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terça-feira, 14 de julho de 2009

Michael Jackson e a necrolatria coletiva

(Imagem retirada daqui)

Assim que foi anunciada a morte de Michael Jackson, a mídia mundial ocupou-se da tragédia com uma voracidade que talvez só encontre paralelo na morte da princesa Diana, em 1997. Teve início então um grande show cibernético/televisivo, com imagens de arquivo do ídolo pop misturadas a cenas de fãs em pranto, que por sua vez davam lugar a reportagens especulativas sobre as causas da misteriosa e repentina passagem, aos 50 anos de idade, de um artista ainda capaz de performances atléticas.

De início, a internet comandou o espetáculo. Anunciada em primeira mão por um pequeno site de entretenimento e fofocas sobre celebridades - chamado x17online.com -, a notícia quadruplicou o tráfico na rede mundial de computadores, “travou” ou tirou do ar dezenas de sites e colocou o nome do cantor, compositor e dançarino nas primeiras posições em virtualmente todas as principais ferramentas de busca, Google à frente. Em números absolutos – mas não percentualmente - o evento foi mais impactante na rede do que os atentados terroristas de 11/09, superando com folga a repercussão provocada pela morte da última grande celebridade mundial, a princesa Diana.

E convém lembrar que Diana não tinha contra si, ao contrário de Jackson, a ira ou o desprezo de parcelas consideráveis da opinião pública, que as arraigadas suspeitas de pedofilia legaram ao norteramericano. Se despertou compaixão como a esposa desprezada, humilhada publicamente sob a pompa dos cerimoniais reais, soube, por outro lado, tornar-se admirada pela coragem e determinação com que conduziu o divórcio, confrontando a família real, reconquistando a independência. A transição vivenciada por Lady Di, de esposa oprimida à diviorciada livre e bem-sucedida, simboliza a própria trajetória da mulher no século XX. Com um charme ímpar e uma elegância natural, era uma espécie de Jackeline Kennedy dos anos 90, com a vantagem de contrastar seu charme plebeu não com o mais carismático dos presidentes norteamericanos, mas com a mais decadente das instituições de poder: a realeza britânica. Sua morte, também abrupta, interrompera uma trajetória ascendente em termos de reconhecimento popular – como a queda-de-braço post-mortem com a família real por conta de seus funerais, tão sugestivamente reencenada no filme A Rainha (The Queen, Stephen Frears, 2006), torna evidente.

Sucesso e decadência
A trajetória de Michael Jackson desenha outra linha no gráfico da vida e da fama, na forma de um V invertido, com o pronunciado ápice a meio caminho entre a escalada inicial rumo ao sucesso e a lenta decadência das últimas duas décadas .

A infância pobre, desprovida de seu espaço específico de ludicidade e lazer – substituído pela rotina massacrante de ensaios impingida pelo pai/empresário – o leva à condição de garoto-prodígio dos Jackson 5, mais um dos tantos grupos de sucesso do cast da meca da música pop negra norteamericana, a gravadora Motown. Aos 14 anos parte para uma carreira solo concomitante à atuação no grupo, de início mediana e de sucessos eventuais (Ben, Music and Me), seguida de sua estréia como ator em 1978, no papel do espantalho numa versão afroamericana e musicada de O Mágico de Oz, dirigida pelo prestigiado Sidney Lumet e protagonizada por Diana Ross, uma misto de madrinha e de melhor amiga de Michael até o fim de seus dias. A colaboração com o maestro Quincy Jones inicia-se com festejado álbum Off the Wall (1979), que estoura nas paradas norteamericanas, mas é no disco seguinte, Thriller (1983), que Michael torna-se um fenômeno mundial.

Fenômeno esse que combina letras inventivas, às vezes malandras, a melodias “pegajosas”, com forte pegada rítmica, valorizadas pela criativa produção de Quincy Jones e pelo uso intenso do videoclip de uma forma que nenhum artista ousara antes, produzindo clássicos do gênero, que divulgariam passos de dança copiados por jovens de todo o mundo e tornariam evidente o excepcional dançarino que Michael era. Ele torna-se então um artista de projeção mundial, uma espécie de blockbuster da música pop, para usar a terminologia utilizada no âmbito cinematográfico para designar as megaproduções que angariam todo tipo de público (fenômeno que se iniciara seis anos antes , com o lançamento de Star Wars, de George Lucas). Thriller se torna o álbum mais vendido da história da indústria fonográfica, com 106 milhões de cópias comercializadas no mundo até 2005, e Michael um artista capaz de lotar estádios em virtualmente qualquer lugar do planeta.

