A implementação do Vale-Cultura pelo governo federal tem fomentado discussões acerca da relação entre cultura popular e cultura de elite nos fóruns da internet. Tais discussões, como procurarei debater ao longo deste post, suscitam temas ligados a questões essenciais – embora sistemática e propositadamente negligenciadas - para o debate dos rumos da cultura e da relação entre Estado, público e produção artístico-cultural no país.
O Projeto
O Vale-Cultura é um projeto desenvolvido no âmbito do Ministério da Cultura, baseado no modelo dos "tíquetes-refeição", pelo qual trabalhadores que recebem até cinco salários mínimos (R$2,3 mil) terão direito a um cartão magnético no valor mensal de R$50 para gastos com cultura – seja para frequentar shows, cinemas, teatros e museus, seja para compra de livros, CDs ou DVDs. [O plural é pura generosidade de minha parte; com cinquenta pratas comprarão um livro e olhe lá].
O projeto fora inicialmente criticado por prever que o governo arcasse com 30%, o empregador com 20% e o funcionário com a maior parte, 50% do custo do benefício. Porém tal distorção foi sanada e, no projeto de lei enviado ao Congresso no último dia 23, sob a chancela de “urgência urgentíssima”, o trabalhador-alvo do projeto pagará apenas 10% do valor do benefício (trabalhadores com faixas de renda maiores poderão se beneficiar do Vale-Cultura, mediante descontos percentuais progressivamente maiores). Empresas que declaram Imposto de Renda com base no lucro real terão o direito de deduzir até 1% do IR devido, e as que seguem outros regimes tributários contabilizar o valor gasto para aquisição dos Vales-Cultura como despesa operacional. O governo – que espera que o Legislativo aprove o projeto em até 45 dias - arca com a maior parte da despesa.
Os dados disponíveis sobre acesso a cultura revelam um quadro desolador. Segundo o Ministério da Cultura (que disponibiliza um blog sobre o Vale-Cultura, com clipping informativo e o projeto de lei na íntegra), apenas 14% dos brasileiros vão regularmente ao cinema; 96% não frequentam museus, 93% nunca visitaram uma exposição de arte e 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança. O órgão estima que o benefício contemplará algo entre 12 e 14 milhões de pessoas, e espera aumentar em até R$ 600 milhões por mês o consumo cultural no país.
Preconceito e elitismo
Num post intitulado “O preconceito e o elitismo no debate sobre o Vale-Cultura”, o jornalista e blogueiro Leonardo Sakamoto debate, entre outros aspectos do novo instrumento de política cultural, o constrangimento de certos setores quanto ao destino que os beneficiários poderiam dar ao vale:
E são justamente esses numerosos artistas de níveis, estilos e abrangência regional diversos que, se o governo se prestasse, de forma democrática, a fazer o seu papel de atuar como mediador cultural, azeitando a relação deles com o público, poderiam elevar quantitativa e qualitativamente o nível de consumo de cultura pelas classes menos favorecidas no país.
Sem a mínima intenção de fazer uma crítica fulanizada a Sakamoto – que é um jornalista sério, com um respeitabilíssimo histórico de denúncia de graves questões trabalhistas, incluindo o trabalho escravo –, mas no intento de apontar contradições inatas à posição que ele, como tantos outros, defende, gostaria de questionar seu conceito de elitismo, tão essencial ao artigo que é anunciado logo no título. Para ele, as críticas ao eventual destino que o beneficiário der ao Vale-Cultura têm “um lado elitista”. Concordo, têm mesmo, e este diz respeito a critério de gosto estético e à tentativa de imposição desse critério a outra classe social (Bourdieu puro).
Mas, ao descartar rapidamente, como se de uma batata quente se tratasse, qualquer análise do papel da indústria cultural, Sakamoto dá vazão, talvez inadvertidamente, a um elitismo ao meu ver muito mais grave e profundo, que diz respeito tanto a questões estruturais do mercado de bens culturais - e do lucro das corporações que nele atuam - quanto aos limites de ação de governos democraticamente eleitos em relação a tal mercado.
