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segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Por um novo jornalismo

O grande jornalista que é Leandro Fortes, afirma, em Manifesto Jornalístico publicado em seu blog, que os próprios profissionais do ofício submetem-se intencionalmente a práticas auto-determinadas por um ambiente no qual “Vive-se a primazia da má fé e louva-se a inversão dos valores como condição primordial à sobrevivência dentro do mercado”.

A ênfase mais polêmica do manifesto vem da afirmação que “A canalha é de jornalistas, não de patrões, é preciso que se diga”. Não pretendo discutir aqui a questionável assertiva – a qual ou entendi mal ou tenderia a discordar, no que tange aos patrões -, mas sua citação neste espaço é mais um motivo para você, leitor(a), ir lá conferir o vigor instigante do texto de Leandro.

O que me interessa reter, por ora, é essa situação vivenciada pelo jornalista, de renúncia a constrangimentos éticos em nome da sobrevivência no mercado (sobrevivência que, como Leandro aponta, poderia se dar de outra forma); de inversão dos fatos e insistência no falso em nome da primazia da má-fé; de um estado de coisas tal que um jornalista justamente consagrado não se furta a chamar de “canalha” seus colegas de profissão – e, o que é pior, estes não se avexam em retrucar, pois falta-lhes moral e brio para tanto.

Acostumamo-nos a isso, de uma forma tal que um dos esportes mais praticados na internet brasileira é a crítica à imprensa, merecedora até mesmo de uma sigla tão mordaz quanto generalizante utilizada de forma ampla para caracterizá-la: PIG (Partido da Imprensa Golpista), criada por Paulo Henrique Amorim, jornalista consagrado que aderiu ao novo esporte sem abrir mão de uma atuação mainstream numa TV sustentada pelo neopentecostalismo, em que repete várias das vicissitudes criticadas nas arenas virtuais – inclusive na sua.

Também não é sem mordacidade que constato que sem a “grande mídia” a blogosfera perderia grande parte de seus temas – e de sua graça. Trata-se, é evidente, de um paradoxo – e de uma realidade que muitos blogueiros insistem em fingir não ver. A crítica à mídia é não apenas bem-vinda mas, neste momento mais do que nunca, necessária. Só que isso tem levado a um sentimento anti-mídia generalizado que gera distorções e equívocos históricos que se perpetuam.

Por exemplo: ao contrário do que muitos críticos virtuais insistem em afirmar de forma um tanto inconsequente – pois sem conhecimento de causa – a “grande imprensa” nem sempre foi assim. O modus operandi da plutocracia midiática e suas meia dúzia de famiglias, é verdade, pouco mudou através dos tempos, mas o jornalista - este ente profissional hoje exterminado no Brasil por uma decisão infeliz da pior Alta Corte de nossa história – foi, ao menos até o fim dos anos 80, um dos principais agentes de resistência político-ideológica, no mais das vezes identificado com a necessidade de redemocratização do país, com as lutas sociais e como questionamento da aliança entre elite econômica e poder político.

Um dos motivos para tal é que um número considerável de jornalistas provinha da intelectualidade (a maioria deles comunistas, partido então com forte presença nas hostes culturais) em busca de sustento material, repaginados para consumo diário, como sugere o sociólogo Sergio Miceli em seu imprescindível estudo sobre os intelectuais no Brasil na primeira metade do século XX.

O jornalista constituia-se, então - e por um longo tempo -, em um ente identificado com a esquerda a um ponto tal que um venerando analista de nossa imprensa predisse que quando Lula subisse ao poder os barões da imprensa não conseguiriam produzir um retrato condizente de sua administração, tamanha a resistência, manipulação e boicotes que os jornalistas imporiam como forma de defender Lula. Ledo engano.

Se bem que, na verdade, a premissa inicial contida na profecia de tal oráculo se confirmou, já que poucas - ou nenhuma - presidências foram enfocadas de forma tão distorcida como a de Lula. Só que essa distorção não foi pró-Lula e levada a cabo pela esquerda, mas contra o presidente duas vezes eleito e à direita. Além das explicações contemporâneas para tal processo, há fatores mais profundos que tem raizes históricas. Poucos setores foram tão afetados pela que a Queda do Muro de Berlim representou – e pelo quadro materialista-ideológico que a sucedeu - quanto o jornalismo nativo, e por razões as mais diversas:

- A perda definitiva da hegemonia no PCB na seara cultural;

- O trauma na esquerda, seguido do vazio pela perda de horizontes político-revolucionários (simbolizados no “fim da história” de Fukuyama);

- O processo de desideologização social (lembrem-se de Cazuza berrando que queria uma ideologia pra viver) e a cultura materialista extrema imposta pelo yuppismo dos anos 90;

- A explosão, via disseminação do ensino superior, de mão-de-obra barata, concomitante ao empobrecimento intelectual da imprensa;

- O barateamento do acesso à informação e a simplificação - ou extinção - de procedimentos diversos ligados à produção industrial da notícia, que o advento da era da telecomunicação digital trouxe em seu bojo.


Esses fatores, somados e açulados pelos processos globalizantes de padronização vertical e horizontal dos meios jornalísticos e de concentração de capital via megafusões, geraram o jornalista que ora conhecemos, esse ser híbrido e um tanto esquizofrênico: por um lado, em maioria, um pobre-diabo mal ajambrado, quase sempre sub ou desempregado, ávido por qualquer frila, brandindo quixotescamente a bandeira de seu talento e de sua ética inflexível; por outro, uma espécie de oráculo dos deuses, em seus ternos e tailleurs bem cortados, subservientes ao mercado e às forças políticas mais retrógradas em troca do vil metal, que aliena e mantém sua suposta condição de “formador de opinião”. É precisamente na travessia da ponte profissional entre esses dois estereótipos carregados que ele se transforma na “canalha” a que alude Leandro Fortes.


Talvez, ao invés de erguer como bandeira a destruição da mídia, como tantos o fazem, seja a hora de sairmos dessa falsa dicotomia representada por esses dois estereótipos propositadamente exagerados, aproveitando o potencial e talento jornalístico abundante fora das grandes redações – é este o subtexto do manifesto de Leandro.


De minha parte, não estou entre os que querem ver a “grande mídia’ destruída – aliás, acho essa posição de uma irresponsabilidade sem tamanho. Não apenas por uma questão de securidade sócio-econômica que diz respeito a todo um setor empregatício, nem porque a blogosfera independente está ainda longe de se estruturar em bases profissionais que permitam a produção da notícia em bases industriais. Mas porque acredito na viabilidade de uma alternativa intermediária, que reúna, em bases profissionais, o melhor do pensamento crítico da blogosfera aos meios de produção industrial da notícia.


E é também precisamente aí que o Manifesto de Leandro é alçado à sua dimensão maior, na proposição de um novo jornalismo, profissional, remunerado, mas honesto, encerrado na predição de que “É possível ser jornalista e trabalhar em qualquer lugar sem se submeter ao mau-caratismo. Arriscado, mas possível”.



(Imagem retirada daqui)

sábado, 29 de agosto de 2009

Tweets Secretos da República II

Em mais um hercúleo esforço investigativo, desta vez utilizando-se até de secretárias que não usam agenda e de grampos instalados em xales, o Cinema e Outras Artes – um blog a serviço do Brasil (ih, ih, ih!) – traz a público a segunda leva dos explosivos....



TWEETS SECRETOS DA REPÚBLICA


De @um.certo.ex.presidente para @Droga-Higienopolis

Mande umas duas caixas de Lexotan, mais Valium, Lorax e Rivotril. O sr. teria algo pra dor de cotovelo? Uma pergunta delicada: inveja mata?


De @criançada.do.Congresso para @Marina.S

Nós do PSOL a apoiaremos se concordar com algumas propostas simples e realistas: nacionalizar os bancos e acabar c/ o capitalismo. Que tal?


De @Caspari para @villa.revisionista

Nosso Guia hipnotiza andar d baixo c/ bolsa-esmola, pago pela Viúva. Gato por lebre. C/ Geisel era pau na patuléia e $ pra elite. Bons tempos


De @vergilho para @agência.de.lula-livre.mambembe

Currículo em anexo. Exp. lutador de jiu-jitsu. Como político, fracasso total: trocado por Sarney e sem eleitores no AM. Responder c/ urgência


De @catao.simon para @a.vergilho

Tu poderias me dar umas aulas de jiu-jitsu? É q ameacei o Lula pra conquistar Ieda e daí tchê tô receoso de encontrar o vivente cara a cara.


De @george.impontual para @quem.segue.1.babaca.desses

Se receber email escrito "Dilma pelada" não abra: pode ter fotos dela nua. Agora, se for do Serra, aquele gatinho sarado, não deixe de abrir!


