1) Em fevereiro, a adoção do neologismo “ditabranda” para se referir à ditadura militar brasileira, numa clara tentativa de promover um revisionismo histórico à direita e de relativizar a gravidade das práticas levadas a cabo por um regime que usurpou o poder democrático e utilizou-se do Estado para perseguir, torturar e assassinar opositores;
2) Em seguida, a agressiva reação do diretor de redação Octávio Frias Filho a carta de protesto contra a utilização do termo “ditabranda” enviada pelos eminentes professores Maria Victoria Benevides e Fabio Konder Comparato. Como procurei demonstrar em texto escrito no calor da hora, a truculência trazia em seu bojo uma tentativa de restringir e dirigir o debate público, além de reforçar o processo de relativização da ditadura em curso;
3) Em maio, a perda de referenciais éticos mínimos se evidencia com a utilização de ficha policial falsa da ministra e pré-candidata Dilma Rousseff, em matéria fantasiosa e jornalisticamente insustentável sobre um seqüestro que jamais ocorreu. Após peritos da UnB e da Unicamp atestarem que a ficha era falsa, o jornal produz uma pérola de cinismo ao afirmar que não podia confirmar a autenticidade da mesma nem sua falsidade – o que corresponde a admitir como lícita a publicação de qualquer material, verdadeiro ou não (leia post certeiro de Nassif sobre o caso);
4) O show de desrespeito a normas básicas do jornalismo – e a transformação deste em atividade político-partidária – prossegue no segundo semestre com a sustentação, semanas a fio, de um factóide dos mais grosseiros – o alegado encontro de Dilma com a ex-Secretária da Receita Federal Lina Vieira -, baseado tão-somente na palavra desta, que fora demitida pela acusada. Apesar dos rocambolescos esforços e das diversas tentativas, seguidas de desmentidos, não foi possível encontrar uma data na agenda da esposa do ex-ministro de FHC para sequer tornar plausível o encontro. Após exploração intensa, o assunto morreu, como sói acontecer com factóides.
Embora muitos não cressem que a Folha poderia descer ainda mais, eis que, covardemente travestida de “análise” do filme Lula, o Filho do Brasil, o jornal publica, com grande destaque e no primeiro caderno, artigo melífluo de César Benjamin – candidato à vice-Presidência pelo PSOL nas últimas eleições -, com acusações tão graves quanto risíveis acerca do passado do presidente Luís Inácio Lula da Silva, que, segundo a mente doentia de “Cesinha”, teria estuprado um preso em 1979.
As fantasiosas acusações não ficaram em pé 24 horas, tendo sido desmentidas tanto pelos que conviveram com Lula na prisão – incluídos o delegado, o potencial “estuprado’ e diversos colegas de cela, até um membro do PSTU que, mesmo na oposição a Lula, fez questão de desmentir Cesinha - quanto pelos que presenciaram o momento em que Lula, descontraído em uma mesa de bar, anos antes de ser presidente, fez uma piada “sacaneando” um companheiro e tentando escandalizar um conviva norteamericano.
Que eu saiba a histeria politicamente correta ainda não chegou a um ponto tal que alguém deva ser condenado por uma piada de mau gosto contada há 14 anos... Mas, na combinação de sanha oposicionista e abandono de valores jornalísticos que ora caracteriza nossa imprensa, o artigo de Cesinha repercutiu nas vejas e globos da vida.
O texto é exemplar de um processo que venho há tempos apontando: o quanto os métodos da extrema-esquerda brasileira atual coincidem com os da pior direita, além de coadunarem com os da “grande mídia”, ao qual se submetem para perpetuar ataques contra o inimigo comum, fingindo não perceber que são majoritariamente os setores mais conservadores que se beneficiam de tal estratagema. Como levar a sério o discurso ético que a extrema-esquerda reiteradamente chama para si, se, na prática, se presta a atos tão deploráveis?
Para compreender o que leva um ser humano a incorrer na leviandade cometida por Cesinha é preciso conhecer essa figura trágica da esquerda brasileira. Entrou na luta armada aos 14 anos e, preso três anos depois, foi submetido a longas e brutais torturas, que lhe tiraram a audição de um ouvido. Findo o período das sevícias físicas, foi mantido em solitária, completamente isolado de qualquer contato com o mundo exterior, por três dos cinco anos em que ficou preso. Evidentemente, tal experiência foi traumática para uma mente adolescente e não é possível precisar a extensão das seqüelas que possa ter causado.
