O
modo como o governo Dilma Rousseff vem lidando com as greves do
funcionalismo público deveria suscitar preocupação não apenas
entre os diretamente envolvidos na questão, mas em todos que prezam
pelo avanço democrático e pelo respeito aos direitos trabalhistas.
Como
veremos no decorrer deste texto, o Decreto 7.777, publicado no último
dia 25 e que prevê a substituição dos grevistas de órgãos
federais por servidores estaduais e municipais, é o ponto mais baixo
de um processo em que a conduta do governo tem se caracterizado pela
falta de diálogo, pelo recurso ao ilusionismo financeiro, pela
tentativa de jogar a opinião pública contra os grevistas - e,
agora, com essa medida draconiana, por um autoritarismo incompatível,
na forma e no conteúdo, com o país democrático, lar de políticas
sociais avançadas e player
internacional
que o próprio governo constantemente alardeia sermos.
Já
no início, uma guinada conservadora
Eleito
como um governo de centro-esquerda que prometia aprofundar as
conquistas da Era Lula, a administração comandada por Dilma, não
obstante seus méritos pontuais, tem se caracterizado, desde o
primeiro momento, pela primazia irrestrita que concede ao campo
econômico em relação às demais áreas – inclusive Educação e
Saúde – e pela falta de diálogo com a sociedade.
A
prioridade irrestrita ao econômico que caracteriza a administração
de Dilma se traduziu, em um primeiro momento (fevereiro de 2010), na
readoção de um receituário à moda neoliberal, com um duríssimo
choque anticíclico que teve como meta não apenas aumentar o então
já alto superávit primário, mas zerar o déficit nominal [gastos
menos despesas, incluindo pagamento de juros]. Em nome desse agrado
aos bancos e ao mercado financeiro foi então anunciado um corte de
R$50 bilhões nos gastos públicos, que afetou diretamente Saúde,
Educação e demais áreas sociais (com exceção dos programas de
renda mínima), estabeleceu um salário mínimo sem aumento real,
fixado em mais que módicos R$545,00, e determinou a suspensão de
novos concursos e de contratação de aprovados em concursos
anteriores.
Kill
the messenger
No
mesmo mês de fevereiro este blog denunciou o caráter recessivo das
medidas, sua incoerência com o que fora defendido durante a campanha
eleitoral e, sobretudo, o retrocesso que, abrindo flancos
político-ideológicos potencialmente danosos à centro-esquerda,
significava em relação aos avanços do governo Lula. Só faltou
sermos apedrejados por blogueiros e comentaristas ainda entusiasmados
pela vitoria eleitoral e inconformados com o desplante de se criticar
um governo que mal entrava em seu segundo mês, num cenário de
crise, pelo que viam como meros ajustes na economia.
O
jornalista e blogueiro Luis Nassif foi uma das raríssimas vozes da
blogosfera a, no calor da hora, apontar a inadequação e a
prognosticar danos futuros à economia brasileira por conta de tal
“pacote econômico” - sem o qual, como ele demonstra em coluna da
semana passada, o momento econômico atual tenderia a ser outro, bem
melhor. Mas a equipe econômica chefiada por Mantega levaria meses
para se dar conta do desacerto e voltar a apostar na expansão do
crédito e do consumo e numa ralentada retomada de investimentos
estatais como forma de melhorar o desempenho da economia – sempre
sem exorcizar a obsessão com os altos superávits, o que acaba por
levar, inexoravelmente, a resultados contraditórios, dos quais a
atual situação do servidor público é, como veremos, exemplo
cabal.
Perfis
públicos
Antes,
porém, examinemos a questão da falta de diálogo do governo com a
sociedade, que é hoje traço distintivo do poder federal. Ela foi
inicialmente interpretada como uma impressão advinda da mudança de
estilo trazida pela sucessão presidencial, do expansivo e brincalhão
Lula para a mais reservada e austera Dilma. Criou-se inclusive um
anedotário a respeito, o qual, por sua vez, não esteve livre dos
preconceitos que de ordinário imbuem as questões de gênero em um
país profundamente machista.