De @cantanheda para @publicitários.tucanos

Febre amarela ñ colou, crise aérea ñ decolou, Sarney ter perdido pra juíza preta pegou mal. Gente, q + se pode inventar pra derrubar Lula?


De @Lula para @Uribe.pau.mandado.dos.EUA

Mi caro, yo no soy bobo. Ya saqué que la base dos homi aí é pq tão de ojo no pré-Sal. Tome tento. Asi hablaré c/ Putin y c/ el maluco del Irã


De @mercadado para @quem.ainda.leva.mercadado.a.serio

Dúvidas em caráter irrevogável: tirar ou n o bigodon? Sair do PT? Deixar ou não a liderança? Candidatar-me em São Paulo? Dar ou não dar a b..


De @psiquiatra.do.suplicio para @assessoria.do.suplicio

Urgente: receita trocada. Risco d ação retardada, personificação d figuras de autoridade, fixação pelo vermelho e perda d senso do ridículo.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Sexismo e eleições

Quem acompanha o blog há tempos sabe que eu, embora apoie o núcleo duro das lutas feministas – e atue na prática na defesa de suas demandas -, tenho uma visão extremamente crítica do feminismo xiita norte-americano, anti-sexo e anti-homem, cada vez mais presente entre nós com sua obsessão pela linguagem e por códigos reguladores de expressão e de conduta e com sua crença no construcionismo social como forma de reprimir o pulsar da natureza. Vi de perto o resultado social disso e não gostei nem um pouquinho.

Mais: tenho a absoluta convicção de que as mulheres brasileiras, com sua sexualidade aberta e pró-ativa, tem muito a ensinar às propagadoras desse feminismo assexuado e baseado na vitimologia, que vira e mexe ameaça - como agora - virar moda nos círculos acadêmicos, intelectuais ou de vanguarda – que vêm a ser justamente os mais colonizados da vida cultural brasileira. Parafraseando um texto feminista recente, traduzido de forma coletiva ao português, mulheres e homens não são o problema; são a solução.

Isso posto, afigura-se assustador o grau de sexismo e de chauvinismo que ronda a próxima disputa eleitoral – em que três candidaturas à Presidência situadas, em gradações variadas, à esquerda do espectro político, podem vir a ser representadas por mulheres: Heloísa Helena (PSOL-AL), Marina Silva (provavelmente PV-AC) e Dilma Rousseff (PT-RS).

Com mais de um ano de campanha pela frente, três episódios recentes justificam tais temores – sobretudo por não serem desferidos pelas forças mais conservadoras da sociedade, mas por comentadores culturais mais ou menos liberais.


Machismo proustiano

O primeiro foi o post de Marcelo Coelho intitulado “Lina Vieira, Dilma Rousseff” no qual a análise sobre o caso envolvendo as duas mulheres limita-se a um contraste sexista entre a “feminilidade de Lina Vieira e a dureza de Dilma”. Num episódio que se tipificou, na “grande imprensa”, pela inversão do princípio consagrado do Direito segundo o qual o ônus da prova cabe ao acusador, Coelho promove outra inversão: entre acusadora e acusada. Assim, acrescenta miopia política e abordagem tendenciosa a um sexismo a la anos 50: Lina, após ter sido, segundo ele, “massacrada no Senado por Romero Jucá, líder da base governista”, “Tornou-se frágil, delicada, do jeito que todo homem espera de uma mulher. Triste e bonito destino”. Sem comentários.

Já contra Dilma, Coelho brada as acusações de sempre: autoritarismo, “ausência de charme”, falta de feminilidade. Quanto a Marina Silva, Heloísa Helena e Marta Suplicy (?), ele pergunta, em tom de acusação: que mulheres são essas?

Sob o pretexto de responder à pergunta-acusação, elenca preconceitos em série: Heloísa Helena, embora “pudesse ser atraente”, “Representa, na verdade, a mesma dureza que Dilma encarna, numa versão mais burguesa. Por que, indago, não ser simplesmente uma mulher?”. É mais uma das muitas platitudes chauvinistas de um texto recheado de pérolas do tipo “O grande problema de uma mulher combativa é o de não parecer histérica” e no qual a inclusão inexplicada de Marta Suplicy – sobretudo se analisada face à exclusão de qualquer outra política da direita nacional, como Yeda Crusius, Roseana Sarney, Rosinha Garotinho ou Kátia Abreu – é significativa das antipatias político-ideológicas do colunista, que ao sexismo vêm se somar.

A grosseria maior de Coelho é direcionada a Marina Silva, que segundo ele não tem nenhum charme e contra a qual, como um machão de pornochanchada dos anos 70, comete a agressão suprema de afirmar que ela “Não é desejável sexualmente”. Educação refinada a do rapaz. Como apontou Marjorie Rodrigues em algum lugar que infelizmente não retive qual, ninguém pensaria em analisar a masculinidade de José Serra.

Embora Coelho tenha tido, ao menos, a decência de, com rapidez e de forma clara, sem subterfúgios, reconhecer que errou e pedir desculpas – procedimento raríssimo nas cercanias da alameda Barão de Limeira - , fica a pergunta: que ódios tamanhos teriam levado um crítico cultural de auto-proclamados laivos proustianos, da melhor estirpe uspiana (ex-aluno de Maria Victoria Benevides, como apontou @Maria_Fro), que sempre se caracterizou por análises equilibradas e detalhadas, a descer tão baixo?


Liberais chauvinistas

O segundo episódio deplorável foi um tweet enviado, na segunda-feira, 24/08, às 23:09h, pelo jornalista Jorge Pontual: “Se você receber um email intitulado: "Fotos nuas de Dilma Roussef". Não abra!!! Pode realmente conter fotos de Dilma Roussef nua”.

Fiquei chocado. A imagem vendida pelo correspondente da Globo em Nova Iorque busca associá-lo à urbanidade e ao liberalismo, não a uma piada tão infame e sexista. Mas fui checar e, ao que tudo indica, não se trata de um perfil falso. Assim, por mais que o Twitter ultrapasse o âmbito da representação “institucional’ e ceda espaço à expressão do universo pessoal, uma declaração dessas atinge, a um tempo, o ser humano e o jornalista enquanto profissional – pondo em questão tanto sua imparcialidade para lidar, de agora em diante, com tudo que se refira à candidata em questão, quanto, de forma mais ampla, seu sistema de valores enquanto mediador de sentidos (inclusive morais) para milhões de telespectadores.

O terceiro e último episódio chegou a mim também via Twitter: a inacreditável coluna de Ruth de Aquino em Época intitulada “Abaixa esses dedos em riste, Dilma”. Sim, leitor(a), o tom imperativo é um indicativo da truculência verbal que está por vir - truculência esta que Aquino acusa em Dilma Rousseff, como parte dos esforços para “colar”, pela enésima vez, o rótulo de autoritária na pré-candidata do PT. Dessa vez, até um “expert” é chamado para dar bases pseudo-científicas à operação.


O machismo feminino

A coluna, de forma geral, é de uma baixeza e de um ódio figadal que a tentativa de afetar imparcialidade soa não apenas canhestra, mas má-intencionada à canalhice (desculpe, leitor(a), é a primeira vez que emprego tal substantivo adjetivado em um texto analítico, mas não há outra classificação cabível). Distorce os dados relativos às pesquisas de intenção de votos em Dilma, pintando, a partir dessa leitura distorcida, um quadro político-eleitoral inverossímil, baseado sempre no ouvi-dizer, sem citar uma fonte passível de checagem; acusa, por vias transversas, Dilma de mentirosa por, entre outras coisas, ela ter negado o encontro com Lina (como se esta tivesse produzido uma prova sequer de que ele de fato ocorrera); e, por fim, apresenta até “informações” equivocadas (como a que a ministra não teria concluído o mestrado, quando na verdade o fez; o que ela não concluiu foi o doutorado).

Mas o pior é a crítica sexista que domina o artigo, perpetuada através do contraste da figura de Dilma com uma imagem idealizada do feminino como docilidade e “bons modos” - como se estivéssemos na Inglaterra vitoriana. Para tanto, Aquino utiliza-se de uma série de fotos que captam flagrantes ocasionais de Dilma apresentando-se em público, descontextualizando-as e imbuindo-as de uma significação pré-definida de um modo tão tosco que uma criança que nunca ouviu falar em Análise do Discurso desconstruiria tal leitura em poucos segundos. Para tentar reforçar a pífia argumentação, A colunista chama um “psicanalista”, o dr. Daudt.