O retorno do oprimido
Trata-se de um daqueles debates que, embora as forças conservadoras brasileiras se esforcem para calar, de quando em quando retornam, como o oprimido de que nos fala Freud, para assombrar o presente e revelar a incipiência e a hipocrisia de nossa suposta democracia cultural.
Um dos momentos mais traumáticos de repressão a esse oprimido ocorreu, segundo pesquisadores como Dênis de Moraes, na ruptura do processo de alavancagem do nível de cultura das massas populares decretada pelo golpe de 1964 – por impedir, entre vários outros exemplos possíveis, que os Centros Populares de Cultura (CPCs) da UNE completassem a transição do realismo socialista para o realismo crítico. Tal fratura fez com que a participação das massas populares no hiato que Roberto Schwarz chama de “hegemonia cultural de esquerda” - que se deu entre o golpe e o AI-5 - não superasse os limites periféricos aos quais, com poucas e pontuais oscilações, elas estariam mais e mais confinadas ao longo das décadas seguintes.
A posição participativa de intelectuais como Moraes, Marcelo Ridenti e Carlos Nelson Coutinho – que, em entrevista publicada aqui, “continua defendendo uma cultura nacional-popular, comprometida com o exame crítico da realidade sociopolítica” -, entre outros, se contrapõe, por exemplo, à de Maria Sylvia Carvalho em seu ensaio sobre o ISEB (“Tempo de ilusões”) e, em diversos artigos e livros, à de Marilena Chaui – filósofa que, quando a questão do popular na cultura de massas retornou uma vez mais ao primeiro plano, em meados dos anos 70, exerceria uma posição crítica militante contra qualquer forma de ação paternalista por parte do governo (então militar), além de procurar desconstruir teoricamente o conceito de “massa” como entidade una e manipulável. Esse embate, como se vê redivivo, tem episodicamente voltado à tona e sendo novamente reprimido ao longo do tempo.
O mais recente retorno do oprimido deu-se no no início da madrugada do último dia 28, quando o jornalista Allon Feuerwerker, logo após recomendar publicamente (“retwitar”) o post de Sakamoto, perguntou, via Twitter: “Vale-cultura: pq tirar do pobre o direito de consumir lixo cultural, um direito garantido ao rico?”.
A que eu devolveria a pergunta (como de fato o fiz no Twitter, com outras palavras): “Pq privar o pobre do direito de NÃO consumir lixo cultural, um direito garantido ao rico?”.
O mito do dirigismo
Pois direito de consumir lixo cultural todos têm – e vão continuar tendo, pois o Vale-Cultura amplia opções, não as restringe. Mas, mais de meio século após a intervenção de Adorno e Horkheimer, será que alguém ainda acha que o povão que elege Latino, Tiririca e Kelly Key o faz por livre e espontânea vontade? Que lhe foi dada a oportunidade de conhecer outros estilos musicais e outras propostas artísticas, para daí fazer sua escolha?
Esses artistas só passaram a representar o “gosto popular” que o pseudoesquerdismo elitista defende com unhas e dentes após, à custa de muito jabá, terem tido suas encantadoras canções bombardeadas nos ouvidos do andar de baixo trocentas mil vezes ao dia, todos os dias!
Quer dizer, esse dirigismo cultural escondido, ilegal e insidioso é não apenas tolerado mas defendido. E por quê? Porque embora a rádio/teledifusão seja um serviço público e feito através de concessão pública, é considerada pertencente ao âmbito da iniciativa privada, que tudo pode; já o governo, como representante do poder público.... Devido a essa sutil diferença, a um é permitido, como citado acima, o obscuro, o ilícito e o manipulativo, enquanto ao outro é negado – sob a acusação de se tratar de autoritarismo - o direito de promover, às claras, um projeto de enriquecimento cultural de uma população de nível educacional sabidamente (sic) baixo, em comparação com o resto do mundo. Simples assim.
Destarte, tornou-se normal e plenamente aceito que a maioria de milhões de brasileiros cujo único meio de acesso à “cultura” é a TV aberta (que, convém lembrar uma vez mais, é uma concessão pública) seja diariamente submetida ao dirigismo “cultural” das grandes redes, aos datenas da vida e seus imitadores piorados (acredite, é possível) ou às novelas da Globo e derivados.