Por
outro lado, a própria mídia, interessada em criar um falso
antagonismo entre a atual mandatária e o seu antecessor - em
detrimento deste -, acabou por ressaltar, em inúmeras matérias, a
“seriedade”, “determinação” e “objetividade” da
presidenta como características positivas, em oposição ao que
sempre viu como excessos, mau gosto e populismo inculto de Lula, a
quem nunca engoliu. Ao final, como parece indicar o grau de aprovação
pessoal de Dilma, o país não só se acostumou, mas acabou por
afeiçoar-se ao seu estilo.
Silêncios
do palácio
Ocorre,
porém, como agora fica dolorosamente claro, que a questão nunca se
restringiu a uma mera mudança de estilos pessoais na Presidência. É
provável, na verdade, que as discussões sobre o tema tenham
colaborado para desviar o foco do problema real: o fato de que foi a
administração Dilma como um todo que abandonou a saudável prática
de dialogar constantemente com a sociedade, vigente nos oito anos
anteriores, e, sob uma liderança por demais concentradora e a
primazia de uma área econômica que se crê onipotente e tem sempre
a última palavra, isolou-se em tecnicismos e certezas palacianas.
No
governo Lula, o diálogo constante com a sociedade – através de
lideranças, sindicatos, grupos de trabalho, ONGs -, além de
distender as tensões e, em algum grau, facilitar a empatia entre um
lado e outro, dava a ambos, em curtos intervalos de tempo, uma noção
dos termos pretendidos pelos requerentes e pelos donos das canetas.
Sem isso, a atual administração dá frequentemente mostras de estar
sendo surpreendida pelas demandas trabalhistas (o que é
evidentemente falso, já que ela acompanha os sindicatos por outros
canais, unilaterais), reage mal, demora uma enormidade para agendar
uma mera reunião conciliatória (mais de um mês, no caso dos
professores federais) e as raras contrapropostas que faz trazem a
evidência do mais primário improviso.
Quem
não se comunica..
No primeiro dos textos deste blog dedicados à greve dos professores federais, afirmei que a paralisação teria sido facilmente evitada se o governo
tivesse simplesmente mantido o diálogo aberto. Tal premissa tem sido
corroborada também pela greve dos funcionários públicos federais
como um todo, que envolve 25 categorias profissionais, e que só foi
deflagrada quando ficou claro que não havia possibilidade de
diálogo. A nota oficial difundida pela CUT em relação ao decreto
7.777 confirma os aspectos deletérios do isolamento governamental:
“Para resolver conflitos, o caminho é o diálogo, a negociação e
o acordo. Sem isso, a greve é a única saída”.
Na
ausência de tais canais de comunicação, o confronto entre
grevistas e patrões, natural numa democracia, é deslocado do espaço
público presencial de debate e negociação - que num governo
democrático, trabalhista e alegadamente de centro-esquerda deveria
ser a mesa de negociações - e virtualmente restrito, nas condições
e frequência que o governo determinar, à arena pública – a qual,
nas sociedades contemporâneas, é dominada pela mídia.
Mídia
e mercado
E
a mídia corporativa, como está sobejamente demonstrado na
literatura a respeito, tem hoje seus interesses de tal forma
consonantes aos do mercado que se tornou não apenas seu porta-voz,
mas uma sua parte constituinte. Com ele divide, naturalmente, a
adoção do receituário neoliberal como panaceia de todas as horas,
evidência que o atual rumo dos países europeus em crise não apenas
corrobora mas cujos efeitos, através do esgarçamento de seu tecido
social, denuncia.
Para
compreender como o governo Dilma tem conseguido, em larga medida,
instrumentalizar a mídia – de ordinário, refratária ao governo
petista - a seu favor durante as greves deste ano é preciso ter
claro a afinidade entre a orientação neoliberal das corporações
midiáticas - aí incluída sua repulsa pelo funcionalismo público e
por tudo que seja estatal, com exceção das verbas publicitárias –
e a hesitação de um governo em profundo conflito entre, de um lado,
o “modelo” de retomada do papel do Estado tal como inicialmente a
aliança federal petista propusera e, de outro, as restrições
impostas pelo economicismo hegemônico no interior da administração,
o qual tende a açular ainda mais os
temores relativos à crise econômica mundial. (A respeito da aliança
mídia-governo em relação à greve dos professores, vale muito a
pena ler este post
de Weden.)
