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terça-feira, 28 de julho de 2009

O “Colunismo Negativista” de Clóvis Rossi

O dia 12 de julho deveria ser decretado comemorativo para o jornalismo nacional. Nessa data, o colunista da Folha de São Paulo Clóvis Rossi surpreendeu a todos fazendo, numa mesma coluna – intitulada "No topo do mundo, mas solitários" -, não apenas uma saudação congratulatória ao Brasil mas, pasmem, um elogio explícito ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Como não poderia deixar de ser, há ironia ferina no modo como Rossi, 66 anos, saúda o ingresso do Brasil no G14: "Palmas para o Brasil, que acaba de ser lançado ao topo do mundo, o tal de G14 (por enquanto 14, mas sabe-se lá em que número vai parar)", mas ela é menos evidente nos elogios à determinação de Lula para fazer o país ingressar no grupo decisório, agora expandido, dos países mais ricos do mundo.

O duplo elogio, raríssimo – quiçá inédito – na produção diária de um colunista que é com frequência acusado de rabugice e de intransigência para com o governo federal, ocupa quase 20% do espaço da coluna (323 dos 1687 caracteres do texto). Ao final do segundo parágrafo, Rossi volta a si e, como que justificando a conjunção adversativa do título da coluna, proclama: "Chega de palmas e vamos às vaias".

O "Jornalismo do ‘mas’"
Trata-se de mais um exemplo do "jornalismo do ‘mas’", expediente recorrente na Folha de S. Paulo durante a "Era Lula", segundo o qual quando o jornal comete a ousadia de se permitir um elogio às autoridades ou ao governo, ele quase sempre é seguido de críticas que o minimizam ou contradizem. Tem ocorrido com tal frequência e até nas manchetes de capa que constitui tema potencialmente prolífico não apenas para matérias analíticas, mas para pesquisas acadêmicas de maior fôlego.

Está implícita nessa lógica do "jornalismo do ‘mas’" uma visão negativista da prática jornalística, sintetizada na famosa frase atribuída a Millôr Fernandes segundo a qual "Jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos & molhados". Sob a administração do diretor de Redação Octávio Frias Filho, tal lógica tem sido levada ao paroxismo. E, embora Rossi fosse muito próximo do pai do atual publisher, Octávio Frias de Oliveira – a quem costumava chamar de "o sábio que habita esta Folha" –, ele teria se tornado, nos últimos anos, como aponta com alguma frequência o jornalista e por anos colega de trabalho Luís Nassif, o mais fiel seguidor dessa política que se baseia quase que exclusivamente na crítica negativa.

Mas as raízes da mudança de Rossi para uma postura niilista e com traços de sisudez têm motivos mais profundos e de maior dimensão histórica. Não é mera coincidência que tais mudanças tenham se tornado perceptíveis mais ou menos na época da derrocada do socialismo soviético, simbolizada pela queda do Muro de Berlim. A débâcle das esquerdas em âmbito mundial marca um ponto de inflexão na postura analítica de Rossi – suas colunas dos anos imediatamente seguintes sugerem um sentimento de rancor para com o ideário esquerdista, como se de traição pessoal se tratasse. Ao mesmo tempo, ocorre não apenas a radicalização de uma postura (a princípio saudável, quando não radicalizada, o que é o caso) de absoluto descrédito em relação às ideologias, mas também a adoção, de forma acintosa, do deboche para com elas como postura crítica recorrente.

Colunismo negativista
Não há como precisar se e a que nível o desgastante período final do regime militar e a titubeante retomada democrática também o afetaram, mas o certo é que foi durante esse longo período que se solidificou uma sua característica crítica que constitui atualmente, na minha opinião, o mais grave problema concernente ao ocupante da coluna "São Paulo", da Folha: um forte sentimento anti-Brasil (para utilizar o conceito que o notável Janio de Freitas usa para se referir à presidência de FHC) e a retroalimentação do complexo de inferioridade do país. Estes tomam forma com frequência, tanto em comparações pontuais com aspectos positivos dos países que, como repórter internacional, visita quanto na utilização recorrente da jabuticaba como metáfora para tudo que, segundo ele, só o Brasil produz – de ruim, é claro.

Utilizando de forma maniqueísta tal metáfora, desprezam-se as qualidades de um fruto a cujo sabor delicioso soma-se o prazer sensorial de espocá-la entre os dentes, antes que o rico sumo inunde o palato (para não mencionar as delícias do prazer lúdico-infantil de colher jabuticabas no pé). De forma análoga, Rossi, recorrentemente, negligencia avanços comprovados da economia e da ordem social brasileira em prol de uma visão invariável e exclusivamente negativa do país.

