Dois
artigos publicados recentemente procuram debater, a partir de ângulos
diferenciados, uma contradição essencial da política brasileira na
última década: a ascensão do conservadorismo e a persistência de
uma pauta neoliberal durante um período em que, graças a vitória
em três eleições presidenciais sucessivas, verifica-se a hegemonia
de uma aliança dita progressista, capitaneada pelo PT. Ambos os
textos analisam, em maior ou menor grau, a postura e o papel da
militância nesse processo e fornecem subsídios para uma reflexão
mais aprofundada do tema, objetivo deste post.
O
aumento de um sentimento de frustração entre a esquerda e da
impressão de que os governos petistas estariam cada vez mais
conservadores tornou-se ainda mais evidente nas últimas semanas,
como se pode facilmente observar nos fóruns públicos e nas redes
sociais. Segundo essas fontes, tal conservadorismo se manifestaria na
promoção de um novo ciclo de privatizações - desta feita com o
agravante de utilizar o marco regulatório do governo FHC, ao invés
do de Lula -, na recusa em regularizar a mídia, nos baixíssimos
níveis de assentamento de terras contrapostos às regalias
concedidas ao agronegócio, no desmonte da Funai e no genocídio
indígena, na primazia dos pactos com o poder religioso em
relação à pauta comportamental, entre outros itens. Em São Paulo,
principal vitrine do petismo no âmbito municipal, a reação
truculenta de Haddad à greve dos professores estaria ajudando a disseminar a
impressão de que não só o conservadorismo se impõe, mas, pior,
que o petismo, que deveria combatê-lo, o reforça.
Genealogia
do pragmatismo
"…
E quando finalmente a esquerda chegou ao governo havia perdido a
batalha das ideias."
No
primeiro dos dois textos acima citados, "As esquerdas e a pauta conservadora", Roberto Amaral departe desta
citação do historiador Perry Anderson - referente à França atual
mas apropriadíssima para o caso brasileiro - para questionar
porque, segundo o colunista, mesmo após mais de uma década de
governo petista, "e apesar do agravante constituído pela
tragédia europeia, é a visão neoliberal, reiteradamente desmentida
pela realidade, que domina o debate, o noticiário e até mesmo ações
de governo".
O
articulista perfaz uma meticulosa revisão histórica das causas do
fenômeno, culpando os militares e a forma como foi feita a transição
à democracia, os partidos de esquerda que "fogem do debate
ideológico, ensarilham suas teses, saem de campo, tudo em nome da
conciliação" e, marcadamente, a mídia oligarquizada e
dominada pelo ideário neoliberal. Talvez por escrúpulos decorrentes
do fato de ter sido ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e
2004, deixa de examinar de forma apropriada o lulismo, item
prioritário em um estudo sobre a supremacia do pragmatismo ante o
ideológico na política brasileira, em relação a qual
oferece um diagnóstico sombrio:
"Silentes, acovardadas nossas esquerdas permitem que a direita, sucessivamente derrotada nas urnas, estabeleça a pauta nacional, e nela nos enredamos: ‘mensalão’, redução da menoridade penal, violência, fracasso da política, fracasso dos políticos... o eufemismo de ‘fracasso da democracia’."
Militantes
em disputa
Já
Matheus Machado, em um texto tão polêmico quanto pertinente, resume
com propriedade o atual dilema entre conservadorismo e necessidade de
avanços progressistas, e o papel da militância em tal quadro:
"Desde que o PT chegou à presidência escuto de meus amigos governistas que é 'um governo em disputa'. A tese era que a política de coalizão abrigaria forças muito diversas e que cabia disputar internamente e tomar cuidado com as críticas para não enfraquecê-lo. O resultado prático foi que a crítica e aguerrida militância petista acabou se abstendo das manifestações de rua e se dedicando cada vez mais a simplesmente justificar o governo. Mesmo agora, depois de dez anos no poder e com aprovação popular em torno de 70%, ainda vejo petistas mais preocupados em justificar publicamente os descalabros do que em criticar o abandono de causas históricas do Partido dos Trabalhadores, como a Previdência, os Direitos Humanos ou as bandeiras dos povos da floresta. Enquanto isso os militantes das outras forças da esfera federal, como a bancada fundamentalista, fincavam os pés, iam para as ruas e lançavam grandes campanhas para empurrar para a direita o centro do governo. A impressão que dá é que se o governo federal estava realmente em disputa, os antigos militantes petistas perderam por W.O."