Questões
fundamentais
Como
dito parágrafos acima, a situação dos servidores públicos ora em
greve é didaticamente exemplar do efeito de tais contradições: ao
mesmo tempo que eles assistiram, nos anos Lula, à notável expansão
percentual de sua presença no mercado de trabalho nacional, veem-se
sujeitos a longos períodos sem aumentos salariais e, no mais das
vezes, a trabalhar em situações que variam do precário ao
intolerável; enquanto boa parte do país se refestela – ainda que
a custa de endividamento - numa festa de consumismo,
desenvolvimentismo, otimismo e outros ismos, eles viram sua
aposentadoria futura ser substancialmente reduzida, numa medida que
combinou agressão à expectativa de direito de alguns e regressão
dos direitos trabalhistas potenciais de toda a sociedade; enquanto
uma maioria de brasileiros afirma, nas pesquisas, a prioridade que
deve ser dada a educação, saúde e segurança pública,
professores, médicos do SUS e policiais continuam não apenas
sub-remunerados mas subvalorizados socialmente.
Queremos
ou não ser uma nação com nível educacional aprimorado? Vamos
realmente investir num modelo de saúde pública inclusivo e de
qualidade, que preserve o cidadão tanto das filas insuportáveis do
atual sistema público quanto da farra dos planos de saúde? Está no
horizonte do país realmente enfrentar a questão da segurança
pública de modo a erradicar nossos pornográficos índices de
violência, de abuso policial e de corrupção? A resposta a essas
perguntas passa, necessariamente, pela valorização não apenas do
professor, do médico e do policial, mas de todo o aparato de
recursos humanos que possibilita a ação do Estado.
E
é nesse contexto, como um primeiro e necessário choque de
realidade, que se insere a greve dos servidores. O movimento não é,
de forma nenhuma, um episódio de mesquinhas disputas partidárias,
como alguns aspones mal intencionados querem caracterizar, mas parte
de um embate decisivo sobre que modelo de desenvolvimento vamos
priorizar como país, qual lugar os recursos humanos e o próprio
Estado enquanto agente social e ente econômico vão nele ocupar.
Autoritarismo
e regressão
Porém
ao recusar o diálogo e manter-se inflexível, ao apelar a artifícios
enganadores e, sobretudo, ao radicalizar e lançar mão do
instrumento por si autoritário do decreto para, na prática, violar
o instituto do direito de greve, o governo Dilma transpassa a
barreira do aceitável em uma sociedade democrática e suscita sérias
dúvidas quanto às suas intenções e horizontes. Para a CUT, “Esta
inflexão do decreto governamental nos deixa extremamente
preocupados.
Reprimir
manifestações legítimas é aplicar o projeto que nós derrotamos
nas urnas.”
Pois
graças à inflexibilidade, à atitude de confronto e, agora, à
tentativa de esvaziar uma forma de protesto prevista na lei incitando
fura-greves e procurando inseminar cizânia entre os próprios
trabalhadores, assiste-se à irrupção de uma forma de autoritarismo
inédita no passado recente do país, patrocinada por um governo que
se publiciza como progressista e de centro-esquerda.
3 comentários:
Lembrei-me do Decreto-Lei 477 emitido pela ditadura para calar as universidades.
Publiquei seu texto precedido do famigerado decreto.
abs
Obrigado, Gilson.
Um abraço.
Perfeito, sem tirar nem por. O verdadeiro desafio é fazer este conhecimento chegar à sociedade, ao cidadão comum.
Com Copa e Olimpíadas chegando, vejo uma festança vindo em que os servidores são convidados, não a participar, mas a pagar a conta.
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