Mas o que parecia ser o desabrochar de uma trajetória altamente promissora de um artista de primeira grandeza revelar-se-ia, nos anos seguintes, seu efêmero cume. Tanto do ponto de vista artístico e comercial quanto, sobretudo, em relação à sua vida pessoal, nos anos seguintes e até a sua morte, Michael entraria numa espiral negativa e jamais repetiria as performances memoráveis da “Era Thriller”. Seus discos de inéditas seguintes oscilaram entre repetições em escala menor de uma fórmula agastada e tentativas malsucedidas de inovação, e ainda que, assim como as sucessivas coletâneas, continuassem a vender muito, não atingiam nem metade dos números obtidos por Thriller: os álbuns Bad (1987) e Dangerous (1991) ainda conseguem atingir por volta de 40 milhões de cópías cada um, mas Blood on the Dance Floor (1997) e Invincible (2001) ficariam em torno de 15 milhões de cópias vendidas por título.

Ao mesmo tempo, as acusações de pedofilia – que se oficializam pela primeira vez em 1993, embora antes já circulassem rumores a respeito - se multiplicam nos 15 anos seguintes, afetando sua imagem, migrando-o dos cadernos de cultura para as páginas policiais e capas dos tablóides, e dilapidando boa parte de sua fortuna em custos e acordos judiciais. Além disso, parecia haver algo de sinistro por trás das profundas transformações em sua aparência física, com o embranquecimento radical da pele e as sucessivas plásticas faciais sugerindo uma psique perturbada, como que confirmada pelas bizarras situações em que volta e meia seria flagrado (no ambiente infantilizado que criara para si no seu rancho sugestivamente chamado Neverland; brincando perigosamente com seu filho Jackson II ainda bebê numa sacada de um prédio alto; vestido de mulher num banheiro em Bahrein; gastando U$10 milhões de dólares em compras numa tarde). Por fim, daria-se o outrora inacraditável anúncio de sua falência.

A morte como espetáculo
Essa dark face do ídolo, que foram o tema recorrente que a menção a seu nome costumava despertar nos últimos 15 anos, como que desapareceu por encanto com o anúncio de sua morte, dando lugar a uma espécie de “sessão nostalgia”, a um tempo celebratória e fúnebre. Michael voltou a ser referido como “um menino-prodígio”, “o artista maior”, “o maior dançarino de todos os tempos”. Nos quatro cantos do mundo, hordas de fãs improvisavam altares repletos de bilhetes e flores; 1,6 milhão de pessoas no mundo todo disputaram a tapa os 17,5 mil ingressos para seu velório - na verdade, um xaroposo e tipicamente norteamericano show fúnebre - enquanto nas multidões que ficaram de fora muitos choram copiosamente em frente às câmeras. A necrolatria se revela como neurose coletiva.

O Brasil é familiarizado com o fenômeno: a morte violenta de duas crianças no ano passado, o velório interminável, medido em semenas, de Ayrton Senna; a longa vigília por Tancredo Neves; Carmen Miranda, antes acusada de “americanizada”, voltando dos EUA em um caixão para uma cerimônia fúnebre apoteoticamente popular.

Também a santificação automática post-mortem é nossa velha conhecida. Para citar só dois dos mais gritantes exemplos: Roberto Marinho e Antônio Carlos Magalhães, vulgo Malvadeza, que por décadas foram dois dos maiores vilões, respectivamente, da mídia e da política nacionais, só faltaram ser canonizados ao falecerem. O "jornalista" Pedro Bial chega a escrever um livro para bajular o ex-patrão e aproveitar o fenômeno fúnebre.