Daudt, como me lembrou @bruno_pinheiro, é aquele mesmo que, no dia posterior ao acidente com o avião da Tam em Congonhas declarou à Folha de S. Paulo que “"Gostaria imensamente de ter minha dor amenizada por uma manchete que estampasse, em letras garrafais, “GOVERNO ASSASSINA MAIS DE 200”. Ou seja, demonstra não ter nem equilíbrio emocional para exercer a psicoanálise nem isenção política para opinar no caso, como se vê (e as investigações sobre o acidente comprovam, desmentindo-o). Trata-se de mais um desses pseudo-experts sempre à disposição da mídia para referendar seus ataques políticos de baixo nível – na linhagem de Marco Antonio Villa e Demétrio Magnolli, mas de nível intelectual ainda mais baixo do que o desses dois.

Trechos da entrevista falam por si:

“Dilma fez plástica porque a cara que ela tinha antes da plástica era assustadora, era a cara de uma pessoa agressiva, autoritária, impositiva, de dar medo”.

Pergunta: “O que representa esse dedo erguido, a mão crispada?”

Resposta: “Há vários tipos de dedo em riste (...) O dedo cujas costas da mão estão viradas para o interlocutor, enquanto os outros estão fechados, é um gesto stalinista, reflete o desejo de impor uma opinião (...) O dedo erguido é quase um lembrete: olhe, a anágua está aparecendo.”


Armadilhas de gênero

Como essa “taxonomia do dedo”, exata em sua cientificidade e fina em sua expressão, demonstra com brilho, o artigo de Aquino é um lixo. Serve, porém, como um alerta para as armadilhas das questões de gênero - ao mesmo tempo em que reforça o equívoco do feminismo anti-homem made in USA – com o ataque mais pesado à Dilma vindo das penas de outra mulher, uma semana após uma coluna extremamente agressiva à candidata ter sido escrita por Danuza Leão.

Confesso que após ler o texto da colunista da Época fui acometido de uma tristeza profunda. Por um lado, por constatar, uma vez mais, que à tal dieta “cultural” é submetida uma legião de leitores – no caso de Aquino, de leitoras, sobretudo –, inocentes do lixo que se lhes é oferecido e crentes que aquilo é bom jornalismo.

Por outro lado, por dar-me conta de que conheço muita, mas muita gente boa, que não só escreve pra caramba como tem um senso ético apurado que os credencia a exercer um jornalismo incomparavelmente superior ao colunismo de baixo nível de Aquino - porém que simplesmente não encontram emprego.

Ao final, ao realizar uma última checagem para concluir este post, deparei-me com uma constatação que me desolou ainda mais e que se relaciona à razão de ser destes escritos: a de que a responsável pelo tal texto ética e jornalisticamente de quinta categoria é nada menos do que diretora da revista Época no Rio. Numa triste ironia, trata-se de uma mulher que se alçou a uma alta posição ocupada majoritariamente por homens – realizando, assim, um dos objetivos básicos do feminismo de resultados -, mas que se utiliza de sua posição para desferir ataques sexistas à candidata presidencial com mais chances, na história do Brasil, de ser a primeira mulher a assumir a Presidência. Lamentável.


P.S. Cerca de uma hora após publicar este post fiquei sabendo que Flávia Cera também escrevera sobre o tema - um ótimo texto publicado em um blog novo, criado em reação à atmosfera descrita acima e que, como seu nome indica, dedica-se a analisar justamente o Sexismo na Política.


(Imagem retirada daqui)

domingo, 23 de agosto de 2009

O que há com São Paulo?

Nasci em São Paulo, aqui morei até o final da adolescência. Voltei a morar provisoriamente por períodos mais ou menos curtos (como este agora, em vias de se encerrar) entre o fim de um ciclo de trabalho e o início de outro, nessa carreira instável de cineasta e jornalista que escolhi e que, a despeito de suas dificuldades, amo. Volto à cidade algumas vezes ao ano para visitar meus pais.

Quando li sobre a lei que instaurou o projeto “Cidade Limpa”, proibindo outdoors e determinando uma padronização nas fachadas das casas comerciais, sob a ameaça de pesadas multas para quem não a cumprisse, morava em outro país, e dei risada. “Jamais uma lei dessas vai ‘pegar’ numa cidade enorme e caótica como São Paulo. Se a prefeitura forçar a barra, a reação vai ser incontrolável”, vaticinei. Como se vê, eu estava redondamente enganado. Desde então, a passividade bovina do povo paulista contra atos inaceitáveis das administrações municipais e estadual do conluio DEM/PSDB não cansa de me impressionar (leia aqui a opinião do blogueiro Paulo D'Aria sobre algumas leis coercitivas aceitas bovinamente pelos paulistas).

O caso dos pedágios é particularmente ilustrativo do quanto há de elitismo nessa passividade. Embora todos reclamem contra a quantidade e o alto preço dos pedágios, tal sentimento é com frequência compensado por um misto de orgulho e de consolo expressados na exaltação à qualidade das rodovias paulistas.

Difícil observar exemplo maior de egoísmo, elitismo e ausência de noção dos deveres do estado – não é à tôa, com efeito, que São Paulo é governado há 18 anos – desde Luís Antônio “Massacre do Carandiru” Fleury - por políticos conservadores, e há 8 por defensores radicais da privatização, que multiplicaram exponencialmente a quantidade de cabines e o valor cobrado para viajar pelas estradas estaduais:

- “Eu tenho dinheiro, pago e viajo nas melhores estradas do país; quem não pode pagar que se dane” – este parece ser o lema do paulista médio, não coincidentemente o mesmo que, como demonstram as pesquisas, é o mais crítico do país aos R$60 por mês que o governo federal destina aos miseráveis através do programa social que a direita chama de “Bolsa-esmola”. Caso típico de minoria que se acha maioria.

O pior é que esse raciocínio do “posso-pago-viajo nas melhores estradas do país” começa a ficar anacrônico, e o habitante do estado sequer se dá conta disso (Caetano Veloso, num de seus cada vez mais raros bons momentos, definiu os paulistas como “um misto de operosidade e ingenuidade”). Primeiro, porque o atual governo é tão avaro em gastos (e tão ávido em fazer caixa eleitoral) que deixou de fiscalizar o serviço das concessionárias das rodovias a contento, e o nível deste piorou, com trechos esburacados, adiamento de obras previamente agendadas e maior tempo de espera por socorro mecãnico. Segundo, porque algumas das estradas que estão sendo construídas pelo PAC federal começam a provar – e devem fazê-lo em grande escala - que é possível oferecer estradas de alto nível sem esfolar o motorista que nelas trafega - e sem destinar o butim à iniciativa privada.

Esse processo é ilustrativo do quadro de decadência geral que a outrora chamada “locomotiva da nação” apresenta em relação ao resto do país – e isso a despeito de ter sido largamente priorizada, em áreas diversas, não só durante a ditadura mas em todos os governos que a seguiram, com a exceção do atual. O estado lidera e continuará liderando em muitos setores, mas é visível a diminuição de distância e de padrões dos demais estados em relação a São Paulo. O fato de a feia capital ser literalmente intransitável completa a sensação de estagnação e decadência.

Paralelamente a esse processo, o conservadorismo parece ganhar cada vez mais corpo no estado. A classe média paulista, leitora da Veja, da Folha ou do Estadão tornou-se uma caricatura do conservadorismo – que o talento único de Luís Fernando Veríssimo eternizou na personagem da Velhinha de Taubaté. Insensibilidade social é o que não lhe falta: apoiou em peso a "lei Cidade Limpa", porque, supostamente, "a cidade fica mais bonita", sem dar a mínima para os milhares de empregos que subtraiu dos publicitários, dos pobres coitados que correm risco de vida colando outdoors, dos cartazistas e confeccionadores de faixas.

Essa pseudo-elite erigiu-se, assim, no maior bastião de resistência contra governos progressistas e demandas como a reforma agrária ou a democratização das comunicações, além de ter-se tornado repositório dos piores preconceitos de classe e das mais renitentes discriminações raciais - que quem convive com a classe média paulista sabe que formam a base de seu cardápio humorístico. Não é com satisfação nem com o desejo de atiçar rivalidades regionais - as quais detesto - que faço tal constatação, mas com pesar. Hugo Albuquerque, n'O Descurvo, oferece hipóteses político-sociais acerca de tal estado de coisas.

Há, é verdade, uma outra São Paulo, alternativa, underground, periférica, que é vibrante e ocupa a linha de frente dos movimentos sociais e culturais. Mas ela é tão escondida pela geografia centrípeta da cidade e, também por razões materiais, sua voz é tão abafada, que às vezes passa despercebida, sufocada em meio a tanto conservadorismo. Mesmo porque, como a pancadaria na USP evidencia, até o movimento estudantil é tratado a bomba e cassetete em Sâo Paulo, sob o silêncio cúmplice da maioria. Há momentos em que o humor afigura-se como única saída e forma catártica de resistência.

