.


Que eu saiba a histeria politicamente correta ainda não chegou a um ponto tal que alguém deva ser condenado por uma piada de mau gosto contada há 14 anos... Mas, na combinação de sanha oposicionista e abandono de valores jornalísticos que ora caracteriza nossa imprensa, o artigo de Cesinha repercutiu nas vejas e globos da vida.

O texto é exemplar de um processo que venho há tempos apontando: o quanto os métodos da extrema-esquerda brasileira atual coincidem com os da pior direita, além de coadunarem com os da “grande mídia”, ao qual se submetem para perpetuar ataques contra o inimigo comum, fingindo não perceber que são majoritariamente os setores mais conservadores que se beneficiam de tal estratagema. Como levar a sério o discurso ético que a extrema-esquerda reiteradamente chama para si, se, na prática, se presta a atos tão deploráveis?

Para compreender o que leva um ser humano a incorrer na leviandade cometida por Cesinha é preciso conhecer essa figura trágica da esquerda brasileira. Entrou na luta armada aos 14 anos e, preso três anos depois, foi submetido a longas e brutais torturas, que lhe tiraram a audição de um ouvido. Findo o período das sevícias físicas, foi mantido em solitária, completamente isolado de qualquer contato com o mundo exterior, por três dos cinco anos em que ficou preso. Evidentemente, tal experiência foi traumática para uma mente adolescente e não é possível precisar a extensão das seqüelas que possa ter causado.

O fato é que o desequilíbrio e a tendência a lançar mão de acusações levianas e estratagemas questionáveis em nome da luta política são há décadas uma constante em sua trajetória. O jornalista com J maiúsculo Luiz Antonio Magalhães traçou um imperdível perfil de Cesinha em sua fase madura (no sentido etário, evidentemente, pois imaturidade política é um traço constante em sua trajetória, que inclui rompimento com o PT - que ajudara a fundar - em 1995 e filiação em 2004 ao PSOL, partido do qual, numa demonstração de grande coerência e caráter, sairia dois anos depois, atirando baixarias para todos os lados). Hoje, Cesinha - que, segundo vários relatos, alimenta ódio obsessivo em relação a Lula - é uma daquelas espécimes curiosas da fauna brasileira: o soi disant esquerdista que detesta um governo que tirou mais de 30 milhões da pobreza, consumando assim uma das bandeiras precípuas da esquerda e promovendo, em plena crise mundial, um ajuste estrutural na divisão social brasileira, com a ascensão de um volume significativo das classes D e E à classe média.

Porém, nunca é demais reforçar, o absurdo maior não é a redação de um artigo tão desqualificado – que jamais seria aceito por qualquer publicação séria do planeta, já que não obedece a premissas básicas do jornalismo –, mas sim o fato de ter sido publicado – e com destaque - sem que as graves acusações contra um cidadão tenham sido minimamente checadas ou que o outro lado tenha sido ouvido, como manda o próprio Manual de Redação da Folha. Trata-se de matéria baseada no "juridicamente espúrio" julgamento pelo testemunho, como assinala Diego Calazans num promissor novo blog político.

Que o cidadão em questão seja o presidente da República constitui um dado que só reforça um dano colateral dessa temporada de insanidade ética da mídia: o desrespeito pela instituição Presidência da República. Ademais, note-se que a mesma imprensa que preservou a vida privada do presidente Fernando Henrique Cardoso (apesar da notícia sobre seu filho com a jornalista da Globo despertar potenciais questões de interesse público, concernentes à relação entre mídia e governo) investe agora em um episódio do passado privado de Lula que, além de altamente improvável, é irrelevante para a administração do país (mas talvez não para a popularidade do presidente e para questões eleitorais).

Evidenciada pelos episódios acima retratados, a perda de referencial ético da mídia se efetiva, prioritariamente, devido a seus interesses político-partidários, que alimentam não apenas objeções ideológicas e de classe ao governo de turno, mas uma guerra movida por interesses materiais, já que os maiores órgãos de imprensa têm sido duramente atingidos em seu faturamento, pois, pela primeira vez na história do país, a administração federal decidiu pulverizar verbas em pequenas e médias publicações e rádios do interior do país, ao invés de concentrá-las nos “grandes órgãos de imprensa” do Sudeste.

É preciso levar em conta, porém, que tamanha liberdade de ação da mídia só foi propiciada pela impunidade garantida por recentes decisões do STF, que enfraqueceram ainda mais o parco controle sobre a atividade jornalística. Infelizmente, até pessoas que se dizem de esquerda vibraram com o fim da exigência do diploma para jornalista determinado pelo STF, em decisão que levou de roldão também o direito de resposta – único meio para obtenção de espaço para se defender de ataques oriundos da imprensa. Tais pessoas não se apercebem que quanto mais regulada e mais regulamentada a atividade jornalística, menor é a chance de tais excrescências como as praticadas pela Folha este ano ocorrerem. Não é por outra razão que a plutocracia midiática da qual Frias Filho faz parte vibrou com a decisão do STF e bloqueia sistematicamente qualquer tentativa de regulamentação da atividade jornalística – como o fez no início do governo Lula e faz agora em relação à Confecom.



(Imagem retirada daqui)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Por que os homens não ligam?

("The Day After (1894-5), por Edward Munch, retirado daqui)

Histórias de Amor Amoral I - Homens

Você, cara leitora, saiu com o moço. Não foi nada planejado: fim de expediente, o grupo se dissipou, uns aproveitando uma carona, outros afoitos pra voltar pra casa, onde uma família os esperava. Ficaram vocês dois. Tava calor, horário de verão, um céu ainda arrebentando de azul: decidiram “tomar um choppinho”.

A noite foi muito gostosa: um papo fluente, pontuado de risadas, num ambiente agradável, em que os garçons não se faziam sentir; aquele céu que arrebentava em azul se desfez em tons roxos e violetas e houve até, por alguns momentos, um último raio de sol que refletia nas águas do mar, lá longe.

Foi justamente quando você chamou a atenção dele para esse fenômeno que a atmosfera mudou: os olhares tornaram-se mais detidos, os lábios mais próximos a cada vez que ambos voltavam a cabeça; ele começou a acariciar seu braço de forma suave mas decidida. Se beijaram longamente – beijos correntinha, que se emendam um no outro.

Quando voltaram à vida, era noite.

O sexo? Você, fogosa leitora, já teve melhores, muito melhores... mas foi intenso, com ânsia de desbravar, pleno de energia e virilidade. E longo, muito longo: se estendeu pela noite e adentrou a manhã como uma longa sinfonia, com momentos de quase silêncio e outros em que valkyrias cavalgavam ao som de technomusic e riffs de guitarra. Nada mau pra uma primeira noite, em algum momento você pensou.

No manhã seguinte, bem cedo, ele não deixou você pegar um táxi e fez questão de levá-la. Deram um longo beijo em frente ao seu prédio (fazendo você desejar que seu ex passasse por ali bem agora) e se despediram olhando nos olhos:

- Eu te ligo – ele disse sorrindo. Esperou você, sob o olhar de reprovação/ciúme do porteiro, tomar o elevador, deu um tchauzinho de longe enquanto a porta se fechava e só então arrancou.

Na hora do almoço o celular tocou, chamada de um número desconhecido. Você atendeu tentando disfarçar a euforia. Mas não era ele. Naquele dia ele não ligou.

Nem no seguinte.

Nem nunca mais.


Por que ele não ligou? Por que os homens não ligam?

