Intervenção é um programa de TV que acompanha o cotidiano de uma pessoa com algum vício em estágio destrutivo (seja em álcool, jogos, compras, atos bulímicos ou numa ampla variedade de drogas, legais ou não): historiciza seu vício, documenta suas crises agudas de abstinência, seus surtos e picos de “doideira”, bem como o sofrimento da família e de pessoas próximas. Ao final - após uma sessão catártica e lacrimosa em que familiares e amigos íntimos leem cartas declarando seu afeto e implorando para que o usuário aceite ajuda para se tratar – a produção oferece a possibilidade de o retratado passar por um programa de reabilitação gratuito, do qual poderá sair a qualquer hora ou ficar até ser considerado apto a se readaptar à sociedade sem recorrer aos antigos vícios.
Trata-se de um reality show – o único no gênero que realmente me agrada – exibido pelo canal a cabo A&E e rico em temas para análises em áreas tão diversas quanto Audiovisual, Comunicação, Medicina, Psicologia, Saúde, Segurança Pública, Serviço Social, entre outras. A abordagem da questão das drogas pelo programa dá-se estritamente pela via clínica – que é uma espécie de “outro lado da moeda” da abordagem policial, disseminada nos EUA e de lá exportada para boa parte do mundo, inclusive o Brasil, num processo típico de imperialismo cultural –prática que, segundo Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, “repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais”.
Mas o aspecto que eu gostaria de sublinhar, no âmbito deste post, advém de um momento recorrente em todos os programas da série: o da justificação do vício. Logo no início de cada episódio, após um breve resumo do que nos será mostrado a seguir, o personagem retratado se apresenta ao espectador, falando diretamente à câmera; é relatado o grau de seu vício e são entrevistadas pessoas próximas. Daí, invariavelmente, ocorre um flashback: o infeliz usuário de hoje - às vezes em estado de profunda decadência física e psicológica - é apresentado, em filmes caseiros ou em fotos, como uma criança – tímida ou hiperativa, doce ou arteira, mas, de qualquer modo, um pequeno ser feliz e inocente, em relação ao qual seus ora arrasados pais nutriam tantas esperanças. Trata-se, do ponto de vista da tipologia narrativa, de um momento que corrobora, no âmbito do reality show, a boutade da pesquisadora Linda Williams, segundo a qual todo filme norteamericano é melodramático.
De repente, sob uma indefectível e tensa trilha sonora, essa reminiscência lúdica é interrompida e dá-se o relato de um episódio traumático que teria sido o responsável pelo vício desenvolvido pelo adulto. Em raríssimas vezes trata-se de algo passível de ser realmente interpretado como um grande trauma pelas tradições sócio-culturais latinas ou européias – cujas visões realistas do constante vigor requerido para o embate pela vida advêm de séculos de guerras e fome. Mas, para os padrões da classe média suburbana americana – a retratada preferencial de Intervenção -, criada numa espécie de “zona artificialmente pacificada”, como diagnostica Camille Paglia , o que predomina no mais das vezes como o acontecimento traumático que o retratado teria sofrido é descrito nos termos nebulosos e imprecisos de “abuso na infância”. Aliás, é simplesmente inacreditável o número de crianças americanas que teriam sofrido abuso desde que essa categoria indefinida que precede mas não inclui o estupro – que é, evidentemente, considerado mais grave - passou a frequentar a fértil imaginação - e os códigos de regulação de conduta - estadounidense, país que também concentra o maior número de pessoas que se declaram abduzidas por ETs no mundo.
Mas o que interessa reter, por ora, nesse processo, é a necessidade da justificativa para o vício. É inconcebível, segundo o programa, que uma pessoa sem algum trauma profundo faça uso de drogas para fins recreativos – e que daí tenha evoluído para um quadro crônico de vício – ou que uma adolescente plenamente saudável tenha, numa sociedade tão consumista, se excedido nas compras com o cartão de crédito até que isso se tornou um sério problema, ou desenvolvido um distúrbio de alimentação a partir da cobrança social por uma forma física perfeita, sem que ela tenha sido abusada ou estuprada na adolescência (clique aqui para ver episódios e trechos de Intervenção disponíveis no youtube).
Trata-se de um exemplo didático do construcionismo social em voga nos EUA no último quarto de século. Há muito da “ideologia da vítima” – que vulgarizou os estudos sociais no país, notadamente os women studies – perpassando essa abordagem, mas, acima de tudo, há, sob o império do “científico” e do “clínico”, a crença na instalação de uma ordem racional – que reprime a animalidade, o instintivo e o desviante – através da normatização de todas as formas de relação inter-social, das que incluem intimidade - como o afetivo e o sexual - às que se dão em plena arena pública – como o verbal e o comportamental.
