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segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Por um novo jornalismo

O grande jornalista que é Leandro Fortes, afirma, em Manifesto Jornalístico publicado em seu blog, que os próprios profissionais do ofício submetem-se intencionalmente a práticas auto-determinadas por um ambiente no qual “Vive-se a primazia da má fé e louva-se a inversão dos valores como condição primordial à sobrevivência dentro do mercado”.

A ênfase mais polêmica do manifesto vem da afirmação que “A canalha é de jornalistas, não de patrões, é preciso que se diga”. Não pretendo discutir aqui a questionável assertiva – a qual ou entendi mal ou tenderia a discordar, no que tange aos patrões -, mas sua citação neste espaço é mais um motivo para você, leitor(a), ir lá conferir o vigor instigante do texto de Leandro.

O que me interessa reter, por ora, é essa situação vivenciada pelo jornalista, de renúncia a constrangimentos éticos em nome da sobrevivência no mercado (sobrevivência que, como Leandro aponta, poderia se dar de outra forma); de inversão dos fatos e insistência no falso em nome da primazia da má-fé; de um estado de coisas tal que um jornalista justamente consagrado não se furta a chamar de “canalha” seus colegas de profissão – e, o que é pior, estes não se avexam em retrucar, pois falta-lhes moral e brio para tanto.

Acostumamo-nos a isso, de uma forma tal que um dos esportes mais praticados na internet brasileira é a crítica à imprensa, merecedora até mesmo de uma sigla tão mordaz quanto generalizante utilizada de forma ampla para caracterizá-la: PIG (Partido da Imprensa Golpista), criada por Paulo Henrique Amorim, jornalista consagrado que aderiu ao novo esporte sem abrir mão de uma atuação mainstream numa TV sustentada pelo neopentecostalismo, em que repete várias das vicissitudes criticadas nas arenas virtuais – inclusive na sua.

Também não é sem mordacidade que constato que sem a “grande mídia” a blogosfera perderia grande parte de seus temas – e de sua graça. Trata-se, é evidente, de um paradoxo – e de uma realidade que muitos blogueiros insistem em fingir não ver. A crítica à mídia é não apenas bem-vinda mas, neste momento mais do que nunca, necessária. Só que isso tem levado a um sentimento anti-mídia generalizado que gera distorções e equívocos históricos que se perpetuam.

Por exemplo: ao contrário do que muitos críticos virtuais insistem em afirmar de forma um tanto inconsequente – pois sem conhecimento de causa – a “grande imprensa” nem sempre foi assim. O modus operandi da plutocracia midiática e suas meia dúzia de famiglias, é verdade, pouco mudou através dos tempos, mas o jornalista - este ente profissional hoje exterminado no Brasil por uma decisão infeliz da pior Alta Corte de nossa história – foi, ao menos até o fim dos anos 80, um dos principais agentes de resistência político-ideológica, no mais das vezes identificado com a necessidade de redemocratização do país, com as lutas sociais e como questionamento da aliança entre elite econômica e poder político.

Um dos motivos para tal é que um número considerável de jornalistas provinha da intelectualidade (a maioria deles comunistas, partido então com forte presença nas hostes culturais) em busca de sustento material, repaginados para consumo diário, como sugere o sociólogo Sergio Miceli em seu imprescindível estudo sobre os intelectuais no Brasil na primeira metade do século XX.

O jornalista constituia-se, então - e por um longo tempo -, em um ente identificado com a esquerda a um ponto tal que um venerando analista de nossa imprensa predisse que quando Lula subisse ao poder os barões da imprensa não conseguiriam produzir um retrato condizente de sua administração, tamanha a resistência, manipulação e boicotes que os jornalistas imporiam como forma de defender Lula. Ledo engano.

Se bem que, na verdade, a premissa inicial contida na profecia de tal oráculo se confirmou, já que poucas - ou nenhuma - presidências foram enfocadas de forma tão distorcida como a de Lula. Só que essa distorção não foi pró-Lula e levada a cabo pela esquerda, mas contra o presidente duas vezes eleito e à direita. Além das explicações contemporâneas para tal processo, há fatores mais profundos que tem raizes históricas. Poucos setores foram tão afetados pela que a Queda do Muro de Berlim representou – e pelo quadro materialista-ideológico que a sucedeu - quanto o jornalismo nativo, e por razões as mais diversas:

- A perda definitiva da hegemonia no PCB na seara cultural;

- O trauma na esquerda, seguido do vazio pela perda de horizontes político-revolucionários (simbolizados no “fim da história” de Fukuyama);

- O processo de desideologização social (lembrem-se de Cazuza berrando que queria uma ideologia pra viver) e a cultura materialista extrema imposta pelo yuppismo dos anos 90;

- A explosão, via disseminação do ensino superior, de mão-de-obra barata, concomitante ao empobrecimento intelectual da imprensa;

- O barateamento do acesso à informação e a simplificação - ou extinção - de procedimentos diversos ligados à produção industrial da notícia, que o advento da era da telecomunicação digital trouxe em seu bojo.


