Fernando Haddad assumiu
hoje o cargo de prefeito de São Paulo gerando muita expectativa e
com enormes desafios à frente. Alguns são inerentes à maior cidade
de um país que vem, nos últimos anos, passando por um processo de
realocação positiva de classes sociais e, em decorrência, de
mudanças no padrão de consumo de estratos da população - o que
gera maior demanda por serviços e tende a afetar negativamente a
ecologia urbana.
Outros derivam do
cenário de terra arrasada deixado por oito anos de gestão do
demotucanato, caracterizada pela insensibilidade social, pelo
autoritarismo no trato com os cidadãos e pela leviandade na
administração da coisa pública, cuja maior evidência é a
contraposição dos péssimos serviços de transporte, saúde e
educação à dívida de R$69 milhões que lega ao prefeito
recém-eleito. (A propósito, a Lei de Responsabilidade Fiscal é
para todos ou só para uns poucos?)
A gestão Kassab, que
chega ao fim amplamente rejeitada pela população, pode ser resumida
em três itens, inter-relacionados entre si: extração de benefício
privado da coisa pública, abandono da cidade e da população (há
bairros periféricos que simplesmente deixaram de ser atendidos por
linhas de ônibus aos finais de semana) e moralismo populista,
visando gerar factoides ocasionais, de modo a dar a impressão de
governabilidade. O resultado é o caos atual.
Para enfrentar o
desafio de reverter esse quadro, Haddad cercou-se de um secretariado
que prima por uma formação acima da média, com nomes como o da
respeitada economista e professora da USP Leda Paulani (Planejamento,
Orçamento e Gestão), de Juca Ferreira, que possivelmente foi, ao
lado de Gilberto Gil, o melhor ministro da Cultura que o país já
teve, e do arquiteto e doutor pela FAU-USP Fernando de Mello Franco
(Desenvolvimento Urbano), encarregado de reformar o polêmico projeto
de reurbanização do centro de São Paulo, Nova Luz. Em meio a
outros nomes de maior ou menor destaque, macula o secretariado a
inclusão do espancador de mulheres Netinho de Paula (Igualdade
Racial) e, graças ao acordo pré-eleitoral com Maluf, a cessão da
socialmente crucial secretaria da Habitação a uma eminência parda
do PP.
Existe amor em SP?
Em seu discurso de
posse, cujo mote foi "derrubar o muro da vergonha que separa a
cidade rica da cidade pobre", o novo prefeito elencou suas
prioridades, concedendo natural e compreensível primazia a questões
eminentemente econômicas, com o combate à miséria e a busca do
reequilíbrio das contas públicas disputando cabeça a cabeça a
primeira colocação. Vêm secundados por uma pauta característica
do que seria um governo de centro-esquerda, com destaques para itens
como saúde pública, assistência social e moradia popular.
Discursos de posse
costumam não passar, no Brasil, de peça de ficção e
entretenimento, como bem sabem aqueles que continuam esperando que
Dilma Rousseff dê à educação a prioridade que, em seu discurso de
exatos dois anos atrás, reiteradas vezes prometeu – e que a
realidade tem tratado de reduzir a mera conversa mole, como a recusa
em sequer negociar com os professores federais e a truculência com
que foram tratados na longa greve de 2011 exemplificam cabalmente.
Feita esta ressalva, a fala de Haddad destaca-se por duas razões:
- Denota planejamento e organicidade, ao distinguir com clareza prioridades, problemas evidentes e eventuais e objetivos para enfrentá-los, o que o diferencia dos discursos recheados de platitudes genéricas;
- Mais importante, ousa avançar para além do pragmatismo burocrático e do convencionalismo político, evocando uma referência cultural – a canção de Criolo -, para, desmentindo-a, afirmar que "existe amor em SP" e conclamar por um novo padrão de convivência na metrópole que cultive "a solidariedade, a fraternidade e o amor ao próximo".
Este último movimento,
somado a atenção que Haddad demonstrou ter, em declarações
anteriores, para a relação entre cultura e política, traz em si um
potencial que, se devidamente trabalhado, pode significar um
diferencial do novo prefeito em relação a seus antecessores na
cadeira da prefeitura, petistas ou de oposição: a capacidade de
estabelecer um diálogo com os setores – jovens, em sua maioria –
que anseiam por uma práxis política que incorpore elementos
culturais e estéticos ao que veem como domínio exclusivo da
economia, do gerenciamento administrativo strictu sensu e dos
jogos de poder.
O fator cultura
Trata-se de um anseio
difuso, mas facilmente captado por quem convive com a juventude. Que,
na política tradicional, tal anseio seja passível de aferição em
fenômenos que comumente despertam a ira dos petistas de carteirinha
– como a candidatura de Marina Silva à presidência ou de Marcelo
Freixo à prefeitura carioca – é mais uma evidência das
potencialidades inauditas de Haddad do que uma evidência demeritória
contra ele.
Seja como for, para
além da ênfase que o novo prefeito venha a dar ao que se
convencionou restritivamente chamar de "questões sociais"
e à economia, as potencialidades de intervenção no cenário
cultural – e, portanto, na autoimagem – da cidade mostram-se
evidentes. Para isso, é preciso trabalhar com presteza para que a
cidade volte a ter uma identidade cultural e que a cultura deixe de
estar a reboque do mercado – como esteve na última década -, como
objeto de consumo virtualmente exclusivo da elite.
Nos últimos anos, os
espaços culturais sob a administração da prefeitura foram
sucateados e a "Virada cultural" tornou-se praticamente o
único evento a atrair a população de média e baixa renda – além
de muita suspeição em relação aos contratos firmados entre
prefeitura e representantes dos artistas. A gestão de Marilena Chaui
à frente da secretaria de Cultura na gestão Erundina permanece como
um exemplo de uso inteligente e democrático do aparato municipal de
cultura, destacadamente do Centro Cultural São Paulo, que tem ótima
localização e facilidades de acesso. Um exemplo a ser estudado.
Redimensionada e
ampliada pelas facilidades trazidas pela tecnologia digital e pelo
tutano antenado do secretário Juca Ferreira, a cultura, se não
ficar cerceada pelos ditames da economia, tem tudo para ser um
elemento de distinção não apenas da gestão, com benefícios
evidentes à cidade, mas do perfil do próprio Haddad como político,
que ora começa a ser definido.
(Foto retirada daqui)
Um comentário:
Depende do que Haddad entende sobre cultura. Se for isso aí que aparece nas TVs e rádios, estamos fritos.
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