A explicação corriqueira, brotada da confluência de feminismo e psicanálise vulgar, tem duas versões: a primeira, que tem um sabor anos 50 e uma concepção simplista do que seja o ser masculino, diz que o moço, tendo satisfeito seus baixos instintos, atingiu seu objetivo. Desinteressou-se, portanto. Eis porque, segundo esta versão, a prendada leitora deveria sempre “fazer-se de difícil”...

A segunda versão é menos bronca: o moço, justamente por ter adorado a noite, o sexo, exultado com a própria performance e obtido muito prazer, evita um novo encontro por temer não ser capaz de repeti-la (ou, pior, de fracassar), de ter de lidar com um diálogo sexual mais franco – o qual viria a destruir a visão mítica da tal noite priáprica; além, é claro, de temer, acima de tudo, a possibilidade de se apaixonar.

O fato de tal versão, ao caracterizar o homem como um covarde, constituir, indubitavelmente, um mecanismo de defesa da mulher – como os que Anna Freud analisa em Le Moi et les mécanismes de défense – não o invalida, mas torna ainda mais evidente o quanto ele é uma construção reativa, e não uma regra.

Porém, no caso em questão não se tratou de nada disso – e sim de uma versão que, por demais dolorosa, as mulheres, que detêm a primazia da fala no âmbito afetivo-sexual, hesitam em enunciar publicamente.

O que ocorreu foi que ele não achou o papo no bar agradável, mas chato; que na manhã seguinte ao sexo – que ele também já teve melhor, muito melhores -, enquanto a moça pensava que fora bom pra uma primeira noite, ele tinha ganas de expulsá-la da cama; e que ele só fez questão de levá-la na porta de casa porque de uma maneira estranha intuiu que, assim, ela não se sentiria autorizada a bater em sua porta por si mesma.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Serra e Ahmadinejad

No dia da visita de Ahmadinejad ao Brasil, a Folha de São Paulo exibe chamada de capa para um artigo do governador de São Paulo, José Serra, atacando pesadamente o presidente Luís Inácio Lula da Silva por recepcionar o presidente iraniano.

Não há dúvidas de que Ahmadinejad representa posições inaceitáveis no mundo atual: repressão e condenação a homossexuais, opressão às mulheres e ao feminismo, supremacia do poder religioso sobre a esfera leiga; sob seu governo, a censura, que esteve ativa desde a Revolução Islâmica, tornou-se ainda mais intransigente, levando até cineastas consagrados à prisão.

Mas, por paradoxal que pareça, é justamente para não acirrar tais posições que a recepção que o Brasil proporciona ao presidente iraniano é importante. Pois isolá-lo, na atual conformação internacional, significa colaborar para levar o Irã a um duplo radicalismo: o da extremamente conservadora teocracia panárabe; e, como líder-mártir que ousou confrontar o Império norteamericano e como uma das principais forças políticas contrárias a Israel, ao do terrorismo internacional patrocinado pela Al-Qaeda.

É precisamente contra esse duplo perigo que se insere a estratégia da diplomacia brasileira, que de quebra ganha a simpatia de importantes setores do Oriente Médio e da Liga Árabe para postular uma vaga no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

O que está em jogo, portanto, é mais um passo no realinhamento da posição do Brasil no mundo, de forma particular em relação aos Estados Unidos, país que, por razões diversas – notadamente suas relações com o grande capital judaico, neste momento delicado da economia norteamericana - não pode e não quer adotar publicamente uma política soft power em relação ao Irã.

Não há como entender o fenômeno iraniano sem recapitular as relações que os EUA mantiveram com o país. Ao patrocinar, via agentes infiltrados da CIA, a derrubada do moderado primeiro-ministro Mohammed Mossadegh, em 1953 – naquele que é considerado por muitos analistas internacionais como o maior erro na história da política externa norteamericana – o, com o perdão da ironia, país-líder do “mundo livre” acirrou ódios maniqueístas no Oriente Médio, reforçando sem querer a radicalização de uma posição pró-Palestina, ao mesmo passo em que ajudou a colocar no comando do Irã a ditadura do xá Reza Pahlavi, cuja brutalidade agravou-se a partir dos anos 70, com milhares de mortos, torturados e mutilados pelo regime.

É do esgotamento desse modelo ditatorial – durante o qual o povo iraniano foi levado a aderir maciçamente a credos religiosos, pois, entre outras razões, eram essas das poucas manifestações populares então permitidas no país - que brota a Revolução Islâmica levada a cabo pelo Ayatolah Khomeini, em 1979. Caracterizada não apenas pela forma aberta com que se opôs aos EUA (em que pese o caso Irã-Contras) mas pela progressiva radicalização do conservadorismo religioso, a Revolução está nas raízes tanto do extremo conservadorismo de Ahmadinejad quanto do terrorismo de bin Laden (pois foi como forma de combatê-la que os EUA deram armas e poder a Sadam Hussein, decisão cuja consequência última foi a criação de um exército-reserva para o terrorismo).

Portanto, a diatribe eleitoreira de José Serra – a quem Luis Nassif acusa de, com o artigo em questão, ter aderido ao jornalismo neocon – é não apenas descontextualizada em termos históricos como ignorante das sutis dinâmicas da política internacional. Além de hipócrita para um governante que recebeu líderes sionistas acusados de assassinato, revela o despreparo do mandatário paulista para lidar com o sofisticado universo das relações exteriores.


(Imagem retirada daqui)

sábado, 21 de novembro de 2009

Eco, Cirne e as listas

Final de ano e começam a pipocar listas de todo tipo: melhores discos, músicas, séries, pessoas mais mal e bem-vestidas, etc..

Atual curador-convidado de uma exposição do Louvre intitulada “Mille e tre”, que “traça a evolução do conceito de lista através da história”, Umberto Eco afirma, em entrevista para o Der Spiegel, que o fascínio humano por listas deriva de nossa luta com a morte:

“Nós temos um limite, muito desencorajador e humilhante: a morte. É por isso que gostamos de todas as coisas que presumimos não ter limite e, portanto, fim. É um modo de escapar de pensamentos sobre a morte. Gostamos de listas porque não queremos morrer”.

A matéria é encimada por foto do intelectual italiano (a quem nunca havia visto): parece, como se vê ao lado, um típico personagem de Fellini e, por uma dessas nebulosas relações que fazemos entre imagem e essência, aparência e conteúdo, alguém que não transmite visualmente a grande cultura e inteligência que possui. Imagino-o numa cena de Amarcord, como um velhinho ranzinza a ralhar contra uma fila que não anda...


Um tipo inesquecível
Mas data de muito antes da leitura da entrevista de Eco minha simpatia por listas, que se sobrepõe ao enfado que às vezes provocam. Isso graças a uma figura humana tremenda, o poeta e professor Moacy Cirne (na foto que encabeça o post), com quem convivi durante toda a graduação.

A razão de ser de Cirne no ambiente universitário, além das aulas, era distribuir pessoalmente pelo campus o Balaio Porreta, um jornalzinho (com todo o respeito) de uma folha que às vezes chegava a três edições semanais, já teve 2849 números publicados e que era a um tempo remanescente da literatura de mimeógrafo e precursor da blogosfera, para onde acabaria por migrar - confira aqui a edição atualizada.

Potiguar, com um sotaque muito forte, cabelos e longa barba brancos, havia algo de Papai Noel sertanejo em sua figura – aspecto que se realçava nos eventos festivos da universidade, quando sorteava livros e CDs (dando preferência mal disfarçada às moças bonitas) e distribuía doses de uma cachaça especial que ele trazia do Rio Grande do Norte.

