Era uma exposição que reunia alguns dos principais pintores do Ocidente do período 1860-1960, com destaque para os pré-modernistas franceses do final do século XIX, como Degas, Monet, Manet e Renoir.
Após examinar detidamente, com ar de interrogação, um quadro de Cézanne, ela virou-se para mim e disse, resoluta, algo como:
“- Esse cara não pinta nada. Isso é pura enganação”.Achei muito engraçado e limitei-me a sorrir um riso solto. Estava uma tarde maravihosa e meu maior interesse era que a noite fosse ainda melhor. Ela era particularmente sensível em relação a sua formação cultural e se há um papel que eu detesto fazer, nesses casos, é o de professor fora das salas de aula. Deixei rolar.
Mesmo porque, se proferida sem contextualização alguma e a partir dos critérios estéticos do presente, a observação dela faz sentido. Observemos o quadro de Cézanne reproduzido acima - da série Château Noir, pintada entre 1904 e 1906 (ano de sua morte) e considerado um marco influencial na transição da arte novecentista para o modernismo radical do século XX: por um lado, ele é claramente insatisfatório se avaliado a partir de uma perspectiva figurativa clássica, pós-renascentista (pois é evidente que, intencionalmente, a paisagem retratada não reproduz – apenas emula - a paisagem observada); por outro lado, ele não atinge o grau de ambivalência estética nem a hipertrofia de sentidos do alto modernismo.
Daí que para entender a grandeza da arte de Cézanne talvez seja preciso – ou recomendável - não apenas contextualizá-la em seu tempo e em relação à história da arte - em termos de ruptura de parâmetros de representação e de topos estético -, mas analisá-la a partir de seus desdobramentos últimos para a arte moderna: é a partir do contato com algumas das obras máximas de um certo modernismo pictórico - digamos, com o Picasso de Les mademoiselles de d’Avignon – que, retrospectivamente, fica mais “fácil” enxergar-lhe a excelência.
A escolha de uma obra de Picasso para sublinhar, retrospectivamente, a influência inovadora exercida por Cézanne - num processo que o escritor argentino Jorge Luis Borges define como “a capacidade de influenciar seus predecessores” - não se deve ao acaso: o pintor andaluz explicitou diversas vezes tal influência, chegando a declarar, como se falasse em nome dos modernistas do século XX, que "Cézanne é o mestre de todos nós".
Por que me lembrei desse episódio menor e teço tais comentários? Porque eles se relacionam com uma questão que me parece premente na blogosfera. Uma novidade muito positiva que ela trouxe às relações comunicacionais é a democratização das opiniões: não são, no mais das vezes, títulos acadêmicos, status social ou posição profissional que determinam a legitimidade das opiniões do blogueiro (e dos comentaristas), mas o modo como uma comunidade de leitores – variável em número e perfis - com elas interage.
Esse processo, no entanto, não está livre de certas vicissitudes. Uma das maiores, na minha opinião, é justamente uma certa tendência a defender opiniões que, mesmo se bem-formuladas e coerentes de um ponto de vista lógico, já foram exaustivamente debatidas por pensadores e teóricos, muitas vezes com um grau de elaboração muito mais desenvolvido.
Dia desses, em meio a um acalorado debate político no Twitter, o amigo @bruno_pinheiro – o médico mais intelectualizado que conheço – soltou um comentário lacônico, mas que me pareceu precioso: “Acho que as pessoas deveriam ler Gramsci”. Sem ser deselegante ou confrontar diretamente ninguém, ele tornou evidente o absurdo de se pretender discutir tal tema em profundidade sem conhecer sequer os conceitos básicos da teoria política.
Espero que eu esteja errado, mas um de meus receios é que a afluência cada vez maior de blogueiros com baixa faixa etária numa atividade já característicamente dominada por jovens – portanto, com menor formação cultural, possivelmente mais refratários à leitura e há muito acostumados, segundo Eric Hobsbawn, a viver num “eterno presente” – possa vir a agravar o problema.
Pois, idealmente, à democratização da opinião não deveria corresponder a demonização do conhecimento acumulativo e o fastio com textos volumosos, como às vezes parece acontecer. Há certos conhecimentos que só os livros - e o tempo, concentração e reflexão que demandam - trazem. Negligenciá-los em prol de uma produção tão profícua quanto pouco embasada e de debates circunscritos ao aqui-agora é aumentar o risco que um dia Cézanne seja classificado como um enganador e a maioria aquiesça.
5 comentários:
Cézanne captou o movimento e o comportamento da cor com a luz do local, não precisa ser muito estudado para perceber que ele não tinha nenhuma intenção de reproduzir o que ele via como uma câmera fotográfica, artes visuais é aprender a ver, mais do que repetir o gosto de alguém, talvez vendo menos televisão essa nossa vivência se afaste um pouco da concepção hierárquica e centralizada de ver o mundo (por que não, egípcia) para o ato criador que é protagonista e não assujeitado como é imposto por que quer definir o olhar do outro. Independência.
nem sou crítica de arte, mas gosto. até aprendi a desenhar e pintar por puro gosto, mas estou longe de ser uma artista, por assim dizer. mas ainda estou tentando entender que alguém não ache lindo este quadro, aida mais visto de perto. sempre me emociono quando posso ver grandes obras de perto, enfim ...
acho belas nele a luz, as cores,a paisagem. o ritmo das pinceladas...tá. é, eu gosto. vai ver é isso, questão de gosto.
mas quanto a conhecer das coisas para debater, por isso quando não sei fico quietinha observando e vou tentar aprender, e depois vou buscando livros, textos para ver se entendo alguma coisa, no máximo faço umas perguntas cretinas. mas para a juventude hoje está tudo muito rápido, né? em ritmo de videoclip, algo em torno de uns 3 minutos, aí dificulta, e saem umas bobagens "felomenais", como diria aquele personagem do José Wilker na novela...
eu sou doida por ele, cuja obra, aliás, sempre me debruço. lá no ellenismos tem umas coisas, mas deixarei aqui não a análise pictórica, mas um poema:
cezanneana
nina rizzi
cézanne diz:
"a paisagem se pensa em mim".
a paisagem é o pensamento de cézanne
e seu pensamento paisagem
- pensamento visual.
eu, como cézanne, sonho com os olhos da mente.
visões que transcendem formas, cores, texturas,
pela corporeidade da linguagem visual.
em produções sonhadas busco liberdade e ousadia
(uma ousadia de quem nem sabe que ousa tanto)
eu digo:
francesco se pensa em mim
- poesia visual.
*
um beijo :)
Bom dia Maurício,
Concordo plenamente, uma vez que o tempo do "online" trazconsigo todas estas questões de obsolescência do conhecimento que não for adquirido em pixels, html ou flash.
Trabalhando com alunos de ensino fundamental sofri bastante com isso, pois que não conseguiam realizar a REFLEXÃO, talvez um das maiores habilidades humanas...
vamos ver no que dá!
Ah, posso publicar seu texto em nosso blog (mucury.blogspot.com)?
Grande abraço.
ps.: o preâmbulo a partir de Cézanne foi demais!
Nina: lindo seu poema, adorei! Parabéns!
Mucury: É claro que pode. E obrigado!
Cristian: Excelentes suas observações. A questão da luz em Cézanne é fundamental, sem dúvida; eu deveria ter incluído algumas palavras sobre isso.
Iaiá: Tenho invejinha de quem sabe pintar. Com um pincel na mão sou um zero à esquerda...
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