Tal operação baseia-se num modelo analítico no qual tem pouca ou nenhuma importância os dados da economia real ou as conquistas da sociedade civil. Ambos são relativizados através de quatro estratégias argumentativas principais:

1) A ênfase nos problemas socioeconômicos que permanecem, mesmo após eventuais
avanços (como se possível fosse reverter a brutal assimetria que caracteriza o
país no espaço de um ou dois mandatos);

2) A comparação com aspectos positivos de nações mais desenvolvidas, sem contextualização alguma;

3) A comparação entre as conquistas de determinada administração e as promessas de campanha do respectivo candidato (esta estratégia torna-se recorrente com Lula; com os governantes anteriores foi utilizada com extrema parcimônia);

4) E, sobretudo, a persistência da corrupção, este um tema obsessivo de Rossi, pois, endêmica, funciona como um álibi que lhe permite sempre criticar, e com razão, o governo – qualquer governo.

Não há como negar que se trata de quatro dos mais graves problemas do país, assim como não dá para negar que são problemas só solucionáveis a médio ou longo prazo. Além disso, não é preciso ser nenhum gênio para notar que tais critérios criam uma fixidez avaliativa que não só não permite levar em conta as alterações temporais nas conjunturas às quais está submetida determinada administração, mas impede o reconhecimento de eventuais avanços por esta alcançado.

Exemplos concretos: durante o primeiro mandato, a administração federal criou 7,5 milhões de empregos. Para Rossi, isso é avaliado negativamente, pois Lula prometera criar 10 milhões de vagas; o bolsa-família (que ele, como a maioria dos colunistas da Folha, trata pejorativamente) tirou quase 40 milhões de pessoas (11.250.623 famílias, segundo dados oficiais) da miséria ou da pobreza; para Rossi isso nada significa, pois, como repete à exaustão, o lucro do capital continua superando o lucro do trabalho. Ou seja, alhos misturados a bugalhos.

Não que tal negativismo do colunista seja voltado exclusivamente a Lula. Na “Era FHC” – sobretudo no segundo mandato – Rossi foi dos mais enfáticos críticos da administração do então presidente. Acontece que com Lula tais críticas parecem mais recorrentes e mais cheias de azedume – além de muito raramente direcionadas a outros políticos, particularmente ao governador José Serra (o que não seria de se esperar de um colunista que ocupa uma coluna intitulada “São Paulo”, mesmo sendo esta prioritariamente voltada à análise da conjuntura política nacional).

Essa ausência de parâmetros comparativos condizentes, substituídos pela supremacia do criticismo exclusivamente negativo, leva o colunista a fomentar, como já dito, um sentimento anti-Brasil e um complexo de inferioridade do brasileiro em relação ao resto do mundo. Faz, ainda, com que ele emita opiniões por vezes esdrúxulas, pois sem correspondência na realidade. Para ficar só em exemplos recentes – por conta das acusações de corrupção contra Sarney, ele afirma que o Brasil é pior do que uma república bananeira e que deve desculpas a estas por ter comparado o país com elas (coluna "É puro deboche, de 15/07); que "A África é aqui" (título da coluna de 16/07), afirmação que negligencia dados oficiais e qualquer outro parâmetro de comparação que não a alegação de o Brasil não ter, segundo ele, instituições fortes; por fim, como um último exemplo, na coluna analisada na abertura deste artigo, ele corrobora o dito de Fernando Henrique Cardoso de que o Brasil seria um país caipira, pois voltado ao próprio umbigo e com poucos participantes no fórum de Davos...

Luís Nassif, em seu blog, livre das amarras de uma propalada e questionável "ética profissional" vigente na "grande mídia" segundo a qual "colega de profissão não fala mal de colega de profissão" tem produzido, amiúde, críticas diretas aos textos de alguns colunistas, os quais disseca analiticamente, aponta contradições e contrapõe argumentos. Dora Kramer, o "professor de Deus" Alexandre Schwartsman e o colega de Rossi na Folha, Valdo Cruz, estão entre os que receberam a atenção do blogueiro. No último domingo (19/07), ele analisa a coluna que Rossi publicara naquele dia, intitulada "É proibido silenciar" e na qual, lamentando que no Brasil alegadamente não exista a cultura do "accountability" (prestação de contas) da parte de servidores públicos, evidencia o complexo de inferioridade ao qual me referi acima.

"Por que o "accountibility" demorou vinte anos para ser praticado em relação à Sarney e só se manifestou agora? E por que a Folha deu vinte anos de espaço a Sarney sem jamais tê-lo cobrado por seus atos? E por que a cobrança é apenas sobre Sarney, se todos os senadores participaram de uma lambança que tem no mínimo 14 anos?" – pergunta Nassif.

Notáveis coberturas internacionais
O talento e o currículo de Rossi são indiscutíveis quando se trata de coberturas internacionais, área em que atua há 36 dos 40 anos dedicados ao jornalismo, tanto pelo Estadão (onde foi editor-chefe) quanto pela Folha, sendo que nesta foi correspondente em Madri e em Buenos Aires (ele trabalhou ainda no Jornal do Brasil, onde exerceu outras funções). Assinou matérias de alta qualidade, como as relativas aos primeiros encontros do Fórum Econômico Mundial em Davos (Suiça) e aos atentados terroristas em Madri, em 2004 (na qual, como assinalou Carlos Chaparro em texto reproduzido no Observatório da Imprensa, "produziu uma cobertura de valiosa densidade interpretativa").