Uma figura dessas não poderia sobreviver impune à pseudo-profissionalização da academia brasileira: embora seja um dos maiores especialistas brasileiros em histórias-em-quadrinhos, com vários livros e artigos publicados, e faça parte da história da literatura nacional como um dos fundadores do poema-processo, Cirne, a partir de um determinado momento, passou a sofrer uma espécie de discriminação mal disfarçada no interior da universidade, tonando-se mais uma vítima da empáfia baseada em títulos –e não em conhecimento e cultura - ora vigente. Claro está que esses doutores imberbes de nariz empinado não têm um décimo da cultura de Cirne – para não mencionar sua coerência político-ideológica - para oferecer.


Cinéfilo refinado
No Balaio Porreta, além de dar vazão à sua vasta cultura geral, ao seu conhecimento profundo (embora tendencioso – menosprezando, por exemplo, Vinicius de Moraes) da poesia brasileira, às suas firmes posições esquerdistas – e de divulgar a poesia deliciosamente pornográfica de Chico Doido do Caicó (que eu por muito tempo julguei tratar-se do próprio Cirne) - ele elaborava tudo quanto é tipo de listas, das mais óbvias às mais inventivas, mas sempre com um conteúdo que indicava profundo conhecimento literário, musical, artístico e, sobretudo, cinematográfico.

Pois ele é um cinéfilo dos mais cultuados que conheci, como se pode constatar pela sua lista de melhores filmes dos anos 2000 até agora (desça a página até a edição de 13 de novembro) – só tem filmaços, raros nas listas dos ditos críticos especializados. Nos meus últimos tempos de Rio de Janeiro, eu o via sempre nas mostras e nas sessões alternativas, e às vezes trocávamos impressões, raramente coincidentes (pois ele tinha uma tolerância ao experimentalismo formal muito maior do que a minha), sobre o filme que acabáramos de ver. Lembro perfeitamente que foi ele a primeira pessoa que me chamou a atenção para Jacques Rivette, de quem ele adorava A Bela Intrigante (La belle noiseuse, França/Suíça, 1991), com suas quase quatro horas de duração – predileção a qual passei a compartilhar tão logo assisti ao filme.


Cirne possuía uma humildade autêntica que jamais em submissão se tornava - um dom especial, raro na espécie humana mas comum a muitos nordestinos, incluindo o presidente Lula. Mas acima de todos as suas qualidades intelectuais, sua bagagem cultural e sua coerência ideológica, o que ele transmitia era uma intensa afetividade, uma generosidade nada piegas, e uma solidariedade plena de calor humano. (Na pior crise empregatícia que vivi, quando terminei o mestrado e não conseguia emprego, encontrei-me por acaso com Cirne ao ir-me inscrever para um concurso. Nunca me esqueci da expressão sinceramente desolada dele ao saber de minha situação.) Não sei se ele está na ativa como professor ou se já se aposentou, mas tenho plena convicção de que tais qualidades fazem muita falta no ambiente universitário atual.

-X-

E assim, com esse post-homenagem a um mestre querido,o blog chega, para minha surpresa, ao 100º post. Talvez eu não seja tão displiscente quanto imagino...


(Foto de Cirne retirada daqui; a de Eco, dacolá)

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

6 aforismos sobre o caso Battisti

Mentem vergonhosamente os que afirmam que vigorava o Estado Democrático de Direito na Itália dos anos 70. Como atesta a Anistia Internacional, o Estado de Exceção que vigorou no país naquele período instituiu práticas equivalentes às da ditadura no Brasil, como tortura a granel e julgamentos baseados em ritos sumários – além de ter sido instrumentalizado politicamente como meio de perseguição a dezenas de milhares de cidadãos cujo único crime era ser de oposição. Mas quem quer continuar a acreditar que um Estado cujas leis autorizavam um limite para a prisão preventiva de 12 anos era democrático, fique à vontade. A auto-ilusão, esta sim, é democrática.


-X-


O comportamento da mídia brasileira no caso Battisti é particularmente suspeito. Poucas vezes se mentiu tanto – reafirmando tais mentiras para que em verdade se tornassem, como apregoou um certo demiurgo nazista. A histeria anti-Battisti atingiu um ponto tal que até blogueiros que militam pela não-extradição foram silenciados por hackers. É importante que todos saibam o porquê desse fanatismo da mídia – Veja à frente – e exatamente quais interesses eles satisfazem.


-X-


Caso Lula não impeça a extradição de Battisti para a Itália estará colaborando para a consumação de um perigoso precedente, pois a reabertura da temporada de caça às bruxas dos anos 70 pelo governo do bufão Silvio Berlusconi pode vir a ser imitada por outros governantes, e se alastrar no bojo de uma eventual “onda eleitoral direitista” – que é uma possibilidade potencial na Europa atual, mas da qual o Brasil não está livre.


-X-

A eventual deportação de Battisti produziria também uma mácula nos Direitos Humanos em âmbito transnacional, pois claro está que a prisão perpétua é praticamente certa, e indisfarçadamente em condições psicológicas ameaçadoras – incluindo tortura e ameaça de morte. Isso em pleno século XXI.


-X-

Os danos à imagem do Brasil no exterior não se restringirão a um abalo no arquétipo de terra acolhedora de estrangeiros e propícia à boa convivência, nem aos efeitos de declarações compreensivelmente ressentidas de intelectuais de peso – como Antonio Negri. O desrespeito à dignidade humana que a possível deportação implica depõe contra o estágio da Justiça do Brasil, num momento de projeção e afirmação do país em âmbito global.


-X-


Há uma contradição evidente – mas que não se dá a ver à primeira vista – entre o fato de a esquerda brasileira querer, com razão, a punição aos torturadores do regime militar mas pouco se mobilizar quando um preso político de outro país está prestes a ser torturado por um delito cometido em nome da luta política. Não se trata de comportamento inusual: essa mesma esquerda se mobilizou em peso para denunciar a tortura quando aplicada a presos políticos; mas agora, quando tais "métodos investigativos" continuam sendo rotineiramente utillizados contra presos comuns, excetuando ações pontuais como a do grupo Tortura Nunca Mais, se cala.

sábado, 14 de novembro de 2009

Imprensa: apagão ou desabamento ético?

Um blecaute que abrangeu dois países e 18 estados brasileiros, durando, em média, mais de três horas, é um acontecimento grave, preocupante. Tentar negar isso, como muitos entusiastas do governo de Luís Inácio Lula da Silva fazem, significa incorrer no mais potencialmente perigoso dos erros políticos: o da auto-ilusão.

O fato de o evento ser relevante não permite equipará-lo, no entanto, como a “grande mídia” em peso vem fazendo, ao chamado “apagão” que teve lugar durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso. Essa impossibilidade dá-se pelo caráter episódico, acidental da falta de luz da última terça-feira, que, ao contrário do que ocorrera durante o mandato do peessedebista, não se liga a um déficit estrutural no fornecimento de energia - como os dados oficiais o demonstram - nem demanda um rigoroso racionamento para evitar colapso do sistema, como o que então foi imposto à população brasileira.

Perpassado por uma euforia que mal se disfarça, o comportamento da mídia, porém, utilizando rápida e repetidamente o pregnante substantivo “apagão” para designar um episódio isolado, produzindo à mancheia manchetes que vocalizam acriticamente o pensamento da oposição, e procurando atribuir culpas a uma ministra responsável pela Casa Civil (função na qual não pode nem deve responder pela área de Energia) não condiz minimamente com a função da imprensa.