Esses fatores, somados e açulados pelos processos globalizantes de padronização vertical e horizontal dos meios jornalísticos e de concentração de capital via megafusões, geraram o jornalista que ora conhecemos, esse ser híbrido e um tanto esquizofrênico: por um lado, em maioria, um pobre-diabo mal ajambrado, quase sempre sub ou desempregado, ávido por qualquer frila, brandindo quixotescamente a bandeira de seu talento e de sua ética inflexível; por outro, uma espécie de oráculo dos deuses, em seus ternos e tailleurs bem cortados, subservientes ao mercado e às forças políticas mais retrógradas em troca do vil metal, que aliena e mantém sua suposta condição de “formador de opinião”. É precisamente na travessia da ponte profissional entre esses dois estereótipos carregados que ele se transforma na “canalha” a que alude Leandro Fortes.


Talvez, ao invés de erguer como bandeira a destruição da mídia, como tantos o fazem, seja a hora de sairmos dessa falsa dicotomia representada por esses dois estereótipos propositadamente exagerados, aproveitando o potencial e talento jornalístico abundante fora das grandes redações – é este o subtexto do manifesto de Leandro.


De minha parte, não estou entre os que querem ver a “grande mídia’ destruída – aliás, acho essa posição de uma irresponsabilidade sem tamanho. Não apenas por uma questão de securidade sócio-econômica que diz respeito a todo um setor empregatício, nem porque a blogosfera independente está ainda longe de se estruturar em bases profissionais que permitam a produção da notícia em bases industriais. Mas porque acredito na viabilidade de uma alternativa intermediária, que reúna, em bases profissionais, o melhor do pensamento crítico da blogosfera aos meios de produção industrial da notícia.


E é também precisamente aí que o Manifesto de Leandro é alçado à sua dimensão maior, na proposição de um novo jornalismo, profissional, remunerado, mas honesto, encerrado na predição de que “É possível ser jornalista e trabalhar em qualquer lugar sem se submeter ao mau-caratismo. Arriscado, mas possível”.



(Imagem retirada daqui)

8 comentários:

Silvana disse...

Mauricio, lendo seu texto, me veio à mente primeiro um ditado: "Enquanto houver cavalo São Jorge não anda a pé". Ou, não há opressor sem oprimido. O jornalista que se envolve até a raiz dos cabelos nessa lama ou realmente é apreciador dela ou não tem alternativa. Aí penso também no tipo de relação que se estabelece entre empregador e empregado, que nem o vículo pela CLT nem a prestação de serviço como pessoa jurídica resolvem. Agora eu pergunto: como anda a atuação dos sindicatos de jornalistas? Mas eu pergunto também: os jornalistas com menos tempo de carreira sabem pra que serve um sindicato ou acham que é perda de tempo e dinheiro?

Unknown disse...

Silvana,

Legal ver vc aqui comentando!

A atuação dos sindicatos nunca foi tão pífia. O único que efetivamente funciona - no sentido de defender seus sindicalizados - é o patronal.

Muito colabora para isso essa mentalidade - uma das "heranças malditas" do período neoliberal - de achar que sindicato é perda de tempo e dinheiro - se bem que, na forma como (não) atuam, fica difícil convencer os jovens jornalistas do contrário...

O vínculo pela CLT decerto não resolve, mas é incomparavelmente melhor do que a prestação de serviço como pessoa jurídica - que se tornou a norma, o que é uma excrescência, inclusive do ponto de vista jurídico.

Também acho, como você, que é ou por identificação ou por falta de alternativas que os jornalistas se envolvem na lama. Minha discordância com o Leandro é que ele acha que é mais por aquela do que por essa, e eu o contrário. Mas ambos acreditamos numa saída para essa dicotomia.

Uma abraço,
Maurício.

bete disse...

mais um excelente post, fica difícil comentar pq tem muito do que eu mesma penso aqui.
mas complentarai o que vc acabou de responder aí pra Sil, o desmonte do sistema sindical que ocrreu na diatura dá nisso. Não é questão de ideologia, ou da falat dela, é falat de visão crítica do mundo e de noção de qual lugar pertencemos, e quesomos parte de um todo lutando pra melhorar. Sindicatos hj me parecem meros trampolins para carreristas politiqueiros.

Hugo Albuquerque disse...

Maurício,

Para variar, um belo post. Escrevo aqui antes de ler o post do Leandro Fortes, mas eu tendo a ficar praticamente no meio do caminho entre a sua posição e a deles sobre de quem é o canalhismo maior - ainda que pendendo um pouquinho para o seu lado.

Essa recente detoriaração da grande mídia, em especial de alguns veículos da mídia corporativa situados em São Paulo, retratam um movimento muito violento e muito grande de reação aos avanços ocorridos no Governo Lula.

Claro, desde o Golpe de 64, o modelo oligopolista já estava mais ou menos desenhado - especialmente no que toca ao controle da mão-de-obra via imposição do diploma por meio de decreto da ditadura -, ainda assim, havia um espaço de manobra muito maior para subverter esses espaços.

