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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O velho jornaleiro

Um dia desses, ao voltar a São Paulo para visitar meus pais, descendo a principal rua do bairro onde morei dos três anos ao final da adolescência – um enclave português no subúrbio –, tomei um susto ao notar que a banca de jornais de “seu” Ari transformara-se em um ponto comercial vulgar, de venda de acessórios para motos.

“Seu” Ari era um nissei muito franzino, de uma educação e de uma dignidade evidentes por trás dos óculos de aros finos e dos cabelos precocemente grisalhos. As primeiras vezes que fui à sua banca – na verdade, uma portinha de um metro de largura, dando em um fundo corredor ladeado por dezenas de revistas - ele devia ter uns 40 e poucos anos e já tinha essa aparência, enquanto eu começava a sair da infância rumo à puberdade.

Foi quando comecei a ler com regularidade jornais e revistas. O Jornal do Brasil já deixara de ser o mítico JB, a grande referência na imprensa brasileira dos anos 60/70, e a Veja era ainda uma revista bem-escrita e com atraente projeto gráfico, e, embora ligeira, às vezes leviana e sempre de má vontade com a cultura nacional, a anos-luz do panfleto obscurantista que ora se tornou.


Aparências mantidas
O grande jornal brasileiro era a Folha de S. Paulo, ainda beneficiário das reformas promovidas por Claudio Abramo e de uma alardeada obsessão pelo profissionalismo que ao menos mantinha as aparências. Nessa época meu interesse por política era superficial, eu tendia a pular os cadernos iniciais e devorar a Ilustrada, que, a cargo de jovens jornalistas – com o reforço de pesos-pesados como Sergio Augusto e, para o bem ou para o mal, Paulo Francis -, modernizava a crítica cultural e, abrindo-se ao universo pop-rock mais atual, ajudava a tornar respirável a lentíssima abertura política que marcou os estertores da ditadura.

Logo, a Folha ganharia ainda mais cacife, ao se transformar no principal porta-voz das Diretas-Já na imprensa.


Tempos idos
Lembro claramente de chegar algumas vezes da balada e, resistindo ao sono e à tentação de afanar um exemplar da pilha que ficava em plena calçada, ao relento, ficar esperando “seu” Ari abrir a banca. Ele aparecia pontualmente às 05h (e ia embora às 19h), e na eventualidade de eu, "durango", ter gastado todo o meu dinheiro na noite, deixava que eu “pendurasse” – e ainda trocava algumas palavras gentis com o pirralho impertinente. Um gentleman.

Eram outros tempos. Hoje sabemos que o outrora promissor jornal tornou-se uma publicação mesquinha, apequenada por um diretor de redação aloprado, que não hesita em publicar fichas policiais falsas na capa, em atacar grosseiramente respeitados professores universitários, em valer-se de um militante desequilibrado para difamar com leviandade o mais popular presidente do país - cujos méritos se recusa a reconhecer - , em criar factóide atrás de factóide no afã de fazer valer seus interesses político-econômicos, dando uma banana para o leitor, cujas opiniões menospreza.

Ou seja, a partir de um certo momento, instaura-se uma incompatibilidade evidente entre uma publicação tão negligente para com a ética profissional e a dignidade civilizada de alguém como “seu” Ari.


Cai o pano

A última vez que o vi, em uma visita anterior a São Paulo, fiquei impressionado ao constatar o quanto envelhecera: os cabelos, agora ralos, tornaram-se todos brancos; estava encurvado, alquebrado pelo peso dos anos, e, por trás dos óculos agora mais grossos, sua fronte se tornara um feixe flácido de rugas. Só restava, no fundo dos olhos, um brilho agudo de sabedoria - e, intacta, sua dignidade.

Não obstante tal constatação, já nessa ocasião a metáfora contrapondo a débâcle física do jornaleiro e a decadência dos jornais e revistas que comercializava impôs-se, epifânica.

A transformação, em um ponto comercial vulgar, da banca de jornais da qual “seu” Ari retirou, por uma vida, seu sustento, forma, assim, uma alegoria - e um presságio – para o destino da grande imprensa brasileira. A qual, ao renunciar ao jornalismo em prol da defesa de interesses corporativos,atentando contra sua função institucional, republicana, e desrespeitando o leitor, só restará cumprir sua sina. E o fará sem um pingo da dignidade do velho jornaleiro.


(Foto retirada daqui)

4 comentários:

bete disse...

aqui a cad quadra no plano piloto há uma banca de revistas, morei mais de 30 anos na mesma quadra, portanto os donos eram conhecidos, a gente tinah conta lá.
eu também pulava a revista e ia direto par parete de cultura, idem no jornal. a gente não assina mais nem a INveja nem a fAlha há uns 20 anos...achei interessante a forma que vc achou de contar a derrocada da imprensa. e hoje só compro revisat de decoração e na banca, par não sr importunada com ligação da abril. bjs

Miguel do Rosário disse...

hum, que bonito mêu!

Murilo Rodrigues Guimarães disse...

Belo texto!!

fez-me pensar que cada um denós pode ter um "seu Ari", na memória.

Assim como eu me lembro de que, em minha pequena Macarani dos últimos anos da década de 1970, havia uma tv a cores instalada sob a marquise da entrada pricipal do mercado municipal, onde se reuniam os sem-tv para assistirem, à noite, sentados no chão do largo São Pedro, o jornal nacional, a novela das 8 e os jogos de futebol transmitidos pela Rede Globo.

Depois dessa tv de uso público, desativada por volta de 1985, inaugurou-se no sobrado de joão bodim, bem próximo do local do santuário televisivo, um estúdio para emissão de programas da rádio comunitária que funcionou até quase o ano 2000.

Em outros pontos do largo, em volta da edificação primordial da cidade, o mercado, já houve um estúdio de filmagens e atualmente os bares, as lojas de roupas e as 'vendas' dividem o espaço com um telecentro e duas lan-houses, que assumem agora as vezes daquele velho aparelho de tv, onipotente sobre a porta do mercado, audível e visível em todo o largo são pedro, desde a esquina da travessa josé do patrocínio, até a casa de seu Fidélis, ótimo mecânico de fuscas, como sempre afirmava meu saudoso pai, morto quando ainda funcionava por ali, à noite, aquele televisor National a ressoar a voz fúnebre de Cid Moreira.

Cássio Tonsig disse...

Aquela Folha passou!
A dignidade migrou.
Os mais jovens não sabem dessa saudade. Não a conheceram.
Tem muitos velhos que não querem aquela dignidade. Ainda lêem InVeja nos consultórios.

Melhorou muito: por um período, só tínhamos a Folha. Hoje não precisamos mais dela (abdusida!).

Belo texto.