A “cereja do bolo” desse processo de aceitação bovina de decisões governamentais insensatas vem, é claro, da não-reação efetiva à lei anti-fumo promulgada por José Serra. Não vou gastar nem a paciência do(a) leitor(a) nem a suave ponta dos meus dedos teclando a respeito dessa autêntica ode ao protofascismo paulista – mesmo porque muita gente boa já escreveu sobre isso, como o João Villaverde e O Anaconda. O que interessa, no âmbito deste post, é ressaltar a subserviência dos que se submetem à lei como bezerros no matadouro: um mugido ou outro à guisa de protesto, enquanto seguem rumo ao abate que os anula como ente e como ser político.


(Imagem retirada daqui)

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Os Tweets Secretos da República

Num grande esforço de reportagem, e apelando a escutas, grampos e demais métodos diletos das grandes revistas brasileiras, trazemos aos leitores do blog, em primeira mão:

OS TWEETS SECRETOS da REPÚBLICA:

De @sir.ney para @PIG:
Caros amigos da imprensa, sou duro na queda. Vingança, diz o senso popular, é prato que se come frio. Perguntem a Jackson. Abraços fraternos

De@Lula para @sir.ney
Meu caro, nunca antes neste país a mídia encheu tanto o saco. O PT só faz gol contra. Tive q sair no pau pra vc ficar. Assim, só tomano uma.

De @tavinho para @OBAN
Precisamos de algo mais pesado. Ficha policial falsa não surtiu efeito. Lembrem a dívida conosco por conta do empréstimo das peruas. Anauê.

De@gabeiraba para @otarios
Acho q vou pegar em armas ou fumar um ou vestir sunguinha; entrar pro PT ou pro PV? Já sei: virar neoudenista, pró-PSDB e ser capa da Veja!

De @Paulo__Francis para @pessoal.da.óia
Waaal, esses meninos bem que tentam me imitar, mas falta estofo. Terceiro time. Assim, o barbudo e a Petrossauro nos levam ao séc. XIX. Pfui

De @zexirico para @boca.de.suvaco
Tudo certo, Fernando. Marina caiu como patinho. Ciro vai no mesmo caminho. É só manter contentes nossos amigos na mídia que vêm aí mais escândalos.

De @Suplicio para @alx.garcia
Eu apoio o PT, mas voto c/ o DEM. Eu apoio o PT, mas PSDB tem razão. Eu apoio o PT, mas Sarney deve sair. The answer is blowin’ in the wind

De @danussa para @empregada.da.danussa
Traz papel. Não é esse, sua burra, é o do saquinho. Agora vai fazer jantar, imbecil, tenho q escrever 1 coluna sobre Dilma, aquela grossa.

De @a.kamelo para @d.magnolio
Falei praquele crioulo metido q no Brasil não tem racismo, mas o burro do preto não concorda. Mandei embora: comigo, só preto de alma branca

De @povo.de.sp para @casab.y.cerra
Bate + q eu gosto, maltrata. Faz como fez na USP. Aumenta mais o pedágio. Proíbe não só de fumar, mas de beber e até de respirar. Delícia!!!


(Imagem retirada daqui)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Brasil, país da alegria

Pode-se acusar o Brasil de muitas coisas, menos de não ser um país engraçado. Neste exato momento, por exemplo, vivemos uma situação curiosíssima: a candidata da auto-denominada “esquerda” à Presidência, Marina Silva, deve lançar-se pelo Partido Verde (a cor, caro leitor, não se refere à imaturidade política do mesmo, mas sim à alegada priorização da ecologia), agremiação política comandada pelo notável defensor da natureza que é Zequinha Sarney (MA).

Zequinha, como o nome indica, vem a ser filho do cordial coronel José Sarney (PMDB-AP), até há pouco o homem forte do governo no Senado, o qual preside, e atual recordista de resistência individual no jogo de derruba-governo praticado pela oposição e pela mídia (que, em mais uma das peculiaridades dessa terra fascinante, vêm a ser a mesma coisa).

Não para por aí: o PV tem como estrela eleitoral Fernado Gabeira (RJ), aquele sujeito que muda de ideia como troca de sunga, que já foi guerrilheiro, depois virou ambientalista e defensor das minorias sexuais e canabisais, dai tornou-se deputado petista, depois mudou radicalmente de opinião uma vez mais e aderiu ao neoudenismo, tornando-se queridinho da mídia nacional, candidato da direita tucana no Rio de Janeiro e, completando esse triste quadro de decadência, colunista da Folha de S. Paulo. Pessoa muito coerente, como se vê. Pois Gabeira, sabe-se lá com que interesses (mas com conhecimento de caso), já declarou que Marina será “linha-auxiliar” do PSDB.

O prezado leitor está confuso? Eu também. Então vamos resumir a ópera-bufa: a candidata da “esquerda” será lançada pelo partido do filho do líder governista no Senado, partido este que é ligado à direita, capisce?

Não que essa transfiguração da esquerda em direita constitua novidade, longe disso. O PSOL, que pode vir a ceder sua “estrela” Heloísa Helena (AL) como candidata à vice de Marina, segue quase sempre os votos do PSDB e do restante da direita nas casas legislativas, a um ponto tal que certas línguas ferinas (no caso, a minha) deram pra sugerir que a sigla significa Partido de Suporte à Oligarquia.

A divisão da esquerda pela direita, para que esta ganhe eleições, também é historicamente recorrente. A única exceção à regra são os dois pleitos vencidos por Lula (João Goulart, numa piada institucional hilária, fora eleito para vice de um presidente contra o qual seu partido concorrera).

Mas o próprio Lula protagonizaria a mais nociva das divisões da esquerda em prol da direita, ao disputar com Brizola, em 1989, quem iria ao segundo turno com Collor. Segundo as pesquisas, Brizola, vencendo o primeiro turno, derrotaria Collor. Ao invés de um acordo que lhes garantiria vitória certa no primeiro turno, os dois oposicionistas preferiram o confronto entre si. E assim o país, numa piada de humor negro, perdeu a oportunidade de, após 25 anos de ditadura militar, eleger um candidato de esquerda, que significasse o repúdio de facto e de direito ao período autoritário.

Mas por que mesmo devaneio por esse triste passado se o assunto do post é o humor que perpassa a política brasileira, atualmente encarnado pela candidatura de Marina Silva, saudada, com isenção de interesses, por todas as nossas revistas semanais? Perdão, caro leitor, não há relação alguma de uma coisa com a outra, ne-nhu-ma.

O Brasil, como eu escrevi lá no início, é um país engraçado. Só não estou certo se poderemos continuar dando risada se a irresponsabilidade dessas “esquerdas” que não se avexam de servir sempre à pior direita acabar por entregar de novo o poder ao privatismo anti-Brasil e anti-povo do conluio PSDB/DEM. Pois se a combinação de ingenuidade e leviandade política prosseguir, eles podem vir a rir por último.


(Imagem retirada daqui)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Drogas, imperialismo e falso esquerdismo


Intervenção
é um programa de TV que acompanha o cotidiano de uma pessoa com algum vício em estágio destrutivo (seja em álcool, jogos, compras, atos bulímicos ou numa ampla variedade de drogas, legais ou não): historiciza seu vício, documenta suas crises agudas de abstinência, seus surtos e picos de “doideira”, bem como o sofrimento da família e de pessoas próximas. Ao final - após uma sessão catártica e lacrimosa em que familiares e amigos íntimos leem cartas declarando seu afeto e implorando para que o usuário aceite ajuda para se tratar – a produção oferece a possibilidade de o retratado passar por um programa de reabilitação gratuito, do qual poderá sair a qualquer hora ou ficar até ser considerado apto a se readaptar à sociedade sem recorrer aos antigos vícios.

Trata-se de um reality show – o único no gênero que realmente me agrada – exibido pelo canal a cabo A&E e rico em temas para análises em áreas tão diversas quanto Audiovisual, Comunicação, Medicina, Psicologia, Saúde, Segurança Pública, Serviço Social, entre outras. A abordagem da questão das drogas pelo programa dá-se estritamente pela via clínica – que é uma espécie de “outro lado da moeda” da abordagem policial, disseminada nos EUA e de lá exportada para boa parte do mundo, inclusive o Brasil, num processo típico de imperialismo cultural –prática que, segundo Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, “repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais”.

