O
debate sobre a questão das drogas volta a ocupar um lugar de
destaque na agenda pública, no bojo da realização do I Congresso
Internacional sobre Drogas, em Brasília, do noticiário sobe
internação compulsória de viciados em crack no Rio e em São Paulo
e às vésperas da votação de mais um projeto de lei sobre a tema,
de autoria do deputado da base aliada Osmar Terra (PMDB/RS), que
reinstitui a criminalização do usuário.
Como
narra Walter Maierovitch, "preocupados com o projeto retrógrado
do deputado", os participantes do congresso, que reuniu
especialistas de todo o mundo, decidiram enviar uma carta à
presidente Dilma, alertando para os riscos de um retrocesso
militarista no trato do tema e defendendo a descriminalização de
drogas, com seu uso sendo tratado no âmbito da saúde pública.
Ainda que, com a notável exceção de Carta Capital, a maior parte
da mídia corporativa tenha, como apontou Sylvia Debossan Moretzsohn
em ótimo artigo
sobe a questão, se mantido alheia ao debate, ele ferve nas caixas de
comentários, nos blogs, nas redes sociais.
A
razão relegada
Poucos
temas ilustram de forma tão clara a oposição entre os argumentos
da razão e os preconceitos moralistas – e a persistência destes
ante aqueles - do que a discussão sobre a questão das drogas,
notadamente no que diz respeito à proposta de descriminalização do
uso de drogas leves, medida que passou a ser defendida pela maior
parte dos especialistas no assunto após o fracasso do modelo
militarista de "guerra às drogas" impostos pelos EUA nas
últimas quatro décadas.
Assim,
por mais que estudos e pesquisas obedientes aos mais rigorosos
protocolos demonstrem, de forma cabal, a falência de tal política,
e que um número expressivo de especialistas no tema afiance os
benefícios econômicos, sociais e psicológicos de um modelo em que
o uso pessoal de drogas deixe de ser crime e o comércio destas -
como o do álcool ou do tabaco - passe a ser regulamentado e
supervisionado pelo Estado, persiste, em setores da população, um
grande estigma, uma ojeriza de origem moralista intrínseca a
qualquer proposta que apregoe distensão na repressão ao uso de
drogas.
Falência
de um modelo
Além
do estigma que, a partir da reação
conservadora às promessas liberalizantes dos anos 60, circunda a opinião pública sobre as drogas, a retomada de
uma visão mistificadora e preconceituosa do tema vem sendo, há
tempos, estimulada no país, tento atingido o paroxismo no governo de
Fernando Henrique Cardoso, quando uma série de campanhas
publicitárias, baseadas justamente na caracterização do usuário
como o dínamo financiador e primeiro elo do tráfico de drogas, foi
durante anos veiculada. Que FHC tenha mudado radicalmente de opinião
e seja hoje um dos principais defensores do abandono do modelo de
"guerra às drogas" constitui, malgrado a incoerência,
mais uma forte evidência da falência do antigo modelo.
Um
comentário ao texto
de Maierovitch resume a persistência de tal estratégia simplista de
culpabilização: "Sem usuário não tem droga nem traficante.
Cadeia para os usuários!!", escreve o leitor José Carlos
Castilho. Para além de se constituir numa quimera tão irrealizável
quanto totalitária, um dos principais problemas com esse tipo de
raciocínio é que se baseia na premissa de que ao aumento da
repressão e encarceramento de usuários corresponde a diminuição
(e eventual extinção) do número de pessoas que usam drogas.
Trata-se, no entanto, de uma correlação falsa, que persiste no
senso comum, mas que vem sendo seguidamente desmentida pela
realidade, como o comprova a experiência de diversos países em que,
à revelia do investimento de fortunas em repressão, o número de
usuários mantém-se estável ou mesmo aumenta ano após ano.
Ou
seja, de acordo com essa lógica baseada tão-somente na repressão,
o governo, além de infringir as liberdades individuais, vê-se
obrigado a arcar, todo mês e de forma crescente, com uma fortuna em
gasto direto – seja no aparato de segurança repressivo ao usuário,
seja no custeio do encarceramento deste – e indireto – na
utilização de parte da pauta do Judiciário para os trâmites
legais relativos a cada autuação ou como forma de suprir o déficit
na cadeia produtiva gerado pelo aprisionamento de milhares de
cidadãos. E tudo isso para atingir resultados pífios ou mesmo
negativos, num eterno e custoso enxugar gelo.
Direito
recreativo
Em
oposição a uma possível maioria que prefere se ater aos
estereótipos e ao moralismo no que concerne à questão das drogas,
rejeitando as evidências advindas do campo acadêmico e científico,
um contingente expressivo mas aparentemente minoritário de usuários
de maconha e de cidadãos que apoiam sua descriminalização não
consegue entender como drogas comprovadamente mais nocivas à saúde
– como o álcool e o tabaco – têm livre circulação na
sociedade enquanto cidadãos podem voltar a correr o risco de ser
presos pelo simples ato de ingerir fumaça de uma planta, prática
que, na pior das hipóteses, pode vir a prejudicar apenas o próprio
usuário e que, de qualquer maneira, por caracterizar-se como decisão
individual e isenta de danos a terceiros, não deveria caber ao
Estado regular.
Não
parece correto, a essa minoria e a um número crescente de cidadãos,
que, numa sociedade hiperconsumista, que proporciona e estimula toda
sorte de vícios – muitos altamente nocivos -, alguém deva arcar
com os graves custos – pessoais, profissionais, familiares,
psicológicos – de uma prisão apenas por fazer uso recreativo da
maconha. E afigura-lhes claro que poder fazer tal uso de forma
legalizada, sem contato com a bandidagem, e em que o produto, de qualidade
supervisionada, recolheria os impostos correspondentes, gerando dividendos públicos, seia o mais
benéfico para o usuário, para o Estado e para a sociedade.
Além
do que, assegurar o direito das minorias é uma característica
distintiva das democracias avançadas.
(Imagem retiada daqui e manipulada digitalmente)
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