A
posse de José Genoino como deputado federal eleito, além de
provocar as reações de praxe dos setores conservadores que, desde a
UDN nos anos 50 até o corrente conluio entre tucanos e mídia,
reduzem ao denuncismo e a um moralismo seletivo sua ação política
eivada de golpismo, dividiu opiniões no próprio campo da esquerda,
entendido aqui na ampla acepção do termo, ou seja, incluindo o PT,
que completa uma década no comando do país sob cerrado
questionamento quanto a seu perfil programático-ideológico e ao
lugar que ocuparia no espectro político do país.
Em
tal seara, Vladimir Safatle, que tem se revelado um dos mais
profícuos e, ao mesmo tempo, argutos analistas da política e de
suas relações com a cultura, e Olívio Dutra, ex-governador do Rio
Grande do Sul, ministro das Cidades no governo Lula e figura
histórica do PT, do qual foi um dos fundadores, estão entre os que
se posicionaram contra a posse de Genoino. Embora a argumentação de
cada um deles divirja nas filigranas, seu sentido geral é o mesmo: o
Partido dos Trabalhadores, que se projetou no cenário político
nacional com um discurso anticorrupção e que assomou ao poder
prometendo uma nova forma de gestão da coisa pública – mais
transparente, mais aberta à participação popular, isenta das
falcatruas a que a maioria dos partidos recorre de forma rotineira
-, deve satisfações à opinião pública por ter paulatinamente
abandonado tais avanços e incorrido em práticas ilegais (cabe
sublinhar que, à revelia do julgamento do "mensalão", os
próprios petistas reconhecem ter recorrido ao caixa 2).
Em
um artigo
que gerou muita polêmica, Safatle chama a atenção para o fato de
que os mecanismos de democracia direta, "como o orçamento participativo, sumiram até mesmo da esfera municipal do PT". Enquanto as críticas
de Dutra concentrem-se no âmbito do partido e no que a posse de
Genoino possa causar ao "sentimento partidário", o centro
da preocupação do filósofo da USP é o quanto o futuro da esquerda
no Brasil pode vir a ser afetado pelos desdobramentos da negligência
do PT para com as bandeiras éticas que sempre defendera. Em um
parágrafo finalizado de forma irretocável, ele anota:
"Para
que todos não paguem por isso diante da opinião pública, há de se
dizer claramente que não é a esquerda brasileira que foi julgada no
mensalão, mas um setor que acreditou, com uma ingenuidade
impressionante, poder abandonar a construção de novas práticas
políticas sem, com isso, se transformar paulatinamente na imagem
invertida daquilo que sempre criticaram."
Indícios
de indoneidade
Já
os defensores da posse do político cearense radicado em São Paulo,
como os jornalistas Paulo Moreira Leite – que escreveu uma
emocionada defesa
do direito de Genoino à posse - e Paulo Nogueira, insistem no
aspecto legal strictu sensu - o direito indubitável que o
suplente de deputado, ao ser eleito pelo povo, tem de tomar posse
quando o titular desocupa a cadeira. Nogueira - que escreveu uma
"Carta
aberta aos indignados com a posse de Genoino" – elenca ainda o
histórico de lutas de Genoino "pelo país" e a alegação
de que, após décadas de atuação parlamentar, seu patrimônio se
restringiria a uma casa no Butantã, bairro de classe média alta
paulistana.
Longe
de mim questionar tais méritos. Penso que o país hoje democrático
deve uma permanente homenagem àqueles que lutaram contra a ditadura
militar, notadamente aos que foram vítimas de tortura praticada pelo
Estado. Considero também que, num meio político em que os álvaros
dias da vida ostentam patrimônios milionários de origens não
esclarecidas, soa, a princípio, como evidência de honestidade e de
frugalidade os relativamente modestos bens que Genoino declara
possuir.
Porém,
por mais meritórios que sejam tais quesitos, é forçoso reconhecer
que nem o passado de lutas de Genoino, nem seu patrimônio modesto
são determinantes de sua inocência das acusações que sofrera no
julgamento da AP 470, no qual, não obstante a ausência de provas
factuais, foi condenado a seis anos e 11 meses por corrupção
passiva e formação de quadrilha.
Para
além do "mensalão"
Na
minha opinião pessoal, Genoino acertou em tomar posse – e o PT em
apoiá-la. Primeiro, porque, após o grave atentado ao equilíbrio
dos três poderes simulado pelo STF ao ameaçar cassar os
parlamentares condenados na AP 470, era necessário que o parlamento
reagisse e marcasse posição, assegurando sua soberania na parte que
lhe cabe do poder.
Em
segundo lugar, porque se o julgamento do "mensalão" como
um todo, com a inovação duvidosa de substituir a falta de
evidências materiais pela Teria do Domínio dos Fatos, com os
holofotes midiáticos cegando os juízes e com condenações
assumidamente "sem provas, mas garantidas pela literatura
jurídica", já constitui em si um episódio altamente problemático
na história da Justiça e da política no Brasil, as condenações
de José Dirceu e de José Genoino mostraram-se particularmente
injustas e sem bases, como o reconhecem os mais prestigiados
juristas do país e um jornalista do quilate de Janio
de Freitas.
Este
é um ponto, portanto, em que discordo frontalmente de Safatle, que
constrói toda sua argumentação inicial contrária à posse de
Genoino tendo como base o resultado do julgamento do "mensalão",
a partir do qual acusa o PT de agir "como um avestruz".
A
meu ver, a necessidade de o PT vir a público justificar seu mergulho
na vala comum dos partidos que usam expedientes como o caixa 2 e de
reafirmar a necessidade de retomar seu compromisso ético com a
lisura na política e com a ampliação dos mecanismos de
participação democrática, características diferenciais do partido
antes de chegar ao poder, antecedem, transcendem e devem se dar para
além e à revelia do julgamento do "mensalão".
Ironia Conservadora
Porém, as mais visíveis reações ante as cobranças feitas por Safatle e Dutra têm sido apelar para a desqualificação dos críticos - um vício que o "novo petismo" tem emprestado da imprensa nativa -, acusando os críticos de "fazerem o jogo da direita", sugerindo que o filósofo uspiano estaria meramente reagindo a pressões de grupo, que Dutra mostraria-se despeitado pela perda de poder no partido, e classificando o tipo de criticismo que fazem como "udenismo gauche" - expressão que de fato prima pela mordacidade, mas que deixa implícita uma visão míope das relações entre política e ética, como se com elas preocupar-se devesse ser exclusividade do conservadorismo udenista.
A
ética na política, bem como o aprimoramento e incremento das formas
de participação democrática, são demandas legítimas das
sociedades contemporâneas, à revelia das cores e tendências
políticas, e tendem a se aguçar ainda mais no futuro próximo, com
a democratização do acesso à comunicação digital de alta
velocidade. Uma esquerda que finge não entender isso e se comporta
como alvo resignado do moralismo conservador está permanentemente em
risco – de perder o poder e de deixar de ser esquerda.
(Desenho retirado daqui)
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