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domingo, 31 de janeiro de 2010

Moradores de rua: o Brasil como sociedade anacrônica e cruel

Era o período final do governo FHC. Durante meses, todas as terças-feiras, por volta das 22h., eu voltava da aula que dava em um cursinho pré-vestibular para alunos carentes da favela da Maré, descia do ônibus no Largo do Machado e ia a pé para o meu apartamento em Botafogo – um trajeto de cerca de 1,5km, que passa por três bairros.

Durante praticamente todo o caminho, ia tropeçando nos corpos dos moradores de rua - e só por pouco tal afirmação é figura de linguagem. Eram homens e mulheres sós, crianças e velhos abandonados, famílias inteiras com suas camas de papelão, cobertores e tralhas, se amontoando sob cada marquise, quase sem deixar espaço para o tráfego de pedestres nas estreitas calçadas cariocas.

A naturalidade com que a sociedade brasileira há muito aceita que pessoas sejam obrigadas a dormir na rua – sem as mínimas condições de higiene, à mercê das intempéries, coabitando com insetos e ratos, sujeitas à ação de grupos de extermínio, ao ataque de vândalos piromaníacos e ao assédio de policiais sádicos – é uma das provas incontestáveis da cruel indiferença que marca as relações sociais no país.


Elitismo e hipocrisia marcam o debate
O pretexto moral invocado para “justificar”tal indiferença é que os moradores de rua seriam uma súcia de criminosos, viciados, prostitutas, “moleques de rua”. Trata-se de: 1) Uma falácia; e 2) Um não-argumento.

1) Falácia porque desmentida pelos fatos: a maioria da população de rua é composta dos excedentes do capitalismo tecnofinanceiro; de pessoas que, sem escolaridade, apoio familiar, recursos materiais e, eventualmente, saúde física ou psicológica para inserir-se no mercado de trabalho, “têm direito apenas à miséria ou à sua ameaça mais ou menos próxima, à perda muitas vezes de um teto, à perda de toda a consideração social e até mesmo de toda a autoconsideração. Ao drama das identidades precárias ou anuladas”, como assinala Viviane Forrester em seu belo e doloroso livro O Horror Econômico.

Portanto, para um contingente social muito mais amplo do que se imagina – e de forma alguma restrito a uma escória antisocial caricata – a sarjeta tem sido uma possibilidade mais concreta e latente do que aparenta num país que durante quase 20 anos conviveu com um processo inflacionário agudo e foi periodicamente assomado por crises econômicas devastadoras, que ora atingiam com mais vigor certos setores da economia, ora outros, e que levavam invariavelmente milhões ao desemprego. O mendigo fedido que ontem atormentou-lhe, leitor(a), era gerente de uma fábrica de discos de vinil; a velha com aparência de louca que enfia a mão nos lixos à cata de latas tinha uma pequena confecção antes do Plano Collor; aquele camelô grisalho que tem dificuldade pra fugir do “rapa” foi assistente de diretoria de um banco destruído pela crise dos anos 80.

É evidente que a tragédia cotidiana de morar nas ruas é traumática e que parcelas dos que estão submetidos a tal realidade têm envolvimento com drogas e alcool - mas, além dos problemas metodológicos com as pesquisas relacionando drogas e moradores de rua, é preciso levar em conta que largos setores das classes médias e altas também fazem uso de tais substâncias, sem, no entanto, ser desclassificados por considerações de ordem moral. Pode-se especular que para os primeiros, a busca por drogas decorre muitas vezes de uma necessidade de fuga, de fornecer lenitivo às feridas egóicas que tal situação provoca, de sufocar, em goles, picos e tragos, a avassaladora vergonha. Pois, como observa Forrester, com uma amarga dose de sarcasmo: "Não há nada que enfraqueça nem que paralise mais que a vergonha (...) é um valor sólido, como o sofrimento que a provoca ou que ela suscita (...) A vergonha deveria ter cotação na Bolsa".


2) Não-argumento porque abandonar crianças mal-nascidas a sua própria sorte - pespegando-lhes o carimbo de “menor”para diferi-las, como pequenas criminosas, das “crianças normais”- e negar cidadania a mulheres e travestis que vendem seus corpos e a pessoas que fazem uso de drogas é indigno de sociedades que se querem avançadas e democráticas. Nestas, simplesmente não há “menores de rua” – nem como constructo para distinção ontológica nem como presença física social - e criam-se estruturas especializadas, que oferecem a tais segmentos populacionais oportunidades para tratamentos de saúde, terapias e meios de inclusão trabalhista e comunitária.

Porém, a substituição do Estado de Bem-Estar social (que entre nós nunca chegou a se concretizar) pelo Estado Penal, uma das mais persistentes heranças malditas do neoliberalismo – e tema analisado por brilho por autores como Loïc Wacquant, Alessandro Baratta e Raúl Zaffaroni -, trouxe em seu bojo não apenas a intensificação acelerada da criminalização da pobreza, mas a noção subjacente de que o criminoso é um não-cidadão (e não um cidadão que cometeu um crime e deve ser por este ato punido, inclusive com a privação temporária de algumas prerrogativas da cidadania). Daí derivam, num mero exercício de lógica, a naturalização e difusão da ideia que moradores de rua - sejam eles “menores”, prostitutas, travestis, usuários de drogas, transgressores da lei ou, em sua maioria, pessoas que perderam tudo -, por pobre serem, são criminosos, e por criminosos serem, devem ser abandonados pelo Estado à sua própia condição


Novas políticas para moradores de rua
Atualmente, no entanto, pela primeira vez na história do Brasil, os miseráveis e os moradores de rua estão recebendo atenção oficial – e não apenas na forma de assistencialismo (embora esta seja, sim, legítima – o discurso da direita, que a descarta como populista e eleitoreira, não passa de pretexto para deixar as coisas como estão e não “desperdiçar” dinheiro com “pobre”, perpetuando o sofrimento dos excluídos).

