O
anúncio de que o vice-governador de São Paulo, Guilherme Afif
Domingos, foi convidado para o ministério de Dilma, assumindo a
Secretaria da Micro e Pequena Empresa, expande ainda mais os já
dilatados limites da aliança federal capitaneada pelo PT, redesenha
o cenário para as eleições presidenciais do ano que vem e causa
estupor em militantes, simpatizantes e apoiadores do atual governo.
Afif
é figurinha carimbada do conservadorismo paulista e uma das estrelas
do PSD, a agremiação "nem de esquerda, nem de direita, muito
pelo contrário" fundada por Gilberto Kassab, o qual, a despeito
do péssimo desempenho à frente da prefeitura de São Paulo,
mostrou-se capaz de articular o que é hoje a terceira maior bancada
partidária no Congresso – numa contradição que, açulada pela
voracidade com que o petismo se atirou nos braços do neoaliado,
muito diz a respeito da relação entre meritocracia, ética e
política no Brasil.
É
difícil, para parte do eleitorado, compreender como Afif, um
político que nas últimas eleições fez campanha apoiando o PSDB,
tendo sido desde então nada menos do que o vice do cacique tucano
Geraldo Alckmin, possa, do dia para noite - e sem maiores explicações
-, ser recebido de braços abertos pela aliança petista. Não há
como dissipar a impressão de que alguém foi ou está sendo enganado
nessa história.
Pauta
conservadora
Para
além da confusão na mente de parte do eleitorado e de questões
relacionadas a coerência e programa partidário, a aliança com o
PSD levanta, uma vez mais e de forma aguda, dúvidas acerca de qual o
limite que distingue a ampliação da hegemonia da aliança
capitaneada pelo PT e a descaracterização desta através da
incorporação de pautas ditadas pelos novos aliados à direita.
Sim,
pois é preciso uma dose cavalar de ingenuidade – ou de ignorância
política – para não se dar conta de que cada aliança selada
significa a incorporação de uma pauta estranha àquela com a qual o
governo foi eleito. Que tais alianças se deem com partidos à
direita do espectro político – o que tem sido a norma da atual
administração federal petista – implica, inescapavelmente, em
mais um retrocesso em um governo que, exceção feita à política de
juros, tem se caracterizado por um conservadorismo atroz.
Retrocessos
Senão,
vejamos: na mesma segunda-feira em que foi anunciado o convite a
Afif, César Gaviria, ex-presidente da Colômbia, deu ótima
entrevista à Folha de S. Paulo
em que, levando em conta a bem-sucedida experiência colombiana no
trato da relação entre drogas e violência, faz duras críticas às
atuais políticas brasileiras para a questão e às propostas de
diminuição da maioridade penal e de punição do usuário. Deixando
evidente nosso atraso em relação à América Latina no trato do
tema – agravado no governo Dilma, acuado sob pressão religiosa -,
chega a declarar que "Dói em mim ver o que está ocorrendo no
Brasil, pensando em soluções tão contraindicadas e alheias ao que
está acontecendo no mundo".
A questão das drogas e da criminalidade
é apenas um exemplo do retrocesso vivido pelo país durante o
governo Dilma, ao qual poderiam ser acrescidos diversos outros, em
sua maioria graves, tais como:
- O descaso para com o genocídio indígena, seja em seu formato cotidiano (desnutrição infantil, alcoolismo, alto índice de suicídios), no enfrentamento com o aliado ruralista ou no bojo de megaobras como Belo Monte;
- A timidez extrema nas políticas de gênero, que continua a negligenciar a questão do aborto, adia temas já resolvidos na pauta da maioria das democracias e tem deixado homossexuais sujeitos rotineiramente à violência urbana;
- A leniência (ou mesmo cumplicidade) com as ameaças recorrentes ao Estado laico;
- O desmonte e sucateamento das políticas culturais herdadas da gestão Gil/Juca Ferrira no MinC, o retrocesso no trato dos direitos autorais no âmbito da cultura digital e a instrumentalização político-partidária da Cultura;
- A perpetuação e o estímulo – via ProUni – a um modelo de ensino superior privado de péssima qualidade, oligopolizado e que viola de forma recorrente a legislação trabalhista no trato que dispensa aos professores;
- Ameaça de sucateamento do ensino superior público, com lei que, na prática, proíbe a exigência de diplomas de mestre ou de doutor nos concursos para os novos professores das universidades federais;
- Sobreposição do desenvolvimentismo a todo custo aos anteparos ecológicos legais, cujo exemplo cabal é o descumprimento impune das cláusulas estipuladas nas licenças ambientais para a construção da usina de Belo Monte;
- Desinteresse em promover a democratização das comunicações no país, explicitada, por um lado, na recusa em promulgar uma Lei de Meios que - a exemplo do que acontece nas democracias avançadas e em vários de nossos vizinhos sul-americanos - regularize em bases republicanas a atividade midiática; e, por outro, na recusa em valer-se de outro critério que não o de audiência para distribuição das verbas publicitárias federais via Secom.
Alianças cobram seu preço
O
quanto tamanho retrocesso se deve à ânsia desmedida por hegemonia
político-partidária via alianças com forças da direita - e dos
compromissos com estas deriva-se - é matéria que caberá aos
cientistas políticos do futuro decifrar. O certo é que tal guinada
conservadora contradiz vários compromissos de campanha da candidata
Dilma - inclusive a recusa às então tão criticadas privatizações,
as quais agora, candidamente apelidadas de "concessões",
se tornaram recorrente política de Estado.
Em
decorrência, a atenção do governo Dilma parece estar ora
concentrada em um lugar outro que não seus compromissos
programáticos, dividida entre a obsessão economicista e a
prioridade à reeleição. Quanto a esta, a aliança com o PSD
consagra a hegemonia parlamentar da atual administração federal e
deve dar à presidente-candidata um tempo de TV consideravelmente
maior ao de seus concorrentes nas eleições de 2014. Vários
analistas políticos consideram que, com isso, ela passou de forte
candidata a virtualmente imbatível.
Pode
ser. Resta saber, no entanto, a que custo e com quais alterações
programáticas. Pois, se conservando a aliança com o PMDB e premida
pelos compromissos assumidos com setores religiosos, o primeiro
mandato de Dilma já foi muito mais conservador do que o prometido –
e um claro retrocesso em relação ao governo Lula, em áreas como
Cultura, Direitos Humanos, Ecologia, Educação e Saúde - causa
temor vislumbrar o que pode vir a ser um seu segundo mandato escorado
na bancada evangélica e no neoaliado PSD.
Ideologia,
pra viver
A
um ponto tal que se mostra necessário questionar, neste momento, se
um governo submetido a tais alianças pode vir a atender, de fato e
em que bases, a uma pauta de centro-esquerda ou, ao contrário, se o
que faz é dar fôlego ao conservadorismo em um raro momento
histórico em que este se encontra claramente desprestigiado em nosso
país.
Da
resposta a esta pergunta – e da postura que a partir daí a
esquerda e a centro-esquerda tomarem – depende a possibilidade de
movimentações que alterem esse quadro em que ampla hegemonia se
confunde perigosamente com cooptação e desideologização da
política.
(Post atualizado às 17h52min.Imagem retirada daqui)
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