Lógica
binária
Há
fatores que potencialmente agravaram o conformismo do petismo e de
seus apoiadores, a começar da própria conjuntura
político-partidária do país nas últimas duas décadas, fortemente
polarizada entre PT e PSDB, o que reforça uma mentalidade do tipo
"nós contra eles", binária e maniqueísta. Assim, a
necessária luta interna por uma agenda mais progressista para a
administração federal tendeu a ser negligenciada, substituída,
como menciona Matheus, por um discurso que apregoa a defesa das
plataformas da aliança capitaneada por PT e PMDB, sob o alegado risco de
municiar o adversário tucano.
Tal
distorção está no centro de um processo no qual, em nome de uma
discutível hegemonia partidária – desmentida, na prática, a cada
votação no parlamento, verdadeiras operações de guerra -, boa
parte da base petista omite-se ante a cessão não só às demandas
dos demais membros da aliança, mas ao exercício público da
militância na defesa de suas posições no interior da coligação.
O resultado prático de tal dinâmica tem sido o abandono de
bandeiras históricas do PT e o conservadorismo crescente que tem
caracterizado o governo Dilma Rousseff.
Ainda
no bojo dessa dicotomia PT-PSDB, um dos expedientes recorrentes dos
analistas simpáticos ao atual governo tem sido compará-lo, de forma
reiterada, ao de FHC, mas não ao de Lula, seu antecessor direto e que
lhe entregou um país em muito melhores condições do que ele
recebera do cacique tucano. O fato de tal comparação fazer todo o
sentido no âmbito da disputa presidencial que ora se delineia não
anula o fato de que, contraposto ao de Lula, o governo Dilma
apresenta, em diversas áreas, indiscutíveis retrocessos.
O
fator internet
Como
mencionado em post recente, há tempos pesquisas vêm demonstrando
que a web 2.0, com suas possibilidades interativas que
têm nas redes sociais sua expressão mais visível, estimula a
formação de grupos virtuais com forte identificação ideológica.
Em
decorrência de tal dinâmica, nas "igrejinhas" que de tal
processo decorrem, a discordância e o dissenso, quando não
negligenciados ou sequer levados em conta, tendem a ser punidos com a
restrição ou bloqueio do contato de quem se coloca contra o senso
comum dominante no grupo virtual. Transplantado para a seara
política, esse fenômeno estaria a estimular a formação de
comunidades virtuais em que prevaleceria, para cada participante, uma
tendência a constituir grupos interativos marcados pela
identificação com determinadas linhas, programas, ideologias,
partido ou políticos, em detrimentos de outros. Desnecessário
apontar que tal modelo tende a reforçar a já citada dicotomia "nós
x eles", com o agravante de desestimular o conhecimento das
argumentações, táticas e planos de um e de outro bloco contendor. O alerta de Lênin sobre a necessidade prioritária de se conhecer o que pensa e trama o adversário como forma de advinhar--lhe os passos têm sido irresponsavelmente negligenciado.
Revendo
o conceito de "PIG"
O
embate político, naturalmente, não se dá exclusivamente através
das redes digitais, embora venha sendo de forma crescente por estas
influenciado. Para além da dinâmica acima referida e do binarismo
PT-PSDB, outro fator a agravar o imobilismo da militância petista
advém do hábito, ora disseminado, de desdenhar a priori das
críticas às gestões petistas, descartando-as como maquinações de
uma mídia corporativa cuja ação a qualificaria como "PIG"
(Partido da Imprensa Golpista). Qualquer observador criterioso da
cena midiática brasileira sabe que esta é, em larga medida, a
expressão de uma plutocracia associada ao grande capital e ao
mercado financeiro - e, assim, infesa ao que seja reivindicação
social e contrária ao programa dos partido ditos progressistas - e
que as críticas a ela dirigidas, em larga medida, se justificam. Nos
últimos quatro anos, boa parte do material publicado por este blog
dedica-se justamente a examinar seus descalabros e denunciá-los.
Ocorre, porém, que a crítica à mídia feita com
rigor e caso a caso não pode ser substituída pelo hábito genérico
e automático de utilizar as graves deficiências da mídia
brasileira como salvo-conduto para blindar toda e qualquer medida
governamental, sob o risco de substituir o frequente tendenciosismo
midiático – que, repito, é condenável – pela recusa a submeter
as decisões governamentais a qualquer forma de criticismo – o que
é inaceitável numa democracia.
Ademais,
como mencionado em um post anterior, mostra-se cada vez mais
questionável a premissa segundo a qual o tal de "PIG"
tenderia a se colocar invariavelmente contra os governos petistas. O
silêncio quanto à truculência dos governos Dima e Haddad ante greves
e o apoio entusiasmado às privatizações são sinais claros de que,
quando a ideologia neoliberal que orienta a mídia corporativa e as
medidas tomadas pelo governo petista se harmonizam, não há relação
de oposição entre eles – pelo contrário. Alguns analistas, como
o jornalista e blogueiro Luis Carlos Azenha, vão mais longe e
apontam uma identidade de interesses entre a mídia corporativa e o
modelo orientador da estratégia desenvolvimentista ora priorizada
por Dilma.