O mito do dirigismo é, portanto, um discurso de mão única: ele serve ao grande capital comunicacional, para que este adquira ainda maior liberdade de ação do que já tem, ao mesmo tempo em que reprime a adoção de qualquer medida efetiva que a tal capital ofenda por parte do governo.
Já a mera possibilidade de se criar alguma forma de direcionamento do entretenimento cutural popular por meio de ação governamental causa escândalo e protestos em setores supostamente formadores de opinião, que parecem – ou simulam parecer – não se dar conta de que repetem o mesmíssimo argumento das grandes corporações de mídia quando a administração federal faz menção de exercer seu direito legal de estabelecer parâmetros e regularizações para a atividade televisiva, como no caso da malfadada criação da Ancinav.
Será que esses críticos não se dão mesmo conta do quanto a satanização do “dirigismo” governamental, associando-o, dogmaticamente, ao stalinismo cultural, tem como contrapartida um dirigismo de facto, insidioso e adepto recorrente de práticas ilegais, comandado por grandes corporações de mídia, como abordado acima?
Paliativos, uma vez mais
Cai-se, assim, num relativismo excessivo e imobilizador, tributário não apenas do pós-modernismo, mas, sem que muitos o percebam, do neoliberalismo, em que se insiste na tecla de que não há parâmetro válido para a diferenciação valorativa entre produtos culturais, ao mesmo tempo em que se lega à indústria cultural a tarefa de impor os seus próprios valores, segundo os critérios (ou descritérios) que quiser.
Trata-se, ainda, uma vez mais, de uma medida do governo Lula que mantém intactos (ou melhor, passa a satisfazer ainda mais) os interesses do grande capital. Como colocou um blogueiro com o qual tenho muito mais divegências do que concordâncias,o Angry Brazilian, em diálogo via Twitter:
- “É mais fácil o governo mandar patrão dar 50 contos pra empregado e se eximir de fiscalizar um cinema que nos rouba, cobrando até 30 contos” – escreveu ele, emendando uma série de comentários que enfatizam o quanto o Vale-Cultura mantém intacta a capacidade da indústria do entretenimento, no Brasil, de insistir em seus preços abusiva e inexplicavelmente altos (em termos comparativos mundiais, registre-se) e em suas práticas extorsivas (como o cambismo oficial e o custo dos convidados VIPs sendo cobertos pelos otários pagantes).
Ficam duas perguntas. A primeira, que não cabe a mim responder, é: as pessoas que, por recusarem o “dirigismo”, se opõem a qualquer intervenção direta do governo para melhoria do repertório cultural popular estão satisfeitas com o nível cultural da população brasileira?
A segunda é: o Vale-Cultura, tal como está sendo proposto, despido de qualquer “dirigismo”, representa um avanço? Possivelmente, sim, mas um avanço com a marca contraditória da “Era Lula”, substancial se comparado às administrações anteriores, mas feito de medidas paliativas e que não alteram a estrutura do mercado de bens culturais. E que preservam, tanto na timidez com que asumem medidas pró-ativas para elevação do nível cultural das massas – por temer a acusação de dirigismo -, quanto na leniência para com as tarefas fiscalizantes e reguladoras de práticas e preços concernentes à indústria do entretenimento – por receio de contrariar o grande capital – um conservadorismo decepcionante e conformado, que não ousa transpassar os marcos regulatórios ditados pela ideologia neoliberal.
O Projeto
O Vale-Cultura é um projeto desenvolvido no âmbito do Ministério da Cultura, baseado no modelo dos "tíquetes-refeição", pelo qual trabalhadores que recebem até cinco salários mínimos (R$2,3 mil) terão direito a um cartão magnético no valor mensal de R$50 para gastos com cultura – seja para frequentar shows, cinemas, teatros e museus, seja para compra de livros, CDs ou DVDs. [O plural é pura generosidade de minha parte; com cinquenta pratas comprarão um livro e olhe lá].