Imprensa age como partido político
Embora muitos hoje hesitem em acreditar, houve um tempo em que tal instituição preservava um certo interesse investigativo e ao menos a necessidade de aparentar neutralidade - embora, como parte do sistema capitalista tanto no âmbito estrutural quanto superestrutural, já servisse a interesses escusos os mais variados. Se agisse como em seus bons momentos de outrora. a imprensa constataria que a explicação de que o blecaute foi causado pela coincidência infeliz de três raios em áreas mais ou menos próximas umas das outras na estação de Itaberá (SP), embora não deva ser aceita acriticamente - e afigure-se, segundo o senso comum, absurda como hipótese -, tem explicações técnicas e evidências físicas consistentes a sustentá-la e que, segundo o diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Hermes Chipp, “Nenhum sistema do mundo é planejado e dimensionado para este tipo de ocorrência, é muito antieconômico pela baixa probabilidade de acontecer”.

Caso resolvesse cumprir seu papel e não agir como partido político, a imprensa poderia se interessar também pela hipótese de que o blecaute teria sido um ato de sabotagem com fins eleitorais e que teria ocorrido boicote na recusa em ligar o sistema anti-blecaute paulista. Por fim, se atrás da verdade dos fatos estivesse é mister constatar que a mídia teria então de se interessar até mesmo por sua própria – e suspeitíssima – mobilização pré-blecaute, curiosidade que seria, sabemos, uma impossibilidade.

Talvez o leitor possa estar agora pensando: isso tudo cheira à teoria da conspiração. Pode ser, meu caro, pode ser, mas uma das funções precípuas da imprensa é precisamente investigar os fatos para impedir a divulgação de versões falsas e tendenciosas (não que as hipóteses acima arroladas necessariamente o sejam).


Dois pesos, duas medidas
Três dias depois do blecaute, por volta das 22 horas da sexta-feira, um acidente de grandes proporções tem lugar no Rodoanel, a obra paulista que levou anos para ficar pronta e sobre a qual, segundo o Tribunal de Contas da União, pairam indícios de superfaturamento. Três vigas de 80 toneladas e 40 metros de comprimento cada uma desabam (e uma quarta fica pendente), fazendo a pista ceder, interditando por quase doze horas a rodovia Régis Bittencourt, atingindo vários carros e deixando alegadamente três pessoas feridas (número que eu coloco sob suspeita). De qualquer forma, as conseqüências foram muito menos desastrosas do que poderiam ser se o tráfico fosse intenso no trecho na hora do acidente, como é freqüente ao final da tarde e nas vésperas de feriado.

Trata-se do segundo desabamento de grandes proporções em uma obra do atual governo paulista (o primeiro deu-se nas obras da estação Pinheiros do metrô, resultando em ao menos 7 vítimas fatais). Como reage a imprensa? Após uma demora inexplicável para noticiar um fato sobre o qual já se conheciam detalhes nas redes sociais da internet, oferece uma ou outra manchete pouco informativa, numa cobertura incomparavelmente menos crítica e pouquíssimo curiosa se comparada àquela concedida ao blecaute três dias antes.

No início da tarde do dia seguinte, enquanto os destaques noticiosos do portal Terra fingiam desconhecer o assunto, a inacreditável manchete do portal UOL era: “Petistas usam acidente para atacar José Serra” - ou seja, além de negligenciar informações sobre um acidente em relação ao qual paira uma série de questões não respondidas, promove-se uma total reversão de valores, em que o mandatário que deveria estar sendo questionado sobre o segundo desabamento grave em seu governo passa a ser a vítima, e seus opositores os algozes. É o cúmulo da manipulação "jornalística"!

Já no portal Yahoo!,o destaque era, inicialmente, “Vítimas de desabamento passam bem e Régis é liberada”- o que poderia até ser uma manchete passável, se o padrão de velocidade de cobertura da imprensa brasileira fosse este e ela tivesse, nos dias que se seguiram ao blecaute, soltado ao menos uma manchete como “Energia elétrica é restabelecida e país volta à normalidade”. Mas o Yahoo! iria mais longe, e enquanto referências ao desabamento no Rodoanel desapareciam da sua grade com as 10 principais notícias, o portal logo substituiria a manchete quase passável por outra: “Governo trabalha para preservar Dilma após apagão”. Sobre Serra, menos de 24 horas após um grave acidente numa obra sob responsabilidade do estado em que governa, nenhuma palavra.


Mídia alimenta polarização
Como afirmei no post anterior, considero esse fla-flu Lula vs. FHC, PSDB vs. PT empobrecedor. É algo que tolhe o debate sobre as potencialidades do país e suas múltiplas possibilidades políticas, estéticas e culturais. Mas ante tamanha assimetria de tratamento de fatos pela mídia, com claros propósitos eleitorais, fica impossível abordar assunto outro além da atuação de nossa desacreditada e aparentemente incorrigível imprensa, entidade em franca decadência e que só faz açular a nefasta dicotomia referida no início do parágrafo, obrigando os cidadãos e cidadãs de bem a valerem-se da democratização da comunicação possibilitada pela internet para demonstrar que não são tontos e reagir ante tamanha manipulação de fatos.


(Imagem retirada daqui)

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Erundina e a Justiça no Brasil

Luiza Erundina é uma das figuras públicas mais injustiçadas da história da política brasileira.

Nas eleições à Prefeitura de São Paulo, em 1988, a mídia moveu-lhe pesada campanha antes, durante e depois de sua gestão à frente do mais alto cargo ocupado por essa assistente social que iniciou sua militância política nas míticas Ligas Camponesas de Francisco Julião e foi, por isso, perseguida pela ditadura.

Primeiro os jornais manipularam descaradamente as pesquisas pré-eleitorais até quando puderam: as últimas parciais divulgadas apontavam vitória de Paulo Maluf por margem razoável – mas nas urnas, três dias depois, refletindo o sentimento que pulsava nas ruas, a então candidata petista venceria por uma diferença ainda maior de votos. A imprensa fez que não era com ela, o Judiciário idem, e ficou por isso mesmo.

Para desespero do conservadorismo paulista e da mídia corporativa - sua porta-voz -, um partido de esquerda assomava à Prefeitura da maior cidade do país pela primeira vez após a ditadura. Tais forças incumbiram-se da tarefa de tudo fazer para desestabilizá-la.


A Prefeitura de São Paulo

Acompanhei a gestão Erundina muito de perto. Morei na cidade durante 3 dos 4 anos em que ela esteve à frente da Prefeitura, utilizando regularmente - assim como uma das minhas irmãs - o sistema público de transporte, cujas empresas inicialmente a boicotaram de todas as maneiras e depois, enquadradas, foram obrigadas a oferecer o melhor serviço de ônibus que a cidade teve nas duas últimas décadas (vingaram-se rodando de madrugada com os coletivos vazios, de forma a fazer a Prefeitura – que passou a pagar por quilômetro rodado – encher-lhes as burras).

Minha mãe era professora primária municipal, e forneceu-me provas irrefutáveis de que a Educação, que tinha como Secretário Municipal ninguém menos do que Paulo Freire, foi de fato tratada como prioridade, como nunca mais seria: estruturou-se o Plano de Carreira – uma reivindicação velha de décadas -, permitindo que os bons professores progredissem na estrutura organizacional; foram aumentados substancialmente seus salários (bem como os dos funcionários), que pela primeira vez superaram os da rede estadual; e, o mais importante, aprimorou-se substancialmente a qualidade do ensino (oferecendo cursos de aprimoramento aos professores, distribuindo em definitivo farto material didático e garantindo a presença de uma Coordenadora Pedagógica em todos os turnos); do uniforme (2 jogos completos distribuídos gratuitamente) e da merenda (que, ao contrário dos arremedos de lanche oferecidos pelas administrações subseqüentes, era composto de uma refeição completa – incluindo suco e sobremesa -, mais um lanche com leite e bolachas ao final do turno).

