A crença atávica no
encarceramento como punição ao crime, retroalimentada pela mídia,
somada à abordagem criminalista da questão das drogas e à
criminalização da pobreza tem levado à saturação do ambiente
prisional brasileiro, com cadeias não dando conta da demanda por
vagas e se transformando em verdadeiros depósitos de presos,
comprimidos em um espaço físico planejado para abrigar um número
bem menor de indivíduos e sujeitos a toda sorte de violência e
violação de direitos – e, pior: sem que se assista à
contrapartida de tal processo, na forma de redução dos índices de
criminalidade
Durante a década de
90, o sociólogo Loïc Wacquant demonstrou, de forma documentada,
como, nos EUA, a exclusão do mercado de consumo equivalia à perda
da cidadania e à sujeição a um processo de criminalização social
que, com parte do sistema prisional privatizado, multiplicou
exponencialmente o número e a porcentagem de presos no país,
afetando notadamente as comunidades negras e latinas. Resguardadas as
devidas diferenças, o Brasil assiste, hoje, ao desenrolar de um
processo similar.
Paradoxalmente,
enquanto mais mais presos são encarcerados em condições
sub-humanas, um discurso caro ao conservadorismo brasileiro,
irradiado a partir dos programas sensacionalistas da TV - leia-se
Datenas e seus imitadores – e que se populariza de forma evidente,
alardeia que a certeza da impunidade estaria no cerne das razões
para o aumento dos índices de criminalidade.
Obsessão punitiva
O juiz Marcelo Semer,
em artigo recente sobre a questão da diminuição da idade mínima
de imputabilidade penal – uma alegada panaceia reavivada a cada
crime praticado por adolescentes -, assinala que "A ideia de que
a criminalidade está vinculada a uma espécie de 'sensação da
impunidade' jamais se demonstrou, tanto mais que a prática de crimes
tem crescido junto com a encarcerização. A tese oculta uma
importante variável: o fator altamente criminógeno do ambiente
prisional, que é ainda maior quando se trata de jovens em
crescimento."
Em um país fraturado
pela miséria e no qual a repressão periférica como política de
Estado faz parte do cotidiano policial do país, o agravamento das
condições de segurança nos grandes aglomerados urbanos, açulado
pelo tratamento sensacionalista do tema na mídia, tem feito com que
ganhem força os ataques dos setores conservadores à defesa dos
direitos humanos - por eles chamados de “direitos de bandidos”,
como se as condições sub-humanas do sistema prisional brasileiro e
a tortura institucionalizada nas delegacias e prisões – silenciosa
e tacitamente aceita pela sociedade, ao contrário do que ocorrera em
relação aos presos políticos - permitisse supor alguma ligação
entre obediência a direitos humanos (de resto, rotineiramente
negligenciados) e aumento de crimes.
Nesse quadro, chega a
ser exasperante constatar que os Direitos Humanos, pelos quais a
humanidade se bateu durante séculos, pagando um alto custo em
sofrimento e cadáveres, não seja compreendido como uma conquista de
todos, mas como um empecilho à sacrossanta missão de punir. Em
decorrência, como assinala a pesquisadora Helena Singer, “os
discursos e as práticas sobre os direitos humanos não chegam à
população sob a forma de igualdade, felicidade e liberdade, mas sim
de culpabilização, penalização e punição, integrando um
movimento mundial de obsessão punitiva crescente”.
Reação
Na
contramão desse movimento retrógrado e de manada encontram-se ONGs,
profissionais da Justiça, criminologistas e pesquisadores que lutam
para a reversão desse quadro de obscurantismo e vêm dialogando e
fazendo uma espécie de mediação com o poder de forma a reverter a
situação.
Entre
as medidas anunciadas recentemente encontra-se o relatório "Sistema
Penitenciário medieval: 10 medidas urgentes", elaborado pela
Conectas em parceria com outras ONGs. No dia 27 de novembro de 2012,
o documento foi entregue à Câmara Federal, em Brasília, e
atualmente seus organizadores tentam agendar uma reunião com o
governador Alckmin, que já deu mostras mais do que suficientes do
pouco apreço que nutre pelos Direitos Humanos e cujo governo é acusado de valer-se do recurso à prisão provisória como forma de controle da população de rua.
"A
situação nos presídios do Brasil hoje é caótica, desumana,
covarde e tem um único culpado: o poder público, o Estado, que
permitiu que as coisas chegassem neste estado" – relata Marcos
Fuchs, diretor adjunto da Conectas, há anos visitando presídios no
Brasil. O quadro por ele descrito ajuda a contextualizar declarações recentes do próprio ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, para quem, "Se fosse para cumprir muitos anos em uma prisao nossa, eu preferiria morrer".