O
fato de boa parte da militância se recusar a enxergar tais nuances,
substituindo o seu papel de força reivindicatória interna pela
defesa incondicional do governo e pela adoção do maniqueísmo
segundo o qual o "PIG" é sempre a encarnação do mal, a
leva, na atual situação, a situações contraditórias, que põem a
própria sustentabilidade de sua posição em xeque: no leilão do
petróleo, por exemplo, sua tentativa de justificar o retorno à
privatização em moldes fernandistas encontrou eco na opinião de
jornalistas os quais despreza e odeia, pela negatividade e marcação
cerrada que alegadamente fazem ao governo – casos de Miriam Leitão,
Carlos Sardenberg e William Waack, exultantes com a medida. Ora, o
fato de tal medida ser saudada por tais arautos do mercado e do
neoliberalismo não deveria levar a militância a uma reavaliação
reflexiva, que superasse o mero automatismo com que defende o governo
Dilma?
Críticas
contraproducentes
Além
disso, a esta altura da peleja, parecem questionáveis os efeitos do
imenso investimento da militância em desqualificar a mídia, não
sendo despropositado apontar que ele resulta contraproducente em ao
menos três aspectos, além dos já apontados:
- Mantém a esquerda e seus canais comunicacionais em uma posição meramente reativa e a reboque da mídia corporativa, que acaba por pautar-lhes;
- Agrava a sensação de saturação da crítica de mídia como instrumento político, saturação esta que o mencionado Azenha já diagnosticara por ocasião do primeiro encontro entre blogueiros progressistas, em 2010;
- Demonstrar, através da crítica de mídia e sobretudo para a própria militância, que grupos comunicacionais reconhecidamente conservadores e antipetistas são conservadores e antipetistas toma, dia após dia, um tempo e um investimento em trabalho enormes, os quais poderiam ser melhor gastos na organização de formas de pressão pública para que o governo que a militância apoia aprovasse um marco regulatório para as comunicações, bandeira histórica da esquerda e do partido e item de primeira necessidade para o aprimoramento da democracia no Brasil.
A
Justiça como inimiga
Um
terceiro fator a desviar a militância petista de sua prioritária
missão de lutar contra o conservadorismo e pelas bandeiras
históricas do partido advém dos ódios decorrentes da relações
entre o partido e a Justiça – particularmente o STF -, no bojo do
julgamento da AP 470, vulgo "mensalão". Não se questiona,
aqui, o mérito da revolta petista contra as decisões do tribunal –
cujos métodos questionáveis foram repetidas vezes por este blog
criticados. E sim a constatação de que muita energia está sendo
dispersada num combate diário, feito de denúncias - fundadas ou não
-, tentativas de desqualificação, e acompanhamento à lupa dos
mínimos gestos dos ministros do Supremo e do Procurador-Geral, sendo
que é pouquíssimo provável que tal mobilização resulte em algo
efetivamente proveitoso, que não o exorcismo de eventualmente
justificáveis ódios e ressentimentos pessoais.
O
momento é grave e apresenta desafios concretos: o tamanho e a
importância da luta política contra o conservadorismo no Brasil,
neste momento, pedem ações mais articuladas e objetivamente
efetivas. Se a militância petista investisse na luta política
interna metade da energia que diariamente gasta para desqualificar
Joaquim Barbosa certamente o governo Dilma não seria reiteradas
vezes tachado de conservador.
Estratégia
de vitimação
A
todos esses fatores, acrescenta-se um temor adicional: o de que tanto
o hábito de culpar o "PIG" quanto o de acusar o Judiciário
– em ambos os casos antevendo intenções golpistas - esteja
levando parte considerável do petismo não só à intransigência
ante críticas, mas ao hábito de se vitimar, considerando, ante
críticas e ponderações, que o partido é uma vítima frequente de
injustiças.
"Incrível
como tudo é culpa do PT" é uma resposta ouvida com frequência
entre a militância e nas redes sociais, à mínima ponderação ou
crítica que se faça; resposta esta que evidencia, a um tempo, o
processo de vitimação acima referido e a recusa em reconhecer que
um partido no poder - e há mais de 10 anos - está naturalmente
sujeito a muitas críticas e inquirições, ainda mais se ora promove
um retrocesso conservador em franca contradição com sua plataforma
eleitoral, tão crítica às privatizações e ao capitalismo
predatório.