Além dissso, os chamados MOVAs - Movimentos de Alfabetização, baseados no método internacionalmente reconhecido desenvolvido por Freire, promoveram instrução massiva a adultos de forma inédita em âmbito municipal.

Também a gestão de Marilena Chauí à frente da Secretaria de Cultura não pode ser considerada menos do que brilhante. Levou, pela primeira vez na história da cidade, arte à periferia, montando programações anuais completas. A utilização de parques municipais para programações artísticas foi otimizada, e locais originalmente a elas destinados – destacadamente o Centro Cultural São Paulo, no Paraíso, hoje periférico na ordem cultural da cidade – ferviam de atrações gratuitas ou a preços simbólicos. (Lembro de lá ter assistido, pela primeira vez, a um filme de Nelson Pereira dos Santos, cineasta que seria, anos depois, objeto de estudo recorrente em minha vida acadêmica e sobre quem dirigi um documentário. Na fila à minha frente, muito baixinha, Regina Duarte, então considerada de esquerda...).

Nunca depois desse período foi dada a oportunidade à população paulistana em geral de assistir a tantas peças de teatro (arte que hoje tem preços proibitivos ao cidadão comum), nem oferecida uma interação tão azeitada entre produção acadêmica e universo cultural, com palestras e congressos memoráveis.

Na área da saúde, os avanços foram inegáveis: os postos passaram a funcionar no horário devido e com a equipe completa, acrescida de fonoaudiólogos e neurologistas; consulta e tratamento dentário regulares a estudantes da rede pública tornaram-se um fato cotidiano, e não uma quimera prevista na letra morta da lei.


Distorções midiáticas
Mas não é essa a imagem da administração Erundina legada à posteridade. Numa época em que não havia a internet para produzir contraposições ao enfoque adotado pela mídia corporativa, a prefeita sofreu uma campanha implacável, liderada pela Folha de São Paulo. O foco era exclusivamente negativista. A dissociação entre fato e notícia era total e a manipulação evidente a qualquer pessoa com senso crítico.

Pode-se ponderar que uma ou outra tese acadêmica escondida numa biblioteca universitária qualquer desmente essa distorção grosseira – mas quantas pessoas têm acesso a tais trabalhos? Muito me entristeceu constatar, anos depois, em conversa com um então professor que considero um dos maiores intelectuais brasileiros, com mais de uma dezena de livros publicados, que essa visão distorcida da administração Erundina prevalece, até fora do estado de São Paulo e mesmo entre pessoas progressistas - evidência que se corroboraria repetidas vezes nos anos seguintes.


Avis rara

O próprio PT, sempre titubiante em relação à auto-imagem, acabaria por introjetar tais críticas, delas se valendo para justificar o pragmatismo eleitoral do tratamento dispensado a Erundina. Num processo desgastante, o partido primeiro a suspendeu pelo período de um ano, "de todos os deveres e direitos partidários" por ela ter aceitado o cargo de ministra-chefe da Secretaria de Administração Federal na Presidência Itamar Franco, em 1993. Quatro anos depois, logo após ter sido abandonada por setores do PT nas eleições municipais de 1997 (o que facilitou sobremaneira a vitória do candidato que viria a ser o pior prefeito da história de São Paulo, Celso Pitta), ela deixa o partido e ingressa no PSB.

A saída de Erundina marca um dos pontos mais baixos da história do PT e um erro crasso - como o próprio partido acabaria por admitir, nas várias e malfadadas tentativas de aproximação que tiveram lugar nos últimos anos. Resultou na perda de um quadro político do mais alto gabarito e eticamente inatacável.

Palpável à época, o ódio contra a paraibana Erundina vem não apenas do preconceito de classe, mas do machismo e, talvez sobretudo, do preconceito contra nordestinos – que foram úteis à cidade quando, em posições subalternas, ajudaram a construí-la, mas agora são tratados como câncrios a importunar a paulistanidade. Justiça poética, são justamente esses segmentos populacionais que têm garantido a Erundina votações expressivas nas sucessivas eleições à Câmara Federal, onde sua atuação como deputada tem sido reiteradamente reconhecida e premiada por ONGs e por comitês de jornalistas.

Mas, nas duas vezes que concorreu novamente à Prefeitura, seu eleitorado – em que também se destacam militantes socialistas, setores da juventude de esquerda e a velha guarda do professorado municipal - não foi suficiente para elegê-la. Isso se deve, notadamente, à divisão da esquerda patrocinada pelo PT. Nesse processo, não bastasse a cerrada oposição da direita corporativa, até Marta Suplicy, com a arrogância típica que a impede de realizar voos mais altos, destratou grosseiramente Luiza Erundina na campanha eleitoral à Prefeitura, em 2004. Ainda assim, a candidata do PSB não hesitou em apoiar a petista no segundo turno, demonstrando, uma vez mais, sua retidão de caráter e sua coerência ideológica.


Condenação absurda
Agora, aos 75 anos, essa avis rara da vida nacional – um dos poucos interlocutores com os quais se pode conversar olhos nos olhos, certo de que franqueza e sabedoria se receberá em troca -, enfrenta um duro e inesperado desafio, na forma de uma condenação judicial que a obriga ao pagamento de inacreditáveis R$350 mil.

Seu pecado? Numa época em que os jornais e TVs vetavam-lhe acesso e que a direita praticamente monopolizava as administrações municipais e estaduais, com livre divulgação de suas posições políticas, ter publicado material comunicacional divulgando que a a Prefeitura de São Paulo, como instituição - e não ela, Erundina - apoiava a greve geral convocada pelas centrais sindicais. Ou seja, por uma prática rotineira nos âmbitos municipal, estadual e federal, que tem lugar cada vez que Lula utiliza a radiodifusão pública para expressar a posição da Presidência sobre determinado fato político ou cada vez que Serra utiliza-se do porta-voz - que é sustentado por dinheiro público - para condenar, por exemplo, a atuação do Banco Central em relação ao câmbio. Que, como observa André Borges Lopes em comentário que você, caro(a) leitor(a), pode ler aqui (clique em "Leia Mais", ao final do post), a situação político-comunicacional da época fosse particularmente peculiar, é um dado que só torna a condenação mais absurda.

Para pagar essa dívida, foi penhorado seu único apartamento, seu carro e imposto um desconto mensal a seu salário – mas, ainda assim, a quantia arrecada é insuficiente, e entidades e amigos mobilizam-se para ajudá-la. Foi aberta uma conta bancária para arrecadar contribuições: Banco do Brasil, agência 4884-4, conta corrente 2009-5, em nome de “Luiza apoio você”.

Como parte dessa movimentação, ontem à noite teve lugar um jantar de desagravo a Erundina, voltado à arrecadação de fundos para ajudá-la a honrar a dívida judicial. O evento - ao qual, infelizmente, não pude comparecer - foi, como reporta Luís Nassif, um enorme sucesso, com lotação esgotada, o que prova o reconhecimento e o carinho que a homenageada fez por merecer.

Mas essa revoltante punição a uma cidadã honesta e coerente, que passou a vida dedicando-se à construção de um país melhor, enquanto tantos pistoleiros, bandidos políticos da pior espécie, continuam impunes, é um retrato acabado do absurdo chamado Brasil.