Faz-se
urgente que a sociedade brasileira coloque tais temas na ordem do dia
e os debata, de modo a buscar soluções efetivas e evitar que o
cenário de desrespeito sistemático dos Direitos Humanos hoje
vigente nos Estados Unidos – cuja contraproducente e sangrenta
Guerra às Drogas continua sendo "comprada" acriticamente
por governos sul-americanos – se repita em países que insistem em
inspirar-se em seu modelo criminológico, particularmente no que
concerne a repressão e aprisionamento.
Abaixo,
as "10 medidas urgentes" propostas pelo relatório,
retiradas daqui:
SISTEMA PENITENCIÁRIO
MEDIEVAL: 10 MEDIDAS URGENTES
1.
Rompimento com a lógica do encarceramento em massa,
incentivando a aplicação de penas alternativas, justiça
restaurativa, descriminalização de condutas, e reforçando o
caráter subsidiário do direito penal.
2. Controle social
do sistema carcerário por meio da criação de um mecanismo
nacional (PL n.º 2442/11) e estadual (proposta de PL já apresentado
à Secretaria de Justiça de SP) de prevenção e combate à tortura,
que seja independente, e cujos integrantes sejam selecionados através
de consulta pública, nos moldes do “Protocolo Facultativo à
Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes” da ONU (ratificado pelo Brasil em 2007);
criação de norma federal que regulamente e permita o acesso para
que as entidades de proteção dos direitos humanos possam realizar
inspeções em qualquer local de privação de liberdade; incentivo à
implantação efetiva de todos os Conselhos da Comunidade nas
Comarcas onde haja unidades prisionais; fortalecer/criar as
corregedorias e ouvidorias do sistema penitenciário, que devem ser
externas.
3. Fim do uso
abusivo da prisão provisória
e criação da “audiência de custódia”, incentivado e
cobrando do Poder Judiciário e Ministérios Públicos a aplicação
efetiva da lei das medidas cautelares (Lei Federal n.º 12.403/11);
incentivo às ações do CNJ no monitoramento do abuso da prisão
provisória; aprovação do Projeto de Lei n.º 554/11 que cria a
“audiência de custódia” impondo o prazo de 24 horas para o
preso em flagrante seja apresentado a um juiz, na presença de seu
defensor, para a análise da necessidade da prisão (também servirá
na prevenção de eventuais maus tratos no momento da prisão).
4. Acesso à
Justiça, por meio da garantia de fortalecimento e autonomia
financeira às Defensorias Públicas (estaduais e da União);
ampliação do número de defensores públicos - priorizando a
lotação de defensores em estabelecimentos prisionais - e do quadro
de apoio (assistentes sociais, psicólogos, sociólogos); instalação
de sistema de acompanhamento processual (de conhecimento e execução)
dentro das unidades prisionais.
5. Redução do
impacto da lei de drogas no sistema prisional, por meio do
fornecimento adequado de atendimento médico e de tratamento aos
dependentes químicos; criação de critérios legais objetivos que
definam quem é usuário, pequeno ou grande traficante; e
descriminalização do uso/porte de entorpecentes, apoiando o
julgamento do Recurso Extraordinário n.º 635.659 em trâmite
perante o Supremo Tribunal Federal.
6. Tratamento digno
às mulheres encarceradas, através de instalações e
equipamentos que considerem as especificidades de gênero; efetivação
do acesso à saúde (prevenção e tratamento) e convivência
familiar; assistência material adequada; fim das revistas vexatórias
de familiares (presídios masculinos e femininos).
7. Valorização da
educação e do trabalho dentro do sistema prisional, que devem
ser vistos como dois dos principais instrumentos de reintegração,
norteando políticas públicas de incentivo e, principalmente, de
oferta, evitando-se a exploração de trabalho indigno.
8. Ampliação
maciça de recursos que sustentem políticas públicas para os
egressos das prisões, auxiliando o reingresso no mercado de
trabalho e disponibilizando adequado atendimento psicossocial ao
egresso e familiares; incentivo à implementação efetiva do
instituto do patronato, nos termos da Lei de Execuções Penais.
9. Efetivação do
direito constitucional de acesso à saúde, transferindo ao SUS a
gestão da saúde do sistema prisional, e prestação de assistência
material aos presos em quantidade e qualidade suficientes.
10. Institutos
Médicos Legais independentes das Secretarias de Segurança
Pública, garantindo independência e autonomia aos peritos na
realização dos exames competentes."
(Foto retirada daqui)
Nenhum comentário:
Postar um comentário