O fato é que o desequilíbrio e a tendência a lançar mão de acusações levianas e estratagemas questionáveis em nome da luta política são há décadas uma constante em sua trajetória. O jornalista com J maiúsculo Luiz Antonio Magalhães traçou um imperdível perfil de Cesinha em sua fase madura (no sentido etário, evidentemente, pois imaturidade política é um traço constante em sua trajetória, que inclui rompimento com o PT - que ajudara a fundar - em 1995 e filiação em 2004 ao PSOL, partido do qual, numa demonstração de grande coerência e caráter, sairia dois anos depois, atirando baixarias para todos os lados). Hoje, Cesinha - que, segundo vários relatos, alimenta ódio obsessivo em relação a Lula - é uma daquelas espécimes curiosas da fauna brasileira: o soi disant esquerdista que detesta um governo que tirou mais de 30 milhões da pobreza, consumando assim uma das bandeiras precípuas da esquerda e promovendo, em plena crise mundial, um ajuste estrutural na divisão social brasileira, com a ascensão de um volume significativo das classes D e E à classe média.
Porém, nunca é demais reforçar, o absurdo maior não é a redação de um artigo tão desqualificado – que jamais seria aceito por qualquer publicação séria do planeta, já que não obedece a premissas básicas do jornalismo –, mas sim o fato de ter sido publicado – e com destaque - sem que as graves acusações contra um cidadão tenham sido minimamente checadas ou que o outro lado tenha sido ouvido, como manda o próprio Manual de Redação da Folha. Trata-se de matéria baseada no "juridicamente espúrio" julgamento pelo testemunho, como assinala Diego Calazans num promissor novo blog político.
Que o cidadão em questão seja o presidente da República constitui um dado que só reforça um dano colateral dessa temporada de insanidade ética da mídia: o desrespeito pela instituição Presidência da República. Ademais, note-se que a mesma imprensa que preservou a vida privada do presidente Fernando Henrique Cardoso (apesar da notícia sobre seu filho com a jornalista da Globo despertar potenciais questões de interesse público, concernentes à relação entre mídia e governo) investe agora em um episódio do passado privado de Lula que, além de altamente improvável, é irrelevante para a administração do país (mas talvez não para a popularidade do presidente e para questões eleitorais).
Evidenciada pelos episódios acima retratados, a perda de referencial ético da mídia se efetiva, prioritariamente, devido a seus interesses político-partidários, que alimentam não apenas objeções ideológicas e de classe ao governo de turno, mas uma guerra movida por interesses materiais, já que os maiores órgãos de imprensa têm sido duramente atingidos em seu faturamento, pois, pela primeira vez na história do país, a administração federal decidiu pulverizar verbas em pequenas e médias publicações e rádios do interior do país, ao invés de concentrá-las nos “grandes órgãos de imprensa” do Sudeste.
É preciso levar em conta, porém, que tamanha liberdade de ação da mídia só foi propiciada pela impunidade garantida por recentes decisões do STF, que enfraqueceram ainda mais o parco controle sobre a atividade jornalística. Infelizmente, até pessoas que se dizem de esquerda vibraram com o fim da exigência do diploma para jornalista determinado pelo STF, em decisão que levou de roldão também o direito de resposta – único meio para obtenção de espaço para se defender de ataques oriundos da imprensa. Tais pessoas não se apercebem que quanto mais regulada e mais regulamentada a atividade jornalística, menor é a chance de tais excrescências como as praticadas pela Folha este ano ocorrerem. Não é por outra razão que a plutocracia midiática da qual Frias Filho faz parte vibrou com a decisão do STF e bloqueia sistematicamente qualquer tentativa de regulamentação da atividade jornalística – como o fez no início do governo Lula e faz agora em relação à Confecom.
(Imagem retirada daqui)
4 comentários:
Meu caro,
conheci Cesinha nos primeiros tempos do PT. Juntos, com outras pessoas, elaboramos uma cartilha em quadrinhos para os trabalhadores, sobre a construção do PT. Era uma pessoa amável. Infelizmente, decerto por motivos afetivos e políticos, com o passar dos anos tornou-se uma pessoa amarga. E o que ele escreveu pra Folha foi de uma irresponsabilidade inqualificável. Deixou de ser Cesinha pra ser um simples César Bestificado.
Abraços.
Belo testemunho, Cyrne!
A que ponto chegamos... e a que ponto Cesinha chegou...
Um abraço,
Maurício.
pior de tudo é sabe que tantos lêem a fAlha e julgam estarem se informando. se tornam verdaeiros fantoches e analfabetos políticos a repetirem bobagens por aí. prontofalei. e a Falha foi tão baixa que a expressão - falta de vergonha na cara- perdeu o sentido or desconhecerem as palavras.
Iaiá,
Mas o feitiço virou contra o feiticeiro: há evidências de que o cancelamento de assinaturas da Folha e dos serviços do UOL cresceu assutadoramente nos últimos dias.
As telefonistas foram treinadas para dar satisfações específicas em relação ao artigo.
Um beijo,
Maurício.
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