Mas o aspecto que eu gostaria de sublinhar, no âmbito deste post, advém de um momento recorrente em todos os programas da série: o da justificação do vício. Logo no início de cada episódio, após um breve resumo do que nos será mostrado a seguir, o personagem retratado se apresenta ao espectador, falando diretamente à câmera; é relatado o grau de seu vício e são entrevistadas pessoas próximas. Daí, invariavelmente, ocorre um flashback: o infeliz usuário de hoje - às vezes em estado de profunda decadência física e psicológica - é apresentado, em filmes caseiros ou em fotos, como uma criança – tímida ou hiperativa, doce ou arteira, mas, de qualquer modo, um pequeno ser feliz e inocente, em relação ao qual seus ora arrasados pais nutriam tantas esperanças. Trata-se, do ponto de vista da tipologia narrativa, de um momento que corrobora, no âmbito do reality show, a boutade da pesquisadora Linda Williams, segundo a qual todo filme norteamericano é melodramático.

De repente, sob uma indefectível e tensa trilha sonora, essa reminiscência lúdica é interrompida e dá-se o relato de um episódio traumático que teria sido o responsável pelo vício desenvolvido pelo adulto. Em raríssimas vezes trata-se de algo passível de ser realmente interpretado como um grande trauma pelas tradições sócio-culturais latinas ou européias – cujas visões realistas do constante vigor requerido para o embate pela vida advêm de séculos de guerras e fome. Mas, para os padrões da classe média suburbana americana – a retratada preferencial de Intervenção -, criada numa espécie de “zona artificialmente pacificada”, como diagnostica Camille Paglia , o que predomina no mais das vezes como o acontecimento traumático que o retratado teria sofrido é descrito nos termos nebulosos e imprecisos de “abuso na infância”. Aliás, é simplesmente inacreditável o número de crianças americanas que teriam sofrido abuso desde que essa categoria indefinida que precede mas não inclui o estupro – que é, evidentemente, considerado mais grave - passou a frequentar a fértil imaginação - e os códigos de regulação de conduta - estadounidense, país que também concentra o maior número de pessoas que se declaram abduzidas por ETs no mundo.

Mas o que interessa reter, por ora, nesse processo, é a necessidade da justificativa para o vício. É inconcebível, segundo o programa, que uma pessoa sem algum trauma profundo faça uso de drogas para fins recreativos – e que daí tenha evoluído para um quadro crônico de vício – ou que uma adolescente plenamente saudável tenha, numa sociedade tão consumista, se excedido nas compras com o cartão de crédito até que isso se tornou um sério problema, ou desenvolvido um distúrbio de alimentação a partir da cobrança social por uma forma física perfeita, sem que ela tenha sido abusada ou estuprada na adolescência (clique aqui para ver episódios e trechos de Intervenção disponíveis no youtube).

Trata-se de um exemplo didático do construcionismo social em voga nos EUA no último quarto de século. Há muito da “ideologia da vítima” – que vulgarizou os estudos sociais no país, notadamente os women studies – perpassando essa abordagem, mas, acima de tudo, há, sob o império do “científico” e do “clínico”, a crença na instalação de uma ordem racional – que reprime a animalidade, o instintivo e o desviante – através da normatização de todas as formas de relação inter-social, das que incluem intimidade - como o afetivo e o sexual - às que se dão em plena arena pública – como o verbal e o comportamental.

Chegamos, assim, à razão de ser deste post: é precisamente essa tendência à normatização geral da sociedade, com toda sua carga opressiva, que vem sendo assimilada, de forma cada vez mais intensa e menos crítica, pela sociedade brasileira. Não me refiro apenas às ações dos políticos conservadores brasileiros, iconizadas nas leis anti-fumo promulgadas por José Serra – de aparência protofascista, mas originadas exatamente desse cadinho de "cultura" -, mas, entre vários outros exemplos possíveis referentes ao espectro político que se lhes opõem, à aderência cada vez maior, em setores que se dizem de esquerda, à defesa de mecanismos de controle e repressão da expressão verbal, inclusive em sua forma mais espontânea e popular: o humor.

Trata-se do conservadorismo mais repressor travestido de progressista, de uma proteção que vitimiza e enfraquece àqueles que alega querer defender e de uma bomba-relógio armada contra a identidade e a peculiaridade da convivência democrática no Brasil, saudada por intelectuais e homens públicos do quilate de Stefan Zweig e de Darci Ribeiro como única no mundo. É, ainda, um caso exemplar de como “numerosos tópicos oriundos diretamente de confrontos intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades americanas impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro”, como identificam Boourdieu e Wacquant no imperdível texto “Sobre as artimanhas da razão imperialista” – que você pode ler, na íntegra, aqui. E, por fim, afigura-se como um atestado de óbito da esquerda, que alguns ingênuos e incautos, aparentemente bem-intencionados, teimam em assinar.



(Imagem de Caylee, que se tratou por vício em speedball (heroína + cocaína injetadas na veia), retirada daqui)

sábado, 15 de agosto de 2009

O Ombudsman no jornalismo atual

Meses após a criação do cargo de Ombudsman pela Folha de São Paulo, há 20 anos, uma piada circulava nos meios jornalísticos: “o Estadão já tem o seu ouvidor, falta a Folha arrumar o dela”. O chiste dizia respeito à alegada tendência do primeiro ocupante do cargo, Caio Túlio Costa (1989/1991), de reiteradamente criticar o jornal concorrente ou de comparar instisfatoriamente a cobertura que o jornal dos Mesquita fazia de determinado assunto em relação à oferecida pela Folha.

O gracejo me veio novamente à cabeça ao ler coluna do atual Ombudsman da Folha, Carlos Eduardo Lins da Silva, intitulada “A internet a serviço do jornalismo”. Como seu título indica, nela são elencados, nas palavras do jornalista, “ exemplos de como a internet pode contribuir muito positivamente para melhorar a qualidade do jornalismo e das relações entre a sociedade e seus governantes”.

Tais exemplos advêm do jornalismo norteamericano e não há qualquer correlação à atividade de imprensa no Brasil nem ao órgão em que Lins da Silva trabalha e o qual está incumbido de criticar, alegadamente em nome do leitor e do aperfeiçoamento do jornal. Essa omissão leva a curiosas distorções. Por exemplo: Lins da Silva afirma, corretamente, que “Há quem enxergue na internet um inimigo do jornalismo. É um erro conceitual e estratégico”. Mas tal afirmação não é correlacionada a exemplos recorrentes de profissionais que alimentam tal anacronismo, facilmente encontráveis entre alguns colunistas do jornal, destacadamente na outrora “nobre” página A-2. Perde-se, portanto, uma oportunidade efetiva de agir de acordo com as prerrogativas do cargo, criticando objetivamente aspectos preconceituosos e datados vigentes em setores do jornal.

Embora haja os que defendem a licicitude de tal prática, não considere correto que, dada sua posição de representantedo leitor, um Ombudsman ocupe uma coluna semanal com temas genéricos sem correlacioná-los às práticas do veículo em que trabalha. No caso particular do ouvidor da Folha, a tal discordância vem somar-se o receio de que a incursão por aspectos genéricos do jornalismo internacional funcione como sintoma de cerceamento das possibilidades de intervenção do Ombudsman no jornal e/ou de esgotamento da disposição crítica do próprio Lins da Silva em decorrência do efeito de tais limitações, tornadas evidentes na forma como a Folha vem sistematicamente ignorando suas sugestões, objeções e críticas. Ou seja, de fatores que apontam para a exaustão do modelo de ouvidoria jornalística representado pela adoção do cargo de Ombudsman pela Folha de São Paulo.


Marketing iluminista
A criação do Ombudsman, em 1989, mostrou-se uma bela jogada de marketing, de grande repercussão, numa fase em que o jornal acabara de perder alguns dos profissionais que, em cerca de vinte anos, transformaram um diário pouco expressivo num dos líderes de venda e – em grande parte graças à postura da Folha durante a campanha pelas “diretas já” – de credibilidade, fazendo muita gente levar fé em seu lema de inspiração iluminista de que se tratava de um jornal a serviço do Brasil.

Ao contrário do que a campanha publicitária e o próprio jornal martelavam a cada oportunidade, não se tratava do primeiro Ombudsman da imprensa brasileira. Muito possivelmente era a primeira vez que a denominação de origem sueca era aplicada a um profissional nativo, mas a atividade de analisar de forma crítica a própria imprensa já fora exercida antes, e na mesma Folha, por Alberto Dines, no caderno dominical Jornal dos Jornais, que durou de julho de 1975 a setembro de 1977, como aponta Celso Lungaretti, em texto repleto de informações valiosas sobre a experiência.