O projeto fora inicialmente criticado por prever que o governo arcasse com 30%, o empregador com 20% e o funcionário com a maior parte, 50% do custo do benefício. Porém tal distorção foi sanada e, no projeto de lei enviado ao Congresso no último dia 23, sob a chancela de “urgência urgentíssima”, o trabalhador-alvo do projeto pagará apenas 10% do valor do benefício (trabalhadores com faixas de renda maiores poderão se beneficiar do Vale-Cultura, mediante descontos percentuais progressivamente maiores). Empresas que declaram Imposto de Renda com base no lucro real terão o direito de deduzir até 1% do IR devido, e as que seguem outros regimes tributários contabilizar o valor gasto para aquisição dos Vales-Cultura como despesa operacional. O governo – que espera que o Legislativo aprove o projeto em até 45 dias - arca com a maior parte da despesa.
Os dados disponíveis sobre acesso a cultura revelam um quadro desolador. Segundo o Ministério da Cultura (que disponibiliza um blog sobre o Vale-Cultura, com clipping informativo e o projeto de lei na íntegra), apenas 14% dos brasileiros vão regularmente ao cinema; 96% não frequentam museus, 93% nunca visitaram uma exposição de arte e 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança. O órgão estima que o benefício contemplará algo entre 12 e 14 milhões de pessoas, e espera aumentar em até R$ 600 milhões por mês o consumo cultural no país.
Preconceito e elitismo
Num post intitulado “O preconceito e o elitismo no debate sobre o Vale-Cultura”, o jornalista e blogueiro Leonardo Sakamoto debate, entre outros aspectos do novo instrumento de política cultural, o constrangimento de certos setores quanto ao destino que os beneficiários poderiam dar ao vale:
“Ouvi e li depoimentos reclamando que o ‘povão’ iria torrar os 50 mangos em besteira, em livros de auto-ajuda, shows de brega ou forró, filmes blockbusters ou neochanchadas nacionais, enfim. Que deveria ser criada uma maneira do gasto ser feito apenas em produtos de “qualidade” ou da “cultura popular” dos estados...”
Sakamoto, no post, sem abrir mão da ponderação, assume, como de costume, postura crítica e que exprime de maneira clara sua posição quanto ao tema:
Sublinhadas a qualidade e a honestidade de intenções do autor, gostaria de fazer algumas ressalvas quanto a alguns de seus argumentos. A primeira diz respeito à premissa reducionista de que as críticas ao Vale-Cultura estariam voltadas à “preservação do patrimônio cultural tradicional” e dos exemplos - “baião tradicional”, “grupo de cateretê” e “samba de raiz” - que, em decorrência de tal premissa, elenca para contrastar com as opções artísticas eleitas pelo suposto mau gosto popular. Entre estas e aqueles se interpõe, com efeito, uma enorme gama de artistas, com maior ou menor ligação à indústria cultural, os quais ele ignora – limitando-se a mencionar, no contexto de uma comparação entre cultura popular e erudita, Chico Buarque (peraí, deixa eu ver se entendi... Chico Buarque, erudito?).“A preservação do patrimônio cultural tradicional não se resolve forçando o povão a consumir um baião tradicional a um tecnobrega, um grupo de cateretê a uma dupla sertaneja, um samba de raiz a um funk proibidão...(...).. Ampliar o leque, dando mais possibilidades de escolha para a sociedade é uma coisa. Guiar o consumo cultural para preservar uma imagem que uma elite intelectual dos grandes centros tem de como deveria ser a cultura brasileira é outra.”
E são justamente esses numerosos artistas de níveis, estilos e abrangência regional diversos que, se o governo se prestasse, de forma democrática, a fazer o seu papel de atuar como mediador cultural, azeitando a relação deles com o público, poderiam elevar quantitativa e qualitativamente o nível de consumo de cultura pelas classes menos favorecidas no país.
Sem a mínima intenção de fazer uma crítica fulanizada a Sakamoto – que é um jornalista sério, com um respeitabilíssimo histórico de denúncia de graves questões trabalhistas, incluindo o trabalho escravo –, mas no intento de apontar contradições inatas à posição que ele, como tantos outros, defende, gostaria de questionar seu conceito de elitismo, tão essencial ao artigo que é anunciado logo no título. Para ele, as críticas ao eventual destino que o beneficiário der ao Vale-Cultura têm “um lado elitista”. Concordo, têm mesmo, e este diz respeito a critério de gosto estético e à tentativa de imposição desse critério a outra classe social (Bourdieu puro).