(Foto, da autoria de Antonio Cruz, retirada daqui)

domingo, 8 de novembro de 2009

Uniban e a urgência da questão de gêneros

O ensino privado superior, no Brasil, se transformou há tempos em big business. Seus prédios pós-modernos, multicoloridos, que se assemelham a shopping centers, são fachada para transações escusas: compra-se a alma ansiosa de milhões de jovens, ávidos pelo ticket de entrada na ordem dos bípedes com formação superior: um papel pintado que atende pela alcunha de diploma universitário; vende-se um ensino de qualidade risível, na forma de aulas-espetáculo. De lambuja, a confusão de matrículas trancadas, mensalidades atrasadas, bolsas de isenção y otras cositas más abre espaço para uma série de manobras contábeis, incluída, majestosa no carro-chefe, a lavagem de dinheiro.

Assim, naturalmente, esses shopping centers – digo, essas respeitosas entidades de ensino superior – estão, no mais das vezes, nas mãos de uma fauna peculiar, afeita a tais alpistes: bicheiros, mafiosos em geral, figurões da extrema-direita. Não por acaso, o elo comum entre várias dessas figuras é um certo político paulista, sempre às voltas com a Justiça, e que, segundo o dito popular, “rouba mas faz”.

Essa pouca-vergonha, que se multiplicou exponencialmente durante a desastrosa gestão de Paulo Renato no MEC, continuou a todo vapor no atual governo, e açulada então pela transferência de fundos públicos à iniciativa privada que é o ProUni. Este assunto não comporta, portanto, o fla-flu político-ideológico e a decorrente atmosfera de turba que tem empobrecido sobremaneira o debate: FHC e Lula dividem a culpa pelo desastre.

Atmosfera de turba, aliás, foi precisamente o que se verificou à entrada de Geisy Arruda, toda-toda de ultraminisaia, nos corredores da Uniban – e quem pensa que o embate político-ideológico citado acima e a reação enfurecida dos universitários não se relaciona, talvez devesse refletir melhor: são ambos manifestações de um estágio pré-fascista, em que a intolerância para com o discordante se manifesta em intransigência e agressividade.

Pela intransigência também prima a reação da mercearia de diplomas que atende pelo nome de Uniban. Com a desculpa caracteristicamente fascista de que “a educação se faz com atitude e não com complacência” (e eu que sempre pensei que se fizesse com conteúdo e ética...), pune a vítima e não os agressores, tendo o desplante de dar um puxão de orelhas na mídia por ter, segundo a universidade (sic), perdido a oportunidade de realizar um debate "sério e equilibrado". O comunicado, travestido de anúncio de decisão punitiva, em ode ao linchamento moral se torna ao afirmar que “a atitude provocativa da aluna resultou numa reação coletiva de defesa do ambiente escolar”.

Provocativa? Reconheçamos: Geisy Arruda é gostosa. Não possui, é fato, aquele tipo de beleza física que a mídia definiu como padrão – mas, materialista como ela só, esta entidade decrépita tem uma visão muito peculiar e distanciada da realidade do que sejam sexo e amor: concebe o primeiro como uma espécie de ginástica aeróbica localizada - para a qual fornece, inclusive, mapas detalhados - e o segundo como uma trama sentimental de boas maneiras e promessas de felicidade constante. Exagera no açúcar.

Na vida real, porém, Geisy, a despeito de seus quilinhos extras - que a tornam uma espécie de Carla Perez com umas polegadas a mais -, atrai a atenção masculina, certamente muito mais do que uma modelo magérrima o faria. Tem aquele tipo de sex appeal evidente, uma carnalidade algo ostensiva, que tende a provocar manifestações e assobios quando passa por uma obra em construção (algo que, segundo um delicioso post de Camila Pavanelli, não ocorreria se ela morasse nos EUA...).

A menção à ex-dançarina do É o Tchan! não é vã: Geisy pertence a uma geração de crianças que cresceram no auge do sucesso do grupo: a “dancinha da garrafa” era um hit nos aniversários infantis do período. A classe média soi disant elite cultural e as pessoas cultas de forma geral tendem a desprezar o fenômeno da axé music não só por razões musicais, mas por este ser essencialmente popular – e, verdade seja dita, por considerá-lo lascivo e vulgar, como os estudantes da Uniban consideraram os trajes de Geisy -, mas ele tem uma dimensão bem maior do que à primeira vista sugere: não só a (duradoura) moda das “falsas loiras” foi disseminada a partir desse cadinho de cultura, como ele definiu um padrão de vestimenta, de comportamento nas pistas de dança e de exibição do corpo feminino em determinadas classes sociais. Não é preciso esforço para enxergar tal influência na persona sexual de Geisy.

Questiona-se, em uma série de textos, a alegada inadequação dos trajes de Geisy ao ambiente acadêmico (mote que rendeu a melhor análise que li sobre o caso – escrita por Raphael Neves, do blog Politikaetc), mas seria reducionista creditar a um contexto isolado tanto tal suposta inadequação quanto a assustadora reação dos estudantes (que você pode ver aqui, comentada). Significaria, implicitamente, adotar a suposição de que aquele grupo específico de alunos obedece, por alguma exótica razão, a uma ética própria, a qual não é partilhada por outros setores da sociedade. Ilude-se quem quer.

Espera-se que a descabida reação do armazém de aulas, de um moralismo arcaico, que pune a linchada e não seus linchadores, seja alvo não apenas de processo por danos morais (que o advogado de Geisy Arruda já se declarou disposto a mover), mas de investigação e punição por parte do MEC. Ainda antes do anúncio comunicando a decisão da Uniban, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) do governo federal já havia divulgado nota afirmando que o episódio fere princípios constitucionais. Seu parágrafo de abertura é definitivo:

“Justificar qualquer crime ou mesmo discriminação contra a mulher só faz propagar a cultura sexista de gênero, pois afasta a culpa dos agressores, transmitindo-a a fatores secundários como o uso inadequado de roupas, comportamento provocativo ou ainda à conduta da mulher”.
Se a reação dos alunos da Uniban já era intolerável, a decisão do mercadinho de ensino de punir Geisy Arruda demonstra, de forma cabal, que a questão de gêneros no Brasil ainda engatinha - e é tema de extrema urgência.


(Imagem retirada daqui)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

De autoritarismo e ditadura


Ao acusar, com argumentação pífia, o atual governo de “autoritarismo” e comparar suas práticas às da ditadura, FHC, além de municiar seu circo de trolls amestrados - que, incapazes de pensar por si mesmos e covardemente ocultos pelo anonimato, repetem como papagaios acéfalos as palavras do mestre-bufão -, transpõe os limites da razão, do bom senso e da verdade histórica.

Como príncipe dos sociólogos, o ex-presidente sabe que não há, na teoria política, categorias que permitam pespegar no atual governo o rótulo de autoritário – muito pelo contrário. Vivemos a democracia plena. Mais do que isso: Lula tem aturado uma mídia corporativa que transgride todos os limites da ética jornalística com uma passividade que muitos consideram excessiva. E a democracia pressupõe direitos e deveres que dizem respeito a todas as instituições - inclusive à imprensa.

Assim como fingimos não notar que o Supremo Intelectual da Pátria, em seu texto-esperneio, concorda “A enxurrada” com “talvez levem” e atribui a Hamlet uma fala de Polônio, simulemos não perceber o absurdo de alguém do mesmo PSDB da lei protofascista do fumo promulgada por Serra ousar acusar outrem de autoritarismo, e de um membro do partido que elege seus candidatos com quatro caciques em torno de uma garrafa de vinho francês num restaurante cinco e$trela$ acusar Lula de “dedazo” na escolha de Dilma Rousseff (como se não fosse ela a ungida pelas correntes majoritárias do PT). A senilidade pede compaixão.