De qualquer forma, o caráter aparentemente institucional do cargo e um contrato com cláusulas que impedia o profissional que o exercesse de ser demitido - garantindo, ainda, sua permanência no jornal por um determinado período após o término das atividades de ouvidor - acabaram por afiançar a credibilidade da “inovação democrática” junto ao público.

No início, tinha-se a impressão de que as críticas surtiam efeito: pareciam ocorrer alterações significativas, por exemplo, no relacionamento dos colunistas com determinados temas e um cuidado maior (embora ainda insatisfatório) com a interlocução com o leitor; as restrições do citado Túlio Costa ao estilo, digamos, pouco afeito a convenções de Paulo Francis – então considerado por muitos o principal articulista do país, com sua cultura enciclopédia, seu texto de alto nível e um estilo que prefigurava, em nível bem mais alto do que corrente, a moda neocon - foram o principal motivo por ele alegado para sua transferência para o Estadão, em 1990.

Seguiu-se um longo perído durante o qual jornalistas de renome ou com a carreira em ascensão se revezaram no cargo, uns mais incisivos, outros mais parcimoniosos, uns agradando a gregos, outros desagradando a troianos, mas sem que provocassem grande celeuma (veja aqui a lista completa de ouvidores, seu tempo no cargo e a primeira e última coluna de cada um deles).


Figura decorativa
O caldo começou a entornar com a posse e a disposição crítica demonstrada pelo nono Ombudsman, Mario Magalhães (2007/2008), que se recusou a compactuar com o jornalismo partidário que a Folha insiste em praticar desde a posse de Luís Inácio Lula da Silva. Seguiu-se uma queda-de-braço entre Redação e Ombudsman, culminando com a decisão daquela de restringir ao “público interno’ a circulação da crítica diária. Para Magalhães, foi o estopim e ele não renovou o contrato, tornando-se o primeiro Ombudsman do jornal “a deixar o posto por não compactuar com sua descaracterização e esvaziamento”, nas palavras de Lungaretti.

Sua substituição por Lins da Silva inicialmente causou apreensão. Embora se tratasse de um profissional com um currículo jornalístico e acadêmico dos mais respeitáveis, temia-se que o fato de assumir o cargo com suas funções originais parcial mas gravemente reduzidas, somado à sua relação de proximidade com o jornal, pudesse significar uma postura de anuência para com o jornalismo praticado pela Folha, acusado, com frequência e intensidade inéditas, de tendencioso e antiético. Afinal, quando o diário dos Frias criou o cargo de Ombudsman, em 1989, Lins da Silva havia acabado de publicar em livro sua tese de livre-docência, sob o título de Mil Dias: Os Bastidores da Revolução em um Grande Jornal e a “orelha” do volume o apresentava aos leitores como “Um dos líderes da equipe que provocou profundas transformações na Folha de S. Paulo (onde é diretor-adjunto de redação)”. São precisamente tais transformações – em relação às quais a criação do cargo de Ombudsman é uma espécie de culminância –, enfocadas criticamente como um processo de profissionalização da produção jornalística em todos os níveis, incluindo o ético, o tema do livro.

As suspeitas em relação ao novo Ombudsman logo revelar-se-iam infundadas, com Lins da Silva assumindo postura crítica em relação não apenas a questões mais comezinhas, mas a episódios extremamente graves como a utilização do neologismo “ditabranda” para se referir à ditadura militar, o ataque aos professores Maria Victoria Benevides e Fabio Konder Comparato, e a utilização de ficha policial falsa da ministra e pré-candidata Dilma Roussef em reportagem sobre sequestro hipotético que nunca ocorreu.

O problema é que a postura correta e incisiva do atual Ombudsman não tem surtido efeito algum, com a Redação ignorando de forma olímpica o resultado de suas análises e suas objeções. É motivo passível de constrangimento não apenas para o próprio Lins da Silva, mas para o leitor, logrado em sua representação junto ao jornal, a manutenção do Ombudsman como mera figura decorativa.

Assim, só me resta concordar com Lungaretti quando, em outro artigo, publicado em seu blog em 31/07 e desta feita acerca do “caso Sarney”, afirma:


“Infelizmente, os leitores há muito deixaram de ser representados no jornal, que só mantém a seção do ombudsman para não passar recibo de que sua arrogância olímpica é incompatível com os limites que jornais mais sérios impõem a si próprios. Criou tal seção, apresentou-a como um grande avanço na democratização dos meios de comunicação, depois arrependeu-se do que havia feito e a esvaziou, mantendo-a apenas como fachada.

Então, de nada adianta Carlos Eduardo estar sempre com a posição correta, salvo em benefício de sua biografia como profissional de dignidade exemplar. Mas, a única obrigação da redação da Folha tem sido a de escutar pacientemente suas ponderações; depois, age como bem entende”.

Em decorrência das constatações elencadas acima, duas questões se impõem:


1) Por que um profissional de primeiro nível e um homem público da estatura
ética de Carlos Eduardo Lins da Silva se presta a tomar parte dessa pantomima?

2) Ombudsman, para quê?

(Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa. Fiz mínimas modificações).

Adendo (15/08):
A quase totalidade das respostas a este artigo, na ocasião – em comentários ou via email –, ressalvaram que a função que o atual Ombudsman exerce diretamente junto aos leitores, dando encaminhamento e respondendo às suas queixas, seria de suma importância e justificaria a manutenção do cargo e de Lins da Silva, ainda que este tivesse suas demandas praticamente ignoradas pela Redação.

O próprio Lins da Silva, com uma urbanidade e firmeza que confirmam as considerações acerca de seu caráter feitas ao longo do texto, dedicou coluna dominical comemorativa dos 20 anos da criação do cargo de Ombudsman na Folha aos temas cobertos por mim e por Lungaretti (coluna disponível aqui, infelizmente só pára assinantes do UOL ou da Folha). Embora admita "que experimente frustração vez ou outra ao ver minhas sugestões e linha de raciocínio ignoradas", Lins da Silva não apenas corrobora a visão dos leitores acima citada - afirmando que "Mesmo que nunca a Redação acatasse as opiniões do ombudsman, ainda assim ele teria um papel importante" - como, traçando analogias com o o mito grego de Cassandra e com o personagem Grilo Falante, de Pinóquio, aponta a importância histórica das críticas, concluindo: “Mas Cassandras, grilos e alter egos só têm valor quando são atendidos?”.

Como o perfil do público do blog costuma divergir consideravelmente do dos leitores do Observatório e como há o dado novo das considerações de Lins da Silva, republico o artigo aqui para um renovado exame da questão e nova coleta de opiniões.

(Imagem retirada daqui)

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A elite e a "Estética da Miséria"

Uma das queixas recorrentes contra o cinema brasileiro diz respeito à “estética da miséria” – alegadamente, uma excessiva predileção por temáticas sociais em que pobreza, miséria e sofrimento pontificariam, em detrimento dos aspectos leves e divertidos da vida nesse nosso maravilhoso país tropical.

Não se trata de uma queixa nova: ela vem à tona já numa das primeiras vezes em que o cinema nacional demonstra interesse genuíno pela patuléia – no desaparecido Favela dos Meus Amores (Humberto Mauro, 1935) - e, sobretudo, naquele que se convencionou classificar - por inovações financeiras (sistema de cotas cooperativadas), operacionais (filmagem nas ruas) e estético-ideológicas (abordagem “realista” do universo popular) - como um dos marcos inaugurais do moderno cinema brasileiro, Rio, 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955).

Nessas primeiras encarnações, a queixa contra a pobreza nas telas mescla preconceitos de raça e de classe a um discurso nacionalista: tais filmes estariam sendo negativistas e “prejudicando a imagem do país” ao mostrar uma “gente indolente e escura demais”, habitante dos então pacíficos morros cariocas. Não é por outra razão que Rio, 40 Graus só é lançado após uma longa batalha com as forças que o queriam interditar.

Durante o Cinema Novo, a pobreza nas telas ganha status de intervenção político-social, numa década não apenas marcada por “uma imensa e inflacionada emissão de crédito superestrutural”, como quer Fredric Jameson, mas cuja hegemonia, no campo cultural brasileiro, pertence à esquerda. De acordo com a zeitgeist do período, e num meio cinematográfico majoritariamente esquerdista e de formação literária, essa opção pela pobreza nas telas logo transmuta-se em manifesto político-cultural – o mais celebrado deles (embora não o primeiro nem o mais elaborado), sendo a “Estética da Fome”, que Glauber Rocha publica na Itália em 1965 (íntegra aqui, em PDF), no qual afirma que:


“Este miserabilismo do Cinema Novo opôe-se à tendência do digestivo (...): filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, e de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida, e frágil, ou mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo de filmes. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que antes escrito pela literatura de 30, foi fotografado pelo cinema de 60; e, antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político”.