Mas, ao descartar rapidamente, como se de uma batata quente se tratasse, qualquer análise do papel da indústria cultural, Sakamoto dá vazão, talvez inadvertidamente, a um elitismo ao meu ver muito mais grave e profundo, que diz respeito tanto a questões estruturais do mercado de bens culturais - e do lucro das corporações que nele atuam - quanto aos limites de ação de governos democraticamente eleitos em relação a tal mercado.
O retorno do oprimido
Trata-se de um daqueles debates que, embora as forças conservadoras brasileiras se esforcem para calar, de quando em quando retornam, como o oprimido de que nos fala Freud, para assombrar o presente e revelar a incipiência e a hipocrisia de nossa suposta democracia cultural.
Um dos momentos mais traumáticos de repressão a esse oprimido ocorreu, segundo pesquisadores como Dênis de Moraes, na ruptura do processo de alavancagem do nível de cultura das massas populares decretada pelo golpe de 1964 – por impedir, entre vários outros exemplos possíveis, que os Centros Populares de Cultura (CPCs) da UNE completassem a transição do realismo socialista para o realismo crítico. Tal fratura fez com que a participação das massas populares no hiato que Roberto Schwarz chama de “hegemonia cultural de esquerda” - que se deu entre o golpe e o AI-5 - não superasse os limites periféricos aos quais, com poucas e pontuais oscilações, elas estariam mais e mais confinadas ao longo das décadas seguintes.
A posição participativa de intelectuais como Moraes, Marcelo Ridenti e Carlos Nelson Coutinho – que, em entrevista publicada aqui, “continua defendendo uma cultura nacional-popular, comprometida com o exame crítico da realidade sociopolítica” -, entre outros, se contrapõe, por exemplo, à de Maria Sylvia Carvalho em seu ensaio sobre o ISEB (“Tempo de ilusões”) e, em diversos artigos e livros, à de Marilena Chaui – filósofa que, quando a questão do popular na cultura de massas retornou uma vez mais ao primeiro plano, em meados dos anos 70, exerceria uma posição crítica militante contra qualquer forma de ação paternalista por parte do governo (então militar), além de procurar desconstruir teoricamente o conceito de “massa” como entidade una e manipulável. Esse embate, como se vê redivivo, tem episodicamente voltado à tona e sendo novamente reprimido ao longo do tempo.
O mais recente retorno do oprimido deu-se no no início da madrugada do último dia 28, quando o jornalista Allon Feuerwerker, logo após recomendar publicamente (“retwitar”) o post de Sakamoto, perguntou, via Twitter: “Vale-cultura: pq tirar do pobre o direito de consumir lixo cultural, um direito garantido ao rico?”.
A que eu devolveria a pergunta (como de fato o fiz no Twitter, com outras palavras): “Pq privar o pobre do direito de NÃO consumir lixo cultural, um direito garantido ao rico?”.
O mito do dirigismo
Pois direito de consumir lixo cultural todos têm – e vão continuar tendo, pois o Vale-Cultura amplia opções, não as restringe. Mas, mais de meio século após a intervenção de Adorno e Horkheimer, será que alguém ainda acha que o povão que elege Latino, Tiririca e Kelly Key o faz por livre e espontânea vontade? Que lhe foi dada a oportunidade de conhecer outros estilos musicais e outras propostas artísticas, para daí fazer sua escolha?
Esses artistas só passaram a representar o “gosto popular” que o pseudoesquerdismo elitista defende com unhas e dentes após, à custa de muito jabá, terem tido suas encantadoras canções bombardeadas nos ouvidos do andar de baixo trocentas mil vezes ao dia, todos os dias!