Rossi forneceu, ainda, em algumas colunas memoráveis, uma visão mais pessoal e crítica dos temas internacionais tratados, como em "Auto-retrato em corpo alheio", em que, por ocasião da Declaração sobre a Comunidade Sul-americana de Nações, em Cusco (2004), analisa a devastação social que o neoliberalismo produzira no país, ou, como voz virtualmente solitária, na corajosa analogia entre os métodos israelenses e os nazistas na coluna "Massacre no gueto de Gaza" (30/12/2008).

Sua excelência na editoria internacional – que lhe valeu o prestigioso prêmio Maria Mors Cabot em 2001 - fica uma vez mais evidente na coluna do último sábado (18/07), "Os EUA vão para o spa", em que expõe e analisa, com grande capacidade de síntese, as novas diretrizes básicas da economia norteamericana, mais voltadas à exportação do que ao consumo e com claras preocupações ecológicas.

Avaliação histórica
Mas, se o correspondente internacional tem seu nome inscrito na história do jornalismo brasileiro, é incerto como essa mesma história julgará o colunista de política Clóvis Rossi, que ao negativismo e à intransigência que de ordinário o caracterizam (manifestadas não apenas nas colunas, mas na forma agressiva com que responde a leitores que ousam questioná-lo), vem acrescentar a forma anacrônica e mais uma vez ríspida com que se relaciona com as novas mídias (que a maioria dos jornalistas de ponta reconhece como um importante fórum de debate), as quais insiste em desqualificar com afirmações preconceituosas e genéricas - que acabam por sugerir receio ou desconhecimento.

Não fosse pela coluna-exceção referida na abertura do texto, quem acompanhasse o Brasil da "Era Lula" a partir da coluna de Clóvis Rossi teria a impressão de que atravessamos um período negro da história brasileira, e não uma fase de redução substancial das desigualdades sociais – bandeira histórica da esquerda que nenhum presidente conseguiu tornar efetiva nas bases atuais -; de bom desempenho econômico reconhecido pela maioria dos economistas; de uma administração federal aprovada por 67% da população e chefiada por um presidente com 80% de aprovação pessoal, para ficar em apenas três exemplos. Como a história julgará um colunista de política que se recusa a reconhecer tais fatos, enfatizando apenas os aspectos negativos – que também são consideráveis - do governo de turno?

(Originalmente publicado no Observatório da Imprensa em 21 de julho. Fiz modificações.)

4 comentários:

Claudio Costa disse...

Boa expressão: 'colunismo negativista', típico dos tempos de hoje... Os fatos? Ora, que se danem.

Unknown disse...

Os fatos são o de menos, Claudio, mesmo porque, na excelente definição de Bernardo Kucinsky:

"A elite dominante é, ao mesmo tempo, a fonte, a protagonista e a leitora das notícias; uma circularidade que exclui a massa da população da dimensão escrita do espaço público". (Citado em artigo de Venício A. de Lima: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=548IMQ001).

Hugo Albuquerque disse...

Maurício,

Já havia lido a primeira versão desse post lá no Observatório e tenho muito pouco a acrescentar até pelo fato de que não acompanho o trabalho de Rossi tão de perto - só lembro de tê-lo lido algumas vezes e me pareceu enfadonho e impreciso em suas análises.

A sua leitura da decepção com a URSS não me parece equivocada pelo que já li dele. Creio que se deva muito mais a extremismo do que a radicalismo: Os extremistas são assim mesmo, tendem a fazer esse movimento político pendular ao longo da vida, o que só é um reflexo da própria - e intrínseca - instabilidade intelectual ou até moral do seu posicionamento extremista - na minha geração, tudo acontece mais rápido, já vi isso acontecer com amigos meus.

Você lembra bem o fato de como esse uso reiterado das conjunções adversativas se tornou uma das muitas pragas da imprensa escrita brasileira; e olha que isso não ocorre apenas em relação ao Governo Lula, mas também em relação a toda sorte de massacres como os de Israel e afins - Gaza foi bombardeada hoje, mas tudo começou por conta dos palestinos.

Ademais, essa frase atribuída ao Millôr - "Jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos & molhados" - é um belo dum sofisma, é provável que soasse bonitinha nos tempos da ditadura, mas, hoje, ela serve no máximo para que algumas pessoas que trabalham na mídia consigam encostar a cabeça no travesseiro...

Unknown disse...

Hugo,

Lembrou bem, o "jornalismo do mas" tem, há tempos, na cobertura da violência no Oriente Médio o seu momento-mor. Tem sempre um "mas" pra "justificar" mais atrocidades...

Quanto ao Millõr, concordo em gênero, número e grau: o que era subversivo virou uma muleta para o mau jornalismo.