O dilema latente no texto seria resolvido pela própria geração do Cinema Novo a partir dos anos 70, que tem como turning point simbólico a convocação “Mercado é cultura” de Gustavo Dahl, traduzindo a aderência a um cinema que, sem abdicar da crítica social, inscrever-se-ia no âmbito do entretenimento popular. Um dos exemplos mais bem sucedidos dessa nova fase é Bye, Bye Brasil (Cacá Diegues, 1979).

Não por acaso, é a partir da chamada “Retomada” (1993) que as queixas contra a “estética da miséria” ganham força, na mídia e fora dela: o fim do cinema nacional decretado por Collor de Mello ocultava a premissa de que seu renascimento, se se desse, o faria exclusivamente sob a égide privatista e neoliberal. Ainda que as leis de incentivo à cultura que vieram a possibilitar o reavivamento do cinema nacional satisfizessem parcialmente tais condições, ao inserir no circuito do financiamento tanto os diretores de marketing das empresas – para aprovar ou não projetos – quanto empresas financeiras – para captar a verba junto à iniciativa privada -, o espaço, ainda que mínimo, de intervenção estatal e o peso da tradição cultural cinematográfica sobrepujaram os anteparos anti-denuncismo social que o novo sistema intencionalmente criara.

O resultado foi que, a partir da metade dos anos 90, o Brasil viveu um verdadeiro boom de filmes que diagnosticavam de forma incisiva seus dilemas sociais, da miséria ao crime - algo que foi ainda mais aprofundado com o ciclo de renovação do documentário brasileiro que teve lugar ao final da década e continua a pleno vapor.

A despeito de serem procedentes ou não, as queixas contra a tal da “estética da miséria” – que advém, em sua maioria, de setores da classe média que aspiram à elite (quando não da própria elite), são exemplares do processo que Anna Freud identificou como o “mecanismo de defesa da negação” – no caso, em dupla manifestação: não só o retrato daquela realidade social é rechaçado por parte do público por desidentificação egoísta (“Eu não tenho nada a ver com isso”; “O Brasil é muito mais do que isso”), mas como forma inconsiente de se defender da culpa pelo estado de coisas mostrado na tela.

O fato de a crítica dirigida à “estética da miséria’ mal disfarçar um misto de preconceito de classe, desconhecimento das tradições culturais cinematográficas brasileiras e desejo de afirmação de uma “cultura” audivisual colonizada não anula, no entanto, a expressão de um desejo genuíno por novidades no cardápio cinematográfico nacional e a constatação de que há, entre os filmes socialmente engajados e o “cinema televisivo” da Globo Filmes, um amplo espectro de temas e de conjunturas e estéticas regionais que passam virtualmente ao largo das produções nacionais.

É questionável, no entanto, se tal diversidade virá a ser produzida a partir do ataque elitista, no pior estilo "o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde" a uma das características distintivas do cinema brasileiro: sua capacidade de funcionar como locus de reflexão e debate da problemática social brasileira.


(Imagem do filme Estamira (Marcos Prado, 2006) retirada daqui)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Desalento: a "hibernação" d'O Biscoito Fino

A “hibernação” do blog O Biscoito Fino e a Massa, sem previsão de retorno, foi anunciada ontem por Idelber Avelar e provocou comoção em muitos, inclusive em mim.

Instalaram-se um vazio e um senso de desorientação. A tarde ficou triste, melancólica, como aquela do poema que Vinicius fez a Rubem Braga. Fez-me lembrar outra tarde, distante, em que eu almoçava com minha amiga Glauce Passeri e ouvimos no rádio do restaurante que Cazuza morrera. Não se trata, evidentemente, de algo tão trágico e irreversível, mas a ligação se faz, para mim, porque os dois eventos significam, de certa forma, o fim da culminância de uma era em que o novo se impôs.

Pois, ao criar e manter, por cinco anos, um blog independente - visceral em suas posições, na crítica à mídia, na defesa lúcida dos pontos de vista da esquerda - e fazer dele uma referência política e cultural para milhares de pessoas, Idelber provou que uma nova mídia, não-corporativa, democrática, feita com parcos recursos mas com inteligência é possível.

Relutei muito em escrever este post. Havia decidido não fazê-lo. Mas, de madrugada, após um dia marcado pela tristeza e pelo pasmo, ele se impôs quase que como uma forma de desabafo, de exorcismo emocional. Não quero, de forma alguma, dar a impressão de estar sendo oportunista. Sou o primeiro a reconhecer que há muitas outras pessoas com um contato muito mais longo e intenso com Idelber do que eu. Uma dessa pessoas, o Alexandre Nodari, escreveu um belíssimo post a respeito, no qual o qualifica, com a precisão de um antropólogo, como “o primeiro intelectual público brasileiro da internet”.

Eu sequer o conheço pessoalmente, e meu contato com ele se resume a comentários – eventualmente respondidos - em seu blog, em esparsos e breves diálogos twitados e nas poucas mas para mim importantes vezes em que, graças à sua generosidade, ele citou a meu blog ou a mim no Biscoito ou nos RTs do Tweeter.

Lembro-me bem das primeiras vezes que acessei O Biscoito. Faz uns 3 anos, 3 anos e meio. Eu morava nos EUA e acompanhava obsessivamente a mídia brasileira pela internet. O blog do Nassif foi, para mim, uma novidade redentora. Mas demorei a assimilar o de Idelber, não apenas porque seus textos pareciam-me muito densos (numa épóca em os blogs ainda eram mais associados a humor, a diários adolescentes ou, de qualquer forma, a textos curtos) mas por motivos correlatos que hoje me fazem rir: seu nome, Idelber Avelar, me sugeria, sei lá o por quê (as xícaras de chá?) , um senhor de uns 50, 60 anos que, sendo professor universitário e escrevendo aqueles textos analíticos compridos, devia ser seríisimo e sisudo (rs.). Levou um bom tempo para que essa impressão se dissipasse.

Só passei a frequentar o blog diariamente há 1 ano 9 meses, creio eu, quando já estava para voltar ao Brasil. Daí em diante ele se tornou meu principal ponto de referência na internet brasileira. Durante todo esse período espantava-me a frequência com que as idéias dele expressavam exatamente o que eu pensava, notadamente em termos políticos. Alguns momentos memoráveis, para mim, foram as últimas eleições para prefeito e, sobretudo, o episódio da “ditabranda” e do ataque aos professores Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides pela Folha de S. Paulo. Daí nasceu o Cinema e Outras Artes: motivado pela leitura, n’O Biscoito, da cobertura da passeata promovida pelo Movimento dos Sem Mídia (da qual participei) em frente à sede do jornal.

Só me lembro de ter discordado total e frontalmente de Idelber em uma ocasião, mais pela forma como ele defendeu uma idéia - e pelas consequências políticas que aquela defesa poderia gerar - do que pela idéia em si (embora desta também discordasse). Mas não seria correto abordar o tema aqui, já que ele não estará disponível para eventualmente contestar.

“A hibernação do Biscoito deixa um vácuo considerável na blogosfera brasileira”, aponta Hugo Albuquerque. Além da perda do referencial periódico que as atualizações d’O Biscoito traziam e do fim do espaço de discussão cultural de alto nível, o que mais lamento na decisão de Idelber é, ao que tudo indica, a sua ausência nos debates que serão suscitados pela próxima eleição. Será, com certeza, uma guerra, e não tenho dúvidas de que ele seria – como já vinha sendo – um dos principais faróis para a militância de esquerda e no contra-ataque a uma mídia que insiste em agir como partido. Caberá a todos nós segurar essa peteca.

Pois o desenvolvimento de sua carreira acadêmica, incompatível com a intensa atividade blogueira, se impôs e novos frutos devem vir, não mais em doses fugazes e quase diárias, mas a longo prazo, na forma duradoura e intelecualmente mais complexa de livros. Toda a sorte e inspiração do mundo a ele, que a tantos inspirou!



(Ilustração: "Melancolia", por Edward Munch, 1891 - retirada daqui)

domingo, 9 de agosto de 2009

Ataque à democracia disfarçado de campanha cívica

Desde que o atual Presidente da República tomou posse, em 2003, a oposição não se preocupou em apresentar um projeto alternativo ao país, em debater idéias, em criticar objetivamente os problemas e dizer qual seria a solução que adotaria se fosse governo.

Ao invés disso, preferiu brandir tão-somente a bandeira da ética, como se condições para tal tivesse. Como demonstram a cada vez mais complicada situação da governadora Yeda Crusis (PSDB/RS) - contra quem o Ministério Público Federal/RS acaba de ajuizar denúncia por improbidade administrativa -, e do cara de madeira do senador Arthur Virgílio (PSDB/AM), não as tem.