Quer dizer, esse dirigismo cultural escondido, ilegal e insidioso é não apenas tolerado mas defendido. E por quê? Porque embora a rádio/teledifusão seja um serviço público e feito através de concessão pública, é considerada pertencente ao âmbito da iniciativa privada, que tudo pode; já o governo, como representante do poder público.... Devido a essa sutil diferença, a um é permitido, como citado acima, o obscuro, o ilícito e o manipulativo, enquanto ao outro é negado – sob a acusação de se tratar de autoritarismo - o direito de promover, às claras, um projeto de enriquecimento cultural de uma população de nível educacional sabidamente (sic) baixo, em comparação com o resto do mundo. Simples assim.
Destarte, tornou-se normal e plenamente aceito que a maioria de milhões de brasileiros cujo único meio de acesso à “cultura” é a TV aberta (que, convém lembrar uma vez mais, é uma concessão pública) seja diariamente submetida ao dirigismo “cultural” das grandes redes, aos datenas da vida e seus imitadores piorados (acredite, é possível) ou às novelas da Globo e derivados.
O mito do dirigismo é, portanto, um discurso de mão única: ele serve ao grande capital comunicacional, para que este adquira ainda maior liberdade de ação do que já tem, ao mesmo tempo em que reprime a adoção de qualquer medida efetiva que a tal capital ofenda por parte do governo.
Já a mera possibilidade de se criar alguma forma de direcionamento do entretenimento cutural popular por meio de ação governamental causa escândalo e protestos em setores supostamente formadores de opinião, que parecem – ou simulam parecer – não se dar conta de que repetem o mesmíssimo argumento das grandes corporações de mídia quando a administração federal faz menção de exercer seu direito legal de estabelecer parâmetros e regularizações para a atividade televisiva, como no caso da malfadada criação da Ancinav.
Será que esses críticos não se dão mesmo conta do quanto a satanização do “dirigismo” governamental, associando-o, dogmaticamente, ao stalinismo cultural, tem como contrapartida um dirigismo de facto, insidioso e adepto recorrente de práticas ilegais, comandado por grandes corporações de mídia, como abordado acima?
Paliativos, uma vez mais
Cai-se, assim, num relativismo excessivo e imobilizador, tributário não apenas do pós-modernismo, mas, sem que muitos o percebam, do neoliberalismo, em que se insiste na tecla de que não há parâmetro válido para a diferenciação valorativa entre produtos culturais, ao mesmo tempo em que se lega à indústria cultural a tarefa de impor os seus próprios valores, segundo os critérios (ou descritérios) que quiser.
Trata-se, ainda, uma vez mais, de uma medida do governo Lula que mantém intactos (ou melhor, passa a satisfazer ainda mais) os interesses do grande capital. Como colocou um blogueiro com o qual tenho muito mais divegências do que concordâncias,o Angry Brazilian, em diálogo via Twitter:
- “É mais fácil o governo mandar patrão dar 50 contos pra empregado e se eximir de fiscalizar um cinema que nos rouba, cobrando até 30 contos” – escreveu ele, emendando uma série de comentários que enfatizam o quanto o Vale-Cultura mantém intacta a capacidade da indústria do entretenimento, no Brasil, de insistir em seus preços abusiva e inexplicavelmente altos (em termos comparativos mundiais, registre-se) e em suas práticas extorsivas (como o cambismo oficial e o custo dos convidados VIPs sendo cobertos pelos otários pagantes).
Ficam duas perguntas. A primeira, que não cabe a mim responder, é: as pessoas que, por recusarem o “dirigismo”, se opõem a qualquer intervenção direta do governo para melhoria do repertório cultural popular estão satisfeitas com o nível cultural da população brasileira?
A segunda é: o Vale-Cultura, tal como está sendo proposto, despido de qualquer “dirigismo”, representa um avanço? Possivelmente, sim, mas um avanço com a marca contraditória da “Era Lula”, substancial se comparado às administrações anteriores, mas feito de medidas paliativas e que não alteram a estrutura do mercado de bens culturais. E que preservam, tanto na timidez com que asumem medidas pró-ativas para elevação do nível cultural das massas – por temer a acusação de dirigismo -, quanto na leniência para com as tarefas fiscalizantes e reguladoras de práticas e preços concernentes à indústria do entretenimento – por receio de contrariar o grande capital – um conservadorismo decepcionante e conformado, que não ousa transpassar os marcos regulatórios ditados pela ideologia neoliberal.