A grande mudança é esse paradoxal advento da sociedade da informação que converte o dado informacional na moeda de um futuro cada vez mais próximo enquanto a mídia tradicional assiste o próprio sucateamento econômico dos seus modelos - gerando esse caos que nos permite, por ora, ter espaços como estes.

Esse paradoxo de um mídia ao mesmo tempo em que se vê como um quarto poder também se vê às voltas com a ameaça de sua própria extinção levou a esse quadro da oposição de um setor econômico - a mídia corporativa - contra um partido político, o PT - e nesse sendo me ocorre aquela fala do Mauro Carrara: "O PT é um partido sem mídia. O PSDB é uma mídia com partido".

Isso mudou sobremaneira as relações nas redações. Os jornalistas que não se enquadraram tiveram de rodar porque aqui não estamos falando de forças político-partidárias movendo órgão de mídia, mas sim forças político-midiáticas movendo partidos. O jornalista é o soldado.

Creio que o movimento mais emblemático nesse sentido é o que houve na Folha depois da morte do moderado Otávio Frias, que se viu embarcando num projeto assustadoramente reacionário.

Dentre as baixas nas redaçoes, temos desde um Heródoto Barbeiro afastado de um Jornal da Cultura até, principalmente, um Luís Nassif varrido da Folha - note, Nassif nunca foi um homem de esquerda, mas curiosamente muitos dos seus ex-colegas, notadamente a LIBELU chic, toparam o serviço sujo e estão lá alegres e cantantes.

São tempos de trevas estes meu amigo, principalmente na São Paulo dos dias de hoje.

Unknown disse...

Iaiá,

Pois é, além de tudo o que concordamos, há o predomínio do individualismo em todas as áreas: o sindicalismo virou plataforma para políticos ambiciosos, o jornalista que consegue emprego renuncia a qualquer escrúpulo em nome da ascensão material, e por aí vai.

Mas o processo histórico avança, e à medida em que as pessoas forem se apercebendo dessa realidade há a esperança de que passem a lutar para modificá-la.

Um beijo,
Maurício.

Unknown disse...

Hugo,

Não conhecia essa frase do Mauro, mas ela é perfeita, assim como é plenamente possível analisar o que post fala através do seguinte parágrafo do seu comentário: "Os jornalistas que não se enquadraram tiveram de rodar porque aqui não estamos falando de forças político-partidárias movendo órgão de mídia, mas sim forças político-midiáticas movendo partidos. O jornalista é o soldado".

Em relação à imposição do diploma para jornalismo eu tenho uma visão diferente da sua: creio que, embora feito através de decreto e na ditadura, a exigência do "canudo" foi fruto de uma grande mobilização da classe, numa época em os sindicatos eram muito mais fortes do que hoje - inclusive capazes de promover greves que paralisavam redações. Não falo de ouvi-dizer: embora eu fosse uma criança à época da decretação do diploma, convivi, posteriormente, com o presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio à época dessa batalha - um sujeito de uma inteligência enciclopédica e de uma retidão ética a toda prova. Não tenho porque duvidar de sua palavra - mesmo porque há documentos que a corrobora. E, de qualquer forma, o interesse dos jornais, à época como hoje, era que não houvesse exigência legal nenhuma, para que empregassem quem bem quisessem pagando o mínimo possível.

Quanto a esse processo que você descreve, de expurgo até dos moderados como Nassif, assinalar uma fase negra do jornalismo paulista - e da política nacional, à qual está intrinsicamente ligado, estamos de pleno acordo.

Porém, posso estar sendo ingênuo ou demasiado otimista, mas começo a ver uma luz no fim do túnel...

Um abraço,
Maurício.

Raphael Neves disse...

Caro Maurício,

Há algum tempo você escreve (e muito bem) sobre a mídia. É evidente que o tema é muito relevante.

Eu estou de pleno acordo com você no que diz respeito à falta de responsabilidade dos que querem ver a grande mídia destruída. É preciso repensar a forma de se estruturar economicamente o jornalismo profissional. Bom, eu não tenho a menor ideia de como fazê-lo!

Ao mesmo tempo, acho que formas mais democráticas, disseminadas pela internet, ajudam a aprimorar o conteúdo. Acho que tanto o seu quanto o meu modo de ler notícia mudaram completamente. Hoje, por exemplo, com o Twitter temos uma espécie de filtro que é feito pelos próprios amigos ou por gente que tem o perfil de certo modo semelhante ao nosso. Assim, a "grande mídia" não tem como forjar fatos sem correr o risco de descrédito, de não ser "revalidado" por blogs etc.

Enfim, o tema dá pano para a manga. Valeu!

Abraço,
Rapha

Unknown disse...

Caro Rapahel,

Folgo em saber que há outros que não querem simplesmente destruir a mídia, pois às vezes tenho a impressão que saímos de um fundamentalismo para cair em outro.

E não se preocupe: ideia de como fazê-lo ninguém tem (rs.)!

Um abraço,
Maurício.