Ainda assim, algumas interrogações se impõem: o que é, de fato, autoritário: nomear, como o atual presidente fez, um Advogado-Geral da União que não se deixou intimidar por eventuais pressões do partido no poder e denunciou à Justiça os envolvidos no chamado “Mensalão” ou, como FHC preferiu fazer, colocar na função uma figura que de lá saiu denominado pelo autoexplicativo apelido de “Engavetador-Geral da República”?

O que é autoritário: privatizar, “no limite da irresponsabilidade”, o patrimônio público, sem que se saiba até hoje o destino do numerário arrecadado no processo - então a alegada panaceia que nos levaria ao “Primeiro Mundo” - ou discutir caso a caso com a sociedade o destino a ser dado ao patrimônio que é dela, como ora se faz?

O que é um “pequeno assassinato”, como brada o príncipe uspiano? Procurar resguardar os dividendos do Pré-Sal através de emenda proposta ao Congresso após mais de um ano de elaboração, como fez o atual governo, ou, como nos lembra O Hermenauta, resolver a privatização das telecomunicações brasileiras - então o filet mignon do patrimônio público - atropeladamente, em quatro meses, como fez FHC?


Brutalidade da ditadura desautoriza FHC
Porém muito mais grave, do ponto de vista ético e histórico, do que essas risíveis acusações do panfleto ressentido publicado pela "grande imprensa" é a comparação das políticas em curso com “autoritarismo militar”. Pois este se traduziu em atos de extrema crueldade, como arrancar os dois olhos de Bacuri na tortura, para tentar forçar uma delação (em vão; era um bravo); a enfiar um cano na vagina de uma presa e nele colocar um rato, vedando a outra extremidade do cano, para que o animal roesse-lhe as entranhas; a torturar Stuart Angel arrastando-o com a boca amarrada ao escapamento de um jipe, matando-o por asfixia por monóxido de carbono; a assassinar "Jonas" - que chefiou o sequestro do embaixador norte-americano - aos poucos, atirando-o sucessivas vezes contra uma parede de cimento. A reduzir presos políticos indefesos a farrapos humanos, arrancando-lhes a dignidade e impondo-lhes o terror físico e psicológico – este, de longa duração, e que levaria pessoas de alma mais sensível como Frei Tito a suicidar-se anos depois das sevícias sofridas.

Isso, sim, é autoritarismo militar. E suas práticas estão muito bem atestadas em pesquisas como o projeto Brasil, Nunca Mais , internacionalmente reconhecido como a mais abrangente pesquisa sobre os porões do regime (conheça também o ótimo blog de Maria Frô - de onde tiramos a terrível foto acima -, para conhecer as histórias dos torturados e constatar, nas fotos de seus cadáveres, o grau de brutalidade empregado).

Enquanto seus "companheiros de luta" sofriam tais destinos, FHC, após uma temporada no melhor estilo "esquerda festiva" no Chile, alheio a tais autoritarismos de fato, se empanturrava de Veuve Clicquot e foie gras na França.

Aliás, um dos mistérios que cercam a história brasileira diz respeito à trajetória de certos soi disant esquerdistas – notadamente políticos hoje pertencentes ao PSDB paulista - que, ao conseguirem sair ilesos, sabe-se lá como, do Brasil ditatorial para o exílio, pobres, remediados, dele retornaram ricos. FHC, por exemplo, era um mero professor - que dava aula, segundo testemunhas oculares, apresentando-se com as meias furadas.

Pois esse membro remediado de uma das classes trabalhistas mais vilipendiadas, quando volta do exílio arrotando camembert, estava bem nutrido, altivo e já apresentando aquela empáfia de príncipe que tanto excita – sexualmente, inclusive - os colunistas nativos (respeitemos as parafilias alheias). Quem sustentou FHC, Serra e cia. no exterior? Às custas de quais acordos? Em troca de quê? A historiografia nacional nos deve as respostas a essas perguntas. (No Vi o Mundo, o respeitabilíssimo jornalista Altamiro Borges mostra os indícios de que, em plena ditadura, FHC era sustentado pelos dólares da CIA. Leia aqui.)

Após passar da quase-mulambagem à elite no exílio, FHC - que tem como hobbie colecionar aposentadorias, especialmente as polpudas - foi brindado com uma compensação financeira mensal devido às privações que lhe teria imposto a ditadura. Já herois como o capitão Sérgio Macaco (clique aqui para conhecer sua incrível história) sofreram por anos a fio para ser reconhecidos, e muitos dos torturados e dos que foram de fato perseguidos, como não são ricos nem dispõem de influência política, continuam na fila da merecida aposentadoria especial; alguns, como ocorreu com a viúva Cerveira, sofrem até hoje perseguições e boicotes.


A coerência do ex-presidente
Mas, a bem da verdade, devemos reconhecer: pode-se acusar FHC de muitas coisas, mas não de incoerente. O desprezo que demonstra pela democracia e pelos que sofreram na ditadura, ao atirar, sem o mínimo critério, acusações de autoritarismo a governos democratas, relaciona-se com sua própria história de vida: enquanto os esquerdistas de fato contavam seus mortos, tratavam-se das chagas da tortura ou, não suportando o trauma, se suicidavam, ele assomava à alta burocracia peemedebista (depois peessedebista).

Do mesmo modo, a raiva que manifesta em seu artigo contra a aprovação popular do governo e contra o fato da autoestima do brasileiro ter aumentado é plena de coerência. Afinal seu governo, anti-Brasil e anti-povo, sempre necessitou de uma população envergonhada de sua própria terra para que pudesse submetê-la, em posição subalterna, à ordem (sic) econômica mundial capitaneada pelos EUA.

Portanto, ao fazer tais acusações descabidas contra um governo democraticamente eleito e que mantém as liberdades plenas no país, FHC não traz à luz fato algum, exceto em relação a seu próprio caráter – ou à falta dele.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Digressões sobre os anos 80


O fascínio em moda pelos anos 80, vigente já há uns 3, 4 anos e observável na profusão de festas temáticas e no sucesso de filmes como Meu nome não é Johnny, embora compreensível e não de todo injustificado, é seletivo: esquece o que a década teve de desolador e depressivo, de vitória do establishment e do yuppismo contra o que restara da contracultura pós-1968.

O que esse culto aos anos 80 procura resgatar é, na verdade, a atmosfera do período inicial da década – uma fase particularmente rica em diversidade musical, com uma profusão de bandas de alto nível e com uma estética multicolorida e inventiva no cinema e na moda, em que mesmo o clima soturno de certos grupos pós-punk e de alguns cineastas de vanguarda era cultuado com enlevo.

Essa “Primavera de Praga” transnacional foi abruptamente interrompida.

Pois a coincidência, num mesmo momento, do surgimento da AIDS e do estabelecimento do neoliberalismo como ideologia e prática política hegemônica representou um duríssimo golpe para o exercício pleno da sociabilidade humana nos âmbitos afetivo e material. Este é um tema que está longe de ser satisfatoriamente debatido e a memória do que era a dinâmica social do sexo antes da AIDS continua, com raríssimas exceções, praticamente restrita à história oral. Eis um desafio aos historiadores.

A queda do Muro de Berlim, que ora faz 20 anos, lançou as esquerdas numa crise de rumos que se arrastaria por décadas, e, além dos efeitos já citados, a expansão da AIDS representou, no momento em que foi vivida como trauma, um duro golpe às lutas das minorias e à liberdade sexual plena, favorecendo o discurso moralista e os embustes religiosos; a ecologia, que anos antes parecia caminhar rumo ao status de política prioritária, dada sua importância para a sobrevida da raça humana, viu-se relegada pelos governos e confinada pela mídia, sob o rótulo de causa política de chatos. No Brasil, o governo Sarney havia tornado a corrupção endêmica aos olhos de todos (na ditadura, sob censura, só o era aos olhos de poucos). Enquanto o yuppismo alçava o sucesso material como meta máxima da existência humana, as crianças brasileiras aprendiam com Xuxa como é importante ser linda, magra e loira, competir e vencer sempre, e ter toda a linha de produtos da apresentadora.