Há várias maneiras de se contar a história dos dois mandatos presidenciais de Luís Inácio Lula da Silva. Uma das mais plausíveis é a da atuação de um conluio entre oposição e mídia tentando sucessivamente criar escândalos para derrubar o governo – daí deriva a denominação jocosa PIG (Partido da Imprensa Golpista), criada por Paulo Henrique Amorim e que eu, embora reconheça ser, no mais das vezes, procedente, evito usar para não generalizar.

Apesar do hercúleo esforço do conluio mídia-oposição nesses seis anos e meio, nenhuma denuncia sequer chegou perto de atingir diretamente a figura do presidente Lula, ao contrário do que aconteceu com Fernando Henrique Cardoso, que foi reiteradas vezes acusado de compra de votos para a reeleição, incluindo capa na revista Caros Amigos (porque os demais veículos da “grande imprensa” logo “esconderam” a notícia) em que o jornalista Fernando Rodrigues, da Folha de São Paulo, mostra uma fita em que alegadamente estariam gravadas as provas da operação ilegal.

No entanto, ao contrário da difusão, na Era Lula, de termos como “aloprados” e “mensalão”, não foi pespegado nem em FHC nem em outros membros de seu governo - sobre os quais pesam suspeitas no caso Sivam, de instalação de radares na Amazônia; no socorro financeiro aos bancos Marka e FonteCindam; e, para ficarmos em apenas três exemplos, no processo de privatização feito “no limite da irresponsabilidade”, como confessou o assessor e ex-tesoureiro Ricardo Sérgio a FHC – nenhum rótulo de fácil identificação visando associá-los a atos supostamente corruptos. Isso porque poucos governos na história da democracia no país tiveram da mídia um tratamento tão benevolente e camarada – recompensado a contento, é claro.

O caso Sarney representou uma espécie de culminância do denuncismo como arma políitca. A um ano das eleições, a remoção do Presidente do Senado que apoia Lula significaria, no mínimo, abrir caminho para uma nova e atabalhoada eleição interna na Casa: poderia-se tentar jogar o PT contra o PMDB como forma de empossar Marconi Perillo (PSDB/GO) ou, no mínimo, criar um tertius, um novo Severino Cavalcanti para “bagunçar o coreto”.

Agora, com o arquivamento das acusações contra o senador maranhense na Comissão de Ética do Senado, e com a possibilidade de sua retirada do poder restringindo-se à execução de uma combinação de estratégias-limite, cria-se um novo factóide, sob a alegação de que a sociedade não aguenta mais: a renúncia coletiva do Senado.

Trata-se de uma espécie de “Cansei II, o Retorno”. Manipula-se a plenamente justificável indignação popular para uma manobra político-partidária das mais baixas, pois não apenas a renúncia coletiva da Casa teria efeitos paralisantes na administração federal (que depende da anuência do Senado para aprovar verbas e orçamentos, Medidas Provisórias e nomeações de agentes públicos), mas porque o caos que se criaria em decorrência de tal vazio institucional seria, fatalmente, jogado nas costas do presidente Lula, que ficaria, por um bom tempo e às vésperas da eleição, à frente de um governo inoperante.

À medida em que se minimizam as chances eleitorais da oposição, é palpável o desespero que dela se apodera ante a perspectiva de passar mais quatro anos longe das benesses do poder - e da possibilidade de acabar de privatizar o Estado e de entregar o país de vez ao grande capital internacional. A proposta de renúncia coletiva ao Senado pertence a esse contexto.

Trata-se, evidentemente, de uma medida extrema, que atenta contra a própria noção de democracia, pois os senadores lá estão porque foram eleitos pela população. Se a população os considera corruptos ou não está satisfeita com seu desempenho, ela que troque o Senado nas próximas eleições, como manda a Constituição. Qualquer outra solução significa rompimento da ordem institucional e ataque frontal à democracia: trata-se de solução golpista com aparência cívica.

É simplesmente inacreditável que pessoas que se dizem democráticas apoiem tal medida. Ingenuidade em excesso, definitivamente, faz mal.


(Imagem retirada daqui)

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A ameaça aos blogs

Foi anunciado ontem o fim do blog A Nova Corja, que se destacou pela cobertura política da recém-finada (mas ainda não enterrada) “administração” Yeda Crusius. O motivo principal para o encerramento das atividades seria o "desânimo" causado pelos processos judiciais movidos pelos jornalistas Políbio Braga e Felipe Vieira e pelo Banrisul, que tomam tempo, dinheiro e disposição física e psicológica dos blogueiros.

O fim do blog gaúcho revela o quanto é necessária a criação de alguma forma institucional de representação dos blogueiros independentes, sobretudo no sentido de se constituir uma malha de proteção jurídica à atividade. Venho insistindo nessa tecla há tempos, em conversas tête à tête ou virtuais e em comentários em blogs alheios. Sei que muitos resistem devido ao temor de que isso venha a comprometer sua independência. Não vejo como tal coisa poderia acontecer.

O jornalista, professor de Comunicação e ex-membro do blog gaúcho, Marcelo Trässel, que comunicou a decisão de fechamento do ANC, expressa preocupações semelhantes:

“Desde o primeiro processo iniciado contra a Corja, cristalizou-se em meu ponto de vista a necessidade de uma organização como a Eletronic Frontier Foundation no Brasil. Seu objetivo seria a educação da sociedade quanto aos direitos e deveres do cidadão na Internet e também o apoio técnico e jurídico a repórteres amadores e demais vítimas de litigância de má-fé e outras injustiças. Um dia, quem sabe, a idéia sai do papel”.

Concordo, mas não penso ser possível esperarmos tanto tempo. Creio que a montagem da rede de proteção jurídica aventada parágrafos acima seria algo víavel a curto ou médio prazo. Ela poderia ser erguida, por exemplo, com a participação de advogados voluntários, cientes da importância do papel da blogosfera independente e dispostos a contribuir com seu tempo e saber jurídico da mesma forma generosa e gratuita que os blogueiros se dedicam às atividades de pesquisa e redação (Alô, alô, Túlio Vianna!).

Do contrário, é isso: um blog que teve grande importância na denúncia dos desmandos no RS na “administração” Yeda – fornecendo, ainda, uma visão crítica do papel da monopolizada mídia gaúcha - cai ante os primeiros processos judiciais. Não é a primeira e muito provavelmente não será a última vez que isso acontece. Pior: quem acompanha O Biscoito Fino e a Massa sabe que há tempos blogueiros e cidadãos comuns vêm sendo sucessivamente processados por crimes de opinião.

E a situação tende a se agravar: como revelou Luis Nassif ontem, políticos estariam contratando profissionais de troll para atuar diuturnamente contra blogueiros e colunistas. Com a tendência ao acirramento dos ânimos à medida em que se aproximam as eleições de 2010, a internet tem grandes chances de vir a se tornar campo de batalha em que acusações caluniosas, uso massivo de troll e até práticas piores serão utilizadas visando acirrar os ânimos e criar condições propícias à litigância de má-fé.

Com efeito, seria muita ingenuidade achar que os poderosos e os corruptos, acostumados há décadas a usufruir das benesses do poder ao seu bel prazer, encobertos pelo silêncio cúmplice da grande imprensa, iriam ficar inertes vendo suas falcatruas e suas jogadas sujas serem reveladas por francoatiradores que atuam de graça ou, em alguns casos, auferindo rendimentos mínimos.

É triste, é lamentável, mas é essa a realidade.

Por outro lado, quem se presta a manter um blog deve estar ciente de que, a despeito de a Constituição garantir, em seu quinto artigo, liberdade de expressão, há limites legais que regem tal direito, especificamente os artigos de 138 a 145 do Código Penal. Crítica fundamentada, sim; agressão gratuita, não. É preciso ter em mente, ainda, que o dono do blog é co-responsável legal pelo que é publicado em sua caixa de comentários. Mesmo se todos esses cuidados forem tomados, nada garante, no entanto, que o blogueiro deixe de ser vítima de litigância de má-fé.

Portanto, se nada for for feito para garantir ao menos a certeza de defesa jurídica, a blogosfera política independente e crítica – que, diante dessas circunstâncias, tende a encolher – vai repetir o que acontece no universo do grande capital que tanto critica: blogueiros que são suportados por portais ou que, devido a alta audiência e longevidade na rede, já constituiram suas próprias redes informais de proteção jurídicas, tendem a sobreviver; a massa de neófitos e de independentes que lutam para conquistar um espaço ficará jogada aos tubarões da litigância. Portanto, é preciso reagir. E já.


(Imagem retirada daqui)