11 comentários:
Maurício,
É uma questão verdadeiramente complexa. Cá do meu cantinho, penso que o erro começa com o próprio nome do incentivo: "Vale-Cultura". Ora essa, Cultura é, convenhamos, um conceito por demais amplo que envolve o campo da ação humana desvinculado da sua dimensão animal - supondo que seja possível desvincular uma coisa da outra.
Adotando aqui um conceito de "Cultura" como produção artística e intelectual elevada, é preciso diferenciar uma coisa da outra: Já entrei em debates desse naipe antes e julgo que o essencial nisso tudo é diferenciar Arte de Entretenimento. É fácil? Não, não é. É conveniente? Muito menos.
Nós podemos cair numa demagogia liberalesca de que algum incentivo dessa natureza deve financiar "aquilo que as pessoas tenham vontade de ver", mas creio que seria razoável tentar entender as razões sociais do tecnobrega - ao qual Sakamoto se refere - é consumido - sim, esse é o termo - pelas populações de baixa-renda em detrimento de um forró pé-de-serra.
Até que ponto as pessoas realmente são livres para consumir isso? Até que ponto isso não é fruto de todo um contexto social que esmaga as tradições dessas populações camponesas que, note-se, foram praticamente expulsas de sua terra natal para trabalhar nos piores - e mais essenciais - empregos no Sul Maravilha sendo alienadas dos seus costumes originais ao mesmo tempo em que tem a lógica do consumo incutida na sua mente? Ou melhor, seria possível haver "tecnobrega" sem o consumismo?
Eis a questão: Entretenimento é produto de consumo que não deve sofrer, à princípio, estímulo estatal. Deve andar com as próprias pernas. Arte, tal como nós compreendemos a palavra hoje, é algo maior que transcende a questão financeira e mercadológica e, portanto, não só pode como deve ser financiada pelo Estado.
Não é uma questão de dirigismo, só uma questão de não misturarmos alhos com bugalhos.
Mau,
estava continuando nos esforços Confecom, e resolvi vir aqui pedir uma força (pra divulgar as etapas estaduais que acontecem daqui ha pouco, tipo, bota algo no teu blog...)
este post tem as últimas a respeito:
http://liberdadedeexpressao.net.br/2009/07/29/um-apelo/
Agora, ao ler este texto lindo, eu mesmo nesta correria fui obrigada a concordar em gênero número e grau, e acabei postando isto aqui procê:
http://algodao.algumlugar.net/2009/07/vale-cultura-para-ajudar-no-tal-do-debate/
Hugo e Flavia,
Após muito tempo, os dois primeiros leitores do blog aparecem em sequência, que alegria!
Hugo, concordo que há nuances entre cultura e entretenimento, mas, por mim, tudo bem o governo financiar entretenimento, desde que fiscalize as empresas produtoras de entretenimento. Esse laissez-faire cultural em pleno governo supostamente de esquerda é que não dá.
Flavia,
Estou repetidamente divulgando a agenda da Confecom - e o Liberdade de Expressão - no Twitter, que tem um ótimo alcance. Estou num período muito corrido, com mil afazeres, mas vou estudar a possibilidade de publicar um post sobre a Confecom.
Um abraço aos dois,
Maurício.
Oi Maurício,
Você expôs a problemática muito bem.
O dilema dos analistas/intelectuais de esquerda, quando se trata dos Tiriricas da vida, é abordar o problema sem mostrar desprezo pelo povo que consome os enlatados culturais, o que de fato é elitismo. O relativismo que é necessário reside tão somente no 'não desprezo' da coisa (curioso, estava eu a conversar com o Hugo sobre relativismo cultural agora há pouco).
O 'peixe grande', de fato, é o que fabrica a coisa. Nessa questão é preciso 'brizolar' e enfrentar a indústria cultural sem medo de ser feliz - 'botar a rede Globo pra correr', como dizia. Porém, as medidas drásticas que deveriam ser tomadas e os resultados que surgiriam somente a longo prazo são fortes empecilhos a uma política cultural que vá além de medidas paliativas.