A ascensão de Fernando Collor à Presidência, no bojo da onda direitista latinoamericana, representou a inserção do Brasil nessa nova ordem mundial . Nosso jovem, “elegante” (sic) e yuppie presidente, eleito, iria caçar marajás, acabar com a corrupção e, como se dizia, levar o país ao Primeiro Mundo. No primeiro dia lançou um plano econômico inédito nos anais da história econômica mundial, confiscando patrimônio privado no varejo. No segundo acabou com o cinema nacional. No terceiro...

Um filme que captura de forma magnífica esse estágio crepuscular do que restava de rebelde e de contestador em meio à ganância individualista que tomaria forma final nos anos 90 é Os Renegados, ou Sans toi ni loi (Sem teto nem lei, em tradução literal), dirigido em 1985 - ou seja, no momento mesmo da ruptura conservadora - pela primeira-dama do cinema francês Agnès Varda. Não é minha intenção discorrer aqui sobre esse que é um dos filmes que mais amo na história do cinema, considerado por Susan Flitterman-Lewis o “Cidadão Kane feminista”. Talvez eu o faça um dia - por enquanto, leia o belo texto de Rafaela Camelo sobre Agnés e Sans toi ni loi. De qualquer modo, fica a dica: a história da garota mochileira (encarnada com garra por Sandrine Bonnaire, no papel de sua vida), contada em flashback a partir do momento em que seu corpo, morto pelo frio, é achado em um vinhedo, é, a um tempo, um libelo e um epitáfio a 1968 e aos que, em qualquer época, ousaram tentar transformar seus sonhos de liberdade em realidade.

Um feito que, em meio ao individualismo materialista predominante, as festas temáticas sequer conseguem invocar.

(Imagem de Sandrine Bonnaire como Mona retirada daqui)

domingo, 1 de novembro de 2009

Para onde vai Fernando Henrique Cardoso?

De ex-presidentes é esperado um comportamento discreto, respeitoso para com seus sucessores, que paire acima dos ódios políticos e colabore para o avanço do país. Se um deles eventualmente discordar do modo como o país é conduzido e não consegue ou não quer guardar para si tal discordância, deve manifestá-la de forma polida, racional, colaborativa, sem qualquer laivo de agressividade ou ataque pessoal.

Os EUA têm dado, ao menos nesse quesito, uma demonstração de civilidade democrática. Em sua grande maioria, seus ex-presidentes mantêm uma postura respeitosa para com os chefes de estado que os sucedem. Alguns, como Jimmy Carter e Bill Clinton, continuam servindo ao país em fóruns internacionais mesmo quando este é governado pela oposiç.ão. Até na fase terminal, lame duck,  do pior mandatário da história norteamericana, George W. Bush, quando as críticas se fizeram inevitáveis, elas não deixaram de obedecer, no mais das vezes, a certos protocolos e de manter o respeito pela Presidência enquanto instituição.

Tais digressões vêm à tona no contexto da repercussão do artigo “Para onde vamos?”, escrito pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e publicado neste domingo pelos jornais O Globo, O Estado de São Paulo e Zero Hora, entre outros, e reproduzido em diversos blogs, a começar do de Luís Nassif, que lembra:

“Quando os novos governadores tucanos foram eleitos, alertei: tomem o PSDB de FHC; exercitem a retórica da negociação, da civilidade. FHC só terá a oferecer a retórica vazia da guerra. Eis aí um caso clássico da miséria do discurso”.

Eu recomendaria ao leitor que ainda não leu o hidrófobo artigo do ex-presidente, que o fizesse no blog O Hermenauta, que oferece uma leitura crítica contrapondo as acusações do peessedebista a Lula aos atos pregressos do próprio governo chefiado por FHC.  

Confesso que tive dificuldades para levar a sério a argumentação crítica do ex-presidente, primeiro porque a acusação difusa e imprecisa de autoritarismo que perpassa o artigo nãoé sustentada por nenhum ato institucional ou prova material produzidos pelo governo de turno, constituindo, portanto, mera estratégia retórica de choque empregada pelo dublê de articulista. “Poder presidencial com aplausos do povo, como em toda boa situação autoritária”, escreve FHC, como a sugerir, numa lógica torta, que só os governos sob vaias seriam democráticos. 

Ora, conquista hegemônica de poder, respeitadas as regras democráticas institucionais – e FHC não fornece evidência alguma de que estas não estejam sendo seguidas -, é o jogo jogado. A leitura de seus arrazoados acaba por dar a impressão de que a ambição – no caso, da aliança liderada por PT e PMDB – de continuar no poder tem algo de intrinsicamente autoritário. Mas não foi Sérgio Motta quem anunciava aos quatro ventos que o projeto do PSDB era de 20 anos na Presidência? Dois pesos e duas medidas?

Segundo porque parece-me indisfarçável que o que move o peessedebista não é, de forma alguma, a razão e as alegadas preocupações com o presente estado e o futuro do país, mas os humanos, demasiadamente humanos sentimentos figadais da inveja, do ciúme, do despeito e do orgulho ferido.

Bastariam para atiçar tais rancores o sucesso da política econômica – com o Brasil sendo o primeiro país a sair da crise mundial -, das políticas sociais que tiraram mais de 30 milhões de pessoas da pobreza, da diplomacia que colocou o Brasil efetivamente como player mundial (um feito que FHC se esforçou por lograr e não conseguiu) e, talvez acima de tudo, a projeção internacional de Lula, reconhecida tanto pelos principais órgãos da mídia mundial como por governantes de modo geral, Barack Obama à frente.

Mas há mais: FHC começa, finalmente, a ser preterido e renegado por seu próprio partido, o qual tenta manter sob seu controle desde que deixou a Presidência. Vinha sendo bem sucedido até então, apesar do ônus que impôs, respectivamente,  a José Serra e a Geraldo Alkimin nas eleições presidenciais em que, pesando como uma pedra no lombo dos candidatos peesedebistas, colaborou sobremaneira para o duplo naufrágio. Nesta semana, porém, o PPS impôs como condição ao apoio a Serra na próxima corrida ao Planalto que o PSDB se desvencilhe do fardo FHC. Ele acusou o golpe.

Se se tratasse do grande intelectual e da personalidade política que seus acólitos e a mídia de forma geral apregoam, FHC poderia ter evitado se prestar a esse papel constrangedor, que será julgado pela História. Tivesse mantido uma postura serena e madura – ainda que eventual e respeitosamente crítica -, o tempo encarregar-se-ia de envolver em um véu de esquecimento sua Presidência de raros acertos e colossais erros, entre eles os que levaram o país à insolvência três vezes e legaram um índice altíssimo de desemprego, que ora atinge seu menor nível histórico.  

Substituindo os ataques pessoais e a manifestação histérica de sentimentos à rés do chão por uma atitude urbana, civilizada, condizente com a de um ex-mandatário máximo do país, conseguiria, com o apoio das forças comunicacionais das quais dispõe, preservar sua própria imagem através dos tempos.

Para assim agir, no entanto, é necessário ser um estadista. Coisa que Fernando Henrique Cardoso já deu mostras evidentes de que não é.