Da
necessidade de mobilização
A
reação de muitos petistas ao
conservadorismo atroz do governo Dilma e a atitudes francamente
contrárias ao espírito democrático petista tomadas por alguns de
seus governadores e prefeitos mostra que caráter retrógrado
que acometeu a atual administração federal não é um fenômeno isolado. Ele (se)
reflete, cada vez mais, (n)o comportamento de uma militância que se
mostra disposta a avalizar a renúncia a princípios éticos e
programáticos em troca da manutenção do poder – ainda que este
poder, em larga medida, esteja servindo para repor uma pauta
conservadora e privatista, a qual difere tanto das bandeiras
históricas do PT quanto dos compromissos eleitorais da candidata
Dilma.
A
militância do PT é uma força social representativa, que teria
muito a contribuir para o aprimoramento da democracia brasileira caso
saísse de sua posição majoritariamente conformista de hoje, em
que, malgrado as raras e louváveis exceções que confirmam a regra,
prevalece a defesa acéfala de toda e qualquer medida governamental.
Com a ajuda dos simpatizantes e dos demais setores de esquerda que
ainda se dispõem a dar um voto de confiança ao PT, a militância
poderia, vindo a público, colaborar de forma decisiva no sentido de
corrigir a rota excessivamente conservadora que o governo Dilma
assumiu desde seu início e radicalizou ainda mais nas últimas
semanas.
Mas
trata-se de uma missão cuja urgência é máxima, determinada por
novas privatizações no horizonte - altamente ameaçadoras à
autodeterminação nacional que Dilma jurou defender - e pela
necessidade de impor uma marca esquerdista efetiva à aliança
liderada pelo PT, resgatando os valores históricos do petismo e
evitando, assim, a fuga de um eleitorado mais à esquerda que não
suporta mais o retrocesso e o descompromisso com a agenda de campanha
do atual governo federal. Tal mobilização vai acontecer? Muito
provavelmente não, pois o pragmatismo eleitoral tende a atropelar
escrúpulos e consciências, mas o recado está dado.
(Imagem retirada daqui)
3 comentários:
O discurso do 'fim do PT', do 'endireitamento do PT', ou do 'vira-casaquismo do PT' é, em geral, o lugar comum na fala do pessoal dos partidos emergentes que desconhece os meandros da realidade política concreta, ou o escamoteia intencionalmente na hora de analisar os fatos. Para construir os novos partidos (emergentes), têm que primeiro demolir a imagem do PT e ocupar seus espaços tradicionais. A estratégia é essa. Não se combate os que de fato mandam no capital: combate-se o PT (curioso, não?).
Sala Fério,
O seu comentário corrobora, de forma cabal, boa parte do que o artigo afirma: a vitimação constante, o esforço para desqualificar toda e quaquer crítica como tentativa de destruir o PT, a paranoia que enxerga "partidos emergentes" por trás do mínimo reparo.
O final, então, é um primor nesse sentido: "combate-se o PT (curioso, não ?)". Quando o que se está criticando é justamente a falta de vontade política da militãncia de combater os ideais do PT, ao invvés de sucumbir de forma passiva ao conservadorismo do rstante da base aliada.
Não sou filiado a partido nenhum nem tenho, no momento, simpatia por nenhum deles. Tive pelo PT, até o momento em que o retrocesso conservador levado a cabo por Dilma - que é ben real e visível aos que não se recusam a ver - atingiu um ponto intolerável para alguém que realmente acredita nos ideais da esquerda.
O FATO é que o PT está se abaixando demais para obter apoios. Sarney, Maluf, PMDB.... E quem se abaixa demais acaba mostrando a BUNDA. Após 10 anos de Governos Progressistas o STF, a PGR e a PF ainda são Tucanos, a LEI DE MÍDIAS, mandamenteo constitucional é uma quimera, as PRIVATIZAÇÕES aos poucos retornam à pauta do dia e os JUROS volta a subir ante a gritaria do PiG.... Isso é intolerável. ACORDA PT !!! ANOS tuKKKânus LEWINSKYânus NUNCA MAIS !!! NO PASSARÁN !! VIVA GENOÍNO !! VIVA ZÈ DIRCEU !! VIVA A LIBERDADE, A DEMOCRACIA E A LEGALIDADE !! VIVA LULA !! VIVA DILMA !! VIVA O PT !! VIVA O BRASIL SOBERANO !! LIBERDADE PARA BRADLEY MANNING JÀ !! FORA YOANI !! ABAIXO A DITADURA DO STF gloBBBobalizado!! ABAIXO A GRANDE MÍDIA EMPRESARIAL & SEUS LACAIOS e ASSECLAS !! CPI DA PRIVATARIA TUCANA, JÁ !! LEI DE MÍDIAS, JÁ !! "O BRASIL PARA TODOS não passa na gLOBo - O que passa na gloBO é um braZil-Zil-Zil para TOLOS"
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