Além de se expandir o alcance e o montante do Bolsa-Família – que beneficia mais de 35 milhões de pessoas, atuando diretamente na redução da miséria -, foi criado acesso a contas bancárias e a linhas de crédito para pessoas de baixíssima renda, bem como concebida uma politica específica para a população de rua -, incluindo centro de referência com atendimento multiministerial, benefício fiscal a empresas que comprarem lixo reciclado de cooperativas de catadores, medidas de incremento de visibilidade social, e, mais importante, a aquisição, pelo Estado, de 25 edifícios para abrigar moradores de ruas - os dois primeiros, no valor total de R$20 milhões, já adquiridos.

Isso é o bastante? Certamente não. De forma alguma. Mas é, em nosso país, uma política de combate à miséria inédita em duração e em volume de recursos e de beneficiados. Mundialmente reconhecida, projeta, segundo o IPEA, a antes impensável erradicação da miséria para um horizonte próximo, 2016.

Tive, há quase um ano - portanto, bem antes da inacreditável "Operação Cidade Limpa", promovida pelo prefeito Eduardo Paes (PMDB/RJ) - a oportunidade de refazer o mesmo trajeto de quase uma década atrás, citado no primeiro parágrafo. O número de pessoas morando nas tais ruas diminuiu tremendamente – eu arriscaria dizer que para menos de 1/10 do que eu havia antes presenciado. Trata-se de um fato constatado pelos meus próprios olhos – e não de um dado frio das estatísticas -, para o qual, certamente, as políticas desenvolvidas pelo governo Lula tiveram fundamental influência.

Respeito muitas das restrições que os setores à esquerda do lulopetismo fazem a seu governo e concordo que há muito a avançar em diversos setores - notadamente, nas práticas políticas institucionalizadas em nosso país, as quais a atual Presidência não foi capaz de reverter minimamente.

Mas a atenção direta à erradicação da miséria – bandeira histórica da esquerda -, e, particularmente, aos moradores de rua, é um fator decisivo nas minhas reflexões acerca de para quem vai meu voto nas próximas eleições, tanto para a Presidência quanto para o governo. Tal processo de inclusão social e de expansão de cidadania não pode ser interrompido, pois é o caminho para o Brasil se tornar um país verdadeiramente justo e democrático.


(imagem retirada daqui)

7 comentários:

bete disse...

perfeita mais uma vez sua análise.
durante dois anos trabalhei em um grupo assistencial q atendia moradores de rua, como ninguém gostava de fazer isso, era eu q fazia as entrevistas e o cadastro deles.
a maiorai não tem documentos, portanto nem cidadõas são, praticamente todos analfabetos. totalmente desassistidos pelo Estado. culpa deles? claro que não! o sistema foi desenhado para deixá-los à margem, daí o nome marginais. estão à margem da socieddade estabelecida, vos vêem, mas não tem acesso nem aos bens de consumo e muito menos as políticas do Estado.
a classe médai acha, pq ist a exime de responsabilidades, q são culpados do próprio destino: oh! como podem ter tantos filhos!
eles mal sabem mal ler e escrever! só por isso não podem se amar?
é tant coisa que eu falaria que ficaria aqui fazendo outro post. prefiro fazer conhecer o seu...
bjs

Unknown disse...

Iaiá,

Fico muito feliz em saber que uma pessoa que conviveu com moradores de rua por um tempo razoavelmente longo gostou do post e concordou com a análise.

Obrigado!

Um abraço,
Maurício.

Puebla disse...

Existem pessoas que fotografam seu tempo, com imagens relacionadas ao contexto regional e global, que são impressindíveis pelo olhar arguto e riqueza de detalhes para que possamos enriquecer com bons argumentos nossas opiniões das coisas. Eu sempre acompanhei Fausto Wolf, Diaféria, Rubem Braga em suas crônicas as quais me identificava e apreendia sobre o dia a dia de nossa gente e de gente que não era tão nossa. Tenho em você essa continuidade da clareza e o objetivo de bem informar que tanto me fazia falta. Que não lhe faltem os dedos camarada.

~*Luana Medeiros Weyl: disse...

É sempre um alívio ler seus textos. Me sinto menos só com meus pensamentos.

E não posso esquecer: parabéns, pelo texto como um todo, ótimos argumentos e linha de raciocínio.

Anônimo disse...

Maurício, vc esqueceu de colocar créditos na fotografia!!!
Pode fazê-lo, por favor?
Um abraço, LF Dudu Azevedo

Unknown disse...

Puebla,

Assim você me mata do coração. Se queria me reanimar em relação ao blog, conseguiu. Muito obrigado. Um abraço.


Luana,

Obrigado, seus comentários são um grande estímulo!



Anônimo,
Os créditos pela foto estão ao final do texto, como em todos os posts.

Tânia Marques disse...

Quero seguir o seu blog. Vou utilizar uma imagem dele, mas postarei seu link como fonte. Visite os meus:
www.marquesiano.blogspot.com
www.degraucultural.blogspot.com
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www.arteportodososlados.blogspot.com

Beijos