No caso de Michael, até a pedofilia foi temporariamente despida de sua natureza abjeta e tematizada na piada algo profana, mas de uma mordacidade inocente - que circulou na internet horas após sua morte -, segundo a qual a primeira pergunta de Jackson, ao chegar ao céu, teria sido onde estava o Menino Jesus...

A Mídia como indutora da histeria necrólatra
O ombudsman da Folha de São Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva, que criticou a cobertura que o jornal dispensou à morte de Michael Jackson, reconhece o papel da mídia nessa catarse necrólatra como nutridora do apetites histéricos populares. Referindo-se às idéias defendidas por Richard Sennett no livro O Declínio do Homem Público, assinala que:

“A mídia eletrônica, ensina Sennett, insufla esse ânimo coletivo que exige dos famosos um "strip-tease psíquico" público permanente (no caso de Michael Jackson, chega até o túmulo). E o faz porque a sociedade assim deseja. O jornalismo impresso deveria ser um contraponto de civilidade. É uma pena que esta Folha pareça se recusar a exercê-lo.”

A reflexão mais importante para o jornalismo diz respeito justamente à ligação entre cobertura midiática e retroalimentação desse processo de necrolatria coletiva, mesmo porque tal ligação pode estar, paradoxalmente, afetando a imagem pública da imprensa, como o demonstra o fato de que tanto em relação a Diana como a Michael Jackson a mídia foi citada - no caso de Diana, judicialmente – como diretamente responsabilizada pelas mortes: em relação à princesa, devido à perseguição que os papparazzi, na ânsia pela imagem vendável, teriam feito ao carro em que ela se encontrava; no de Jackson, justamente pelos efeitos alegadamente devastadores, em sua vida pessoal, do strip-tease público de que fala Sennett.

Ilhas de sensatez
No histerismo que caracterizou, de modo geral, a cobertura da morte de Michael Jackson, dois depoimentos formaram um oásis de sensatez e sobriedade. O primeiro foi a declaração da jornalista Glória Maria ao noticioso Em Cima da Hora, do canal a cabo Globo News, em que ela descreve as impressões colhidas do convívio com Michael por ocasião da filmagem no Brasil do clip da música They Don’t Care about Us. “Fragilidade” foi a palavra mais utilizada pela ex-apresentadora do Fantástico para descrever o artista, que segundo ela, embora se mostrasse gentil e interessado, interagindo com seus coadjuvantes brasileiros, aparentava estar muito doente, sendo visíveis os danos que o vitiligo produzira em boa parte do seu corpo e sua fadiga intermitente.

O outro exemplo vem da coluna de Carlos Heitor Cony intitulada “Modos e Modas”, publicada em diversos jornais do país no último dia 30. Sem a intenção de redigir um obituário, o jornalista produz uma análise sucinta do talento essencial de Michael, em perspectiva histórica: “Afirmo e reafirmo que ele é superior a Fred Astaire, até então o maior bailarino do audiovisual de nossa era” (...) Inventou uma expressão corporal que transcende a expressão musical (...) O detalhe da bengalinha, dos farrapos e do chapéu-de-coco em Chaplin tem equivalentes no mocassim e nas meias brancas de Michael Jackson – um detalhe que poderia parecer cafona, mas nele é marca de uma personalidade fora de série”.

No entanto, a trajetória de Michael - ao contrário, por exemplo, da princesa Diana (para utilizar o mesmo modelo comparativo utilizado no início do artigo) -, se analisada detidamente, não oferece justificativas sociais convincentes que ajudem a explicar o enigma de seu culto, para além dos limites do fascínio que desperta sua própria arte, há tempos decadente. Além do peso das reiteradas acusações de pedofilia – das quais nunca foi capaz de se dissociar de modo convincente, muito pelo contrário -, Jackson foi talvez o artista que mais teve em suasmãos o poder de brandir a bandeira da negritude como instrumento de afirmação racial – mas, sem que ele próprio tenha permitido saber se por opção pessoal ou em decorrência do vitiligo, o fato é que sua imagem ficou paras muitos ligada à negação de sua própria raça. Até a trajetória da pobreza para o sucesso milionário através do trabalho duro reverteu-se contra ele, não apenas pelos declarados traumas que a “ausência de infância” lhe causara, mas pela extrema futilidade com que administrou sua fortuna, a ponto desta alegadamente se esvair em dívidas ao final de sua vida.