Chegamos, assim, à razão de ser deste post: é precisamente essa tendência à normatização geral da sociedade, com toda sua carga opressiva, que vem sendo assimilada, de forma cada vez mais intensa e menos crítica, pela sociedade brasileira. Não me refiro apenas às ações dos políticos conservadores brasileiros, iconizadas nas leis anti-fumo promulgadas por José Serra – de aparência protofascista, mas originadas exatamente desse cadinho de "cultura" -, mas, entre vários outros exemplos possíveis referentes ao espectro político que se lhes opõem, à aderência cada vez maior, em setores que se dizem de esquerda, à defesa de mecanismos de controle e repressão da expressão verbal, inclusive em sua forma mais espontânea e popular: o humor.
Trata-se do conservadorismo mais repressor travestido de progressista, de uma proteção que vitimiza e enfraquece àqueles que alega querer defender e de uma bomba-relógio armada contra a identidade e a peculiaridade da convivência democrática no Brasil, saudada por intelectuais e homens públicos do quilate de Stefan Zweig e de Darci Ribeiro como única no mundo. É, ainda, um caso exemplar de como “numerosos tópicos oriundos diretamente de confrontos intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades americanas impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro”, como identificam Boourdieu e Wacquant no imperdível texto “Sobre as artimanhas da razão imperialista” – que você pode ler, na íntegra, aqui. E, por fim, afigura-se como um atestado de óbito da esquerda, que alguns ingênuos e incautos, aparentemente bem-intencionados, teimam em assinar.
(Imagem de Caylee, que se tratou por vício em speedball (heroína + cocaína injetadas na veia), retirada daqui)
4 comentários:
UAU. Que senhor post. Cheguei aqui pelo blogroll do Bruno (miudorecruzado) e já estou lamentando não tê-lo feito antes. Seu texto deveria ser leitura obrigatória para quem trabalha com dependências de qualquer tipo. Trabalhei um bocado com dependência química há alguns anos (sou psicóloga), e devo confessar que não são apenas os produtores de um reality show em busca de audiência as vítimas (opa!) de uma concepção etiológica mecanicista, falsamente psicanalítica, segundo a qual tudo que vai mal na vida de uma pessoa tem origem num trauma da infância. Como é difícil escapar dos clichês - obrigada por oferecer uma rota de fuga! :-) Um abraço - certamente voltarei aqui mais vezes.
Camilla,
Fico muito feliz que você, com uma formação qualificada na área, tenha gostado do post em que, desavergonhadamente, me aventura pelo psicologia...
Sou absolutamente fascinado por essa questão da dependência química e dos programas de rehab - e, ao mesmo tempo, muito assustado por certas tendências da sociedade norteamericana que a brasileira insiste em copiar.
Bem-vinda e volte sempre.
Um abraço,
Maurício.
Maurício,
Você já escreveu coisas muito boas por aqui, mas achei esse o teu melhor post, cara. Você fez uma panorâmica maravilhosa passando pela psicologia, ciência política, sociologia e direito que deu gosto ler - num país onde a intelectualidade não consegue relacionar a tampa com a panela, ver uma pessoa tecendo e atando uma teia intrincada quanto essa com tamanha qualidade é digno de nota.
No que concerne especificamente à Lei anti-fumo do Serra, eu, que nunca fumei em toda minha vida, me senti profundamente oprimido. É uma coisa horrível. A lei já previa lugares onde era permitido fumar, não era necessário modifica-la, ainda mais com uma norma que escapa sim à própria constituição e que tem conotação neofascistas.
Ora essa, se alguém se importasse honestamente com a qualidade do ar no DEM/PSDB, eles investiriam em transporte público - o que não obstante não acontece como eles caminham em direção oposta em São Paulo, como a proibição dos fretados sugere.
É um enxerto lamentável e autoritário que advém do direito positivo estrangeiro e foi inserida em nosso ordenamento à despeito dos direitos e garantias individuais só para fazer São Paulo parecer desenvolvido - o que na cabeça da elite brasileira, em especial da elite paulistana, implica na cópia descarada e não raro desncessária do que se faz nos países ricos.
abraços
Obrigado, Hugo,
Fiquei muito lisonjeado com seus elogios exagerados!
Quanto Quanto à lei anti-fumo, vou lhe dizer uma coisa: é um absurdo, um autoritarismo, uma medida que eu espero seja declarada inconstitucional e tal. Mas a mim, que não sou fumante, o que mais espanta é a incapacidade das pessoas de reagir, isso eu acho inacreditável. Aliás, boa ideia, vou escrever sobre isso.
Um abraço,
Maurício.
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