Um abraço
Luis Henrique,
Adorei o "brizolar"! De fato, é preciso "brizolar" - e não só em relação a essa questão de políticas culturais, mas em várias outras. Tá faltando Brizola nesse governo Lula..ra,ra,ra!
Quanto ai dilema de não desprezar o povo, mas também não aceitar passivamente o péssimo nível educacional/cultural dele, concordo inteiramente.
Um abraço,
Maurício.
Caro Maurício.
Segundo o dieese, o salário mínimo necessário deveria estar em torno de R$ 2.046,99, enquanto essa cifra não for realizada, quem ganha R$465,00 mensais vai usar esse vale em suas nescessidades básicas como transporte e alimentação ou pinga barata mesmo.
Abraços.
Puebla
Caríssimo Puebla,
Pinga barata não deixa de ser cultura... de cana!
Necessidades básicas também são cultura, mas por ser este um blog estritamente familiar - e não um laboratório de análises clínicas - não vou me aprofundar (êpa) no assunto.
Grande abraço,
Maurício.
Gente, demorei pra conseguir ler tudo! Muito trabalho, perseguição nas mãos de fascistas espanhóis (amanhã posto sobre isso) e MUITO trabalho (eu já disse isso?)..
Mas, enfim, comento o belíssimo texto!
Começo de conversa, concordo, o uso do termo "cultura" é, no mínimo, um equívoco. Abre mão para ataques frontais da patrulha PIGiana e da classe-mérdia wannabe elite sobre o que é cultura.
Tudo bem, não sou hipócrita, pra mim gastar grana com show do Calypso é heresia mas via quer quer.
Vale, porém, diferenciar o que é indústria e ao menos o que é de raiz. Uma coisa é um grupo fabricado, enfiado goela abaixo da população e outra é a preservação da cultura histórica do país. MAs aí é outro assunto.
No fim, reafirmo, o nome cria uma problema, a idéia não bate no problema. A questão da cultura, do acesso, não es´ta em dar dinheiro ao pobre e sim em permitir que a cultura se torne acessível forçando os capitalistas à serem minimamente honestos (contradição em termos).
Quando atacados, osdonos de cinemas, casas de show e etc descontam na carteira d eestudante. Sempre existe mu m"mal" por detrás.
Cabe ao governo, se quiser patrocinar a cultura, coibir os abusos que vemos.
Porque será que compro um livro em inglês, seja pela Amazon, seja na cultura, e ele é MUITO mais barato que o em português?
Cabe ao govenrno agir, mas fica no paliativo.
Tsavkko,
Espera que tenha sobrevivido à ação contraterrorista espanhola (rs.)
"Classe-mérdia wannabe elite" é ótimo - e se apliaca a uns 40% da população do sul-sudeste.
Quanto a capitalistas serem minimamente honestos, só forçando muito mesmo, porque é da natureza da espécime a busca desenfreada pelo lucro - por isso que, como respondi ao Hugo, acho esse laissez-faire incompatível com um governo que almeja se situar entre o centro e a centroesquerda..
Maurício,
Muito bom o texto. Lendo, me surgiu uma dúvida. O cara vai poder sacar os 50 mangos ou tem de usar como se fosse um cartão de débito. Caso a segunda opção seja a correta, fiquei pensando que isso pode acabar gerando uma política de combate à pirataria. Claro, porque o camelô que vende o cd do Callypso não vai aceitar o cartão. Então o camarada vai ser obrigado a gastar com algo diferente.
Meu sonho é um dia fazer esse povão que você citou logo no começo, ao mencionar as estatísticas, entrar num Sesc e descobrir que ali tem coisa muito boa de graça ou até por um preço ínfimo.
Abração,
Rapha
Raphael,
Acho que vai ser como um cartão de débito, teoricamente só passível de ser usado em estabelecimentos culturais credenciados. Agora, não se deve duvidar da capacidade criativa de nossos valorosos camelôs (e quanto ao "valorosos" não estou brincando, afinal estão lutando para sobreviver e não têm culpa que o povo goste do Callypso).
Quanto ao SESC, realmente, só teriam a ganhar se o descobrissem.
Um grande abraço,
Maurício.
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