Mas enquanto muitos ao redor do mundo ainda o velam, Michael Jackson, morto, volta ao topo das paradas.


(Originalmente publicado n’ Observatório da Imprensa em 07/07/2003. Fiz algumas modificações).

7 comentários:

Raphael Tsavkko Garcia disse...

Hoje tudo é espetáculo. Sem exceções. Com a internet vemos apenas a exacerbação deste fenômeno.

O esvaziamento geral de mentes é impressionante, é inconcebível que a morte de um cantor - ok, ele era incrível, mas não é pra tanto - tenha mais ibope e repercuta mais em todo e qualquer lugar que o golpe em Honduras, a fraude no Irã, o genocídio dos Uigures... Todos ao mesmo tempo!

MJ foi mais notícia que isso e tudo mais.

Todo acidente, desastre, morte e afins pode e vira um espetáculo, lembrem-se do avião da Air France, hoje ninguém mais fala no assunto, surgiu um espetáculo maior e "melhor".

É lamentável.

Unknown disse...

É, Raphael, "o esvaziamento geral de mentes é impressionante", sem dúvida. Mas talvez o que falte seja a discussão do porquê de tal esvaziamento ter-se dado num período histórico tão curto (se compararmos a geração mais letrada e culta dos anos 60 às atuais).

Tenho uma opinião muito particular em relação a isso. Acho que o golpe de 1964 interrompeu a discussão de alguns temas essenciais ao futuro do Brasil, entre eles os modelos de educação pública, o papel do Estado na produção de cultura, e o que exigir, em relação à educação e cultura, das redes televisivas, que, como todos o sabemos, são concessões públicas.

O quarto de século que se seguiu à ditadura não foi capaz de retomar tais questões, muito pelo contrário - assistiu à (quando não colaborou para) estigmatização de tais temas como retrógrados, conservadores e até intervencionistas (imagine um governo central interferir hoje na programação da Rede Globo...). Deu no que deu.

Raphael Tsavkko Garcia disse...

com a análise. A quebra isntitucional de 64 acabou por facilitar este esvaziamento. Pais vazios criam filhos normalmente vazios, pelo menos via de regra e a época do regime, por mais contestação que houvesse dos setores de esquerda, pouco mobilizou a franca maioria da população que era aculturada e imbecilizada sem sentir.

Raphael Tsavkko Garcia disse...

Opa, "Concordo com"

Flavia disse...

Isso mesmo, Mau

Só pra fazer um paralelo, durante o protesto contra a ditabranda na frente da folha, muitas pessoas comentavam o número pequeno de pessoas dizendo que achavam que as pessoas tinham medo de comparecer. Eu dizia, não, não é medo, é apatia, é uma herança muito mais perversa da ditadura e dos anos que se seguiram de lavagem nos jornais e construção de um estereótipo "histeriquinho sem rumo" do esquerdista. As pessoas acreditam que todo movimento social tenha manobra, que todo evento politico tenha segundas e terceiras e quartas intenções de partidos e se consideram menos iludidos quanto menos participam. É esta, supoonho, a herança. A única comoção pública que somos capazes é pelo Airton, pela morte da menina que caiu do predio, etc. Por, digamos assim, fatos nús e crús como a morte. Nunca por fatos "simbólicos" como a ditabranda ou a liberdade de expressão ou o que o valha.

Flavia disse...

ah, e também pelo terror de "bases científicas", como a gripe suína.

Unknown disse...

Ah, sim, Flavia,

A religião da ciência é uma das que produz mais seguidores fanáticos, incluindo muitos ateus (sei que vc é ateia - que palavra horrível! - mas é das poucas que conheço que não segue o fundamentalismo científico).

Sem dúvida, o fator principal da recusa em exercer participação política efetiva não é o medo (embora ele exista; eu mesmo confesso que fiquei temeroso quando cheguei no protesto da ditabranda e vi que havia tantos policiais). É esse misto de apatia e descrença de que você fala. Isso é um problema sério, porque largos setores da juventude, sobretudo na classe média, "sofrem" desse mal.