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domingo, 13 de dezembro de 2009

Abraços Partidos: Almodóvar, mais sóbrio, faz grande cinema, com um quê de melancolia

Ninguém filma cenas de sexo como Almodóvar. Em Abraços Partidos há três delas – duas extasiantes e uma tormentosa, e todas recebem tratamento audiovisual único e especial. A primeira, entre o cego Harry (Lluís Hommar) e uma loira estonteante, que conhecera por acaso nas ruas, é um travelling paralelo à parte do trás do sofá em que se engalfinham, de modo que o ato toma a forma abstrata de uma parede vinho de onde emergem em intervalos mais ou menos regulares partes do corpo do protagonista, que está por cima da mulher. Abstrai-se a representação sexual – sem deixar de efetivá-la - em prol de um êxtase visual.

A despeito do excelente desempenho de Hommar como Harry, o roteirista cego que protagoniza o filme, e embora a trama gire em torno do personagem e debata, sob uma perspectiva masculina, temas como sexualidade e paternidade – a um ponto tal que Tudo Sobre mi Padre seria um título perfeitamente coerente para Los Abrazos Rotos -, as mulheres, uma vez mais, roubam a cena: Blanca Portillo está impecável como Judit, a agente de Harry ainda apaixonada pelo cliente e que mascara em praticidade e devoção a tensão interna transbordante provocada por segredos do passado; mas é Penélope Cruz quem rouba a cena, como Lena, a moça que comercializara seu corpo ao patrão magnata em troca de assistência a seu pai, acometido por um câncer terminal, e que, presa desse casamento por interesse, se apaixona por Harry.

Confesso que, até agora, Penélope Cruz não havia me convencido como atriz de primeiríssimo nível. Suas interpretações em Vicky Cristina Barcelona (Woody Allen, 2008) - que lhe valeu o Oscar -, em Não Se Movas (Sergio Castelitto, 2004) e, sobretudo, em Volver (Almodóvar, 2001) confirmavam um talento que juntava beleza, naturalidade e técnica, mas ao qual parecia faltar um certo élan que só as grandes damas da interpretação alcançam. Em Los Abrazos Rotos, no entanto, ela atinge sua melhor forma, com um dos mais impressionantes desempenhos femininos no cinema dos últimos anos. Percorre uma vasta gama de registros dramáticos: paixão, ódio, nojo, euforia, repulsa, dissimulação, utilizando de forma extremamente expressiva os olhos e a boca – como a deliciosa sequência em que fotografa como Audrey Hepburn demonstra de forma didática -, e a essa expressividade acrescenta uma tensão permanente e um quê de melancólico que são a pedra de toque de sua performance.

O fato de o protagonista Harry trabalhar como roteirista de cinema propicia uma multiplicação das referências metacinematográficas, como o hilário roteiro para um filme de vampiros que desenvolve com o jovem Diego (Tamar Novas) e, com maior ênfase, através da filmagem, edição e reedição de um filme dentro do filme – uma comédia de cenário multicolorido e com ecos de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), protagonizada por Lena. O ciúme que ela desperta em seu marido, o magnata Ernesto Martel (José Luis Gómez), também é pretexto para novas intervenções metacinematográficas, tanto através da vigilância que, a pretexto de fazer um documentário, Ernesto Martel Jr., vulgo Ray X (Rúben Ochandiano), leva a cabo com sua câmera quanto com as sessões em que o milionário, com o auxílio de uma profissional que lê lábios, acaba por descobrir-se traído pela esposa.

A profusão de cores vivas de muitas das obras de Almodóvar dá lugar a um padrão cromático que, apesar da presença eventual do laranja, privilegia as cores frias, como o azul cobalto, e os tons escuros, do cinza ao marrom escuro. A direção de arte é menos ostensiva e detalhista do que de costume, a despeito das cruzes multicoloridas que adornam as paredes das casas de Harry e de Judit e das estantes feitas de múltiplos compartimentos, as quais funcionam como um segundo plano esteticamente rebuscado e metaforicamente sugestivo dos personagens em cena.

As referências ao mestre do melodrama Douglas Sirk são uma vez mais evidentes, no universo doméstico dos conflitos, na dramaticidade das relações paternais e filiais e na oposição entre união por interesse e amor verdadeiro mas trágico. Em certo sentido, o filme pode ser interpretado como uma espécie de versão masculina de Sublime Obsessão (Magnificent Obsession), que realizador dinamarquês dirigira nos EUA em 1954. Almodóvar percorre, talvez com mais intensidade do que obras anteriores, um repertório de temas clássicos do gênero, com doenças terminais, morte paterna, cegueira, vingança filial, segredos do passado e até mesmo uma sequência-chave que se desenrola numa escada – locus arquetípico do melodrama.[A partir de agora, o post apresenta spoilers; se não quer saber o final do filme, não leia.]

Abraços Partidos peca, ma minha opinião, pela manutenção insatisfatória do interesse narrativo após o acidente-clímax em que morre Lena. A deficiência mais recorrente no cinema de Almodóvar – a perda de ritmo narrativo ao longo do filme –, que até então vinha sendo contornada de modo raro em sua filmografia, enfim se manifesta, tornando a meia hora final um tanto maçante. Parece-me que a longa explicação do passado da relação de Harry (que então se chamava Mateo) e Judit funcionaria melhor se substancialmente encurtada, e a demasiado grande sequência do filme dentro do filme poderia perfeitamente ter sido descartada: não há dúvidas de que o trecho da comédia remontada por Harry é efetivamente mais engraçado do que seus takes anteriormente mostrados, mas é excessivamente longo e não tão engraçado a ponto de justificar sua presença intrusiva em meio ao melodrama. Soa como uma tentativa cabotina de Almodóvar de responder aos críticos saudosos de seu humor rascante e uma maneira algo tola de terminar o filme com a personagem de Penélope Cruz viva.

Mas, a despeito de tais ressalvas, o filme é perpassado por uma intensa tensão dramática, faz um retrato verdadeiro e dilacerante das ilações entre tempo e destino e entre relações de interesse e de amor. Embora sem carregar nas tintas e preservando o humor - em irrupções breves mas mordazes -, sugere uma inquietação melancólica e reflexiva na alma criadora almodovariana. Ademais, propicia momentos de grande cinema, como quando a plasticidade das imagens, enormes, de radiografias ocupa a tela, em cuidadosa montagem; ou nas tomadas aéreas da estrada que leva ao litoral espanhol, ladeada de imensas formações rochosas negras; ou quando a cegueira de Harry é pretexto para explorar a relação entre a memória tátil e memória sentimental: enquanto imagens frame a frame do último beijo que ele dera em Lena são projetadas na tela de uma TV, o protagonista tenta senti-las com a mão, como se de um filme em braile se tratasse.

Com Los Abrazos Rotos (título cujos significados a tradução para Abraços Partidos não alcança), Almodóvar consegue um feito raro na história do cinema: manter-se, por duas décadas, como um nome central no cinema internacional, e a um ponto tal que a marca de sua assinatura pessoal consolidou-se mesmo junto ao público mais amplo do cinema mainstream, o qual amealha.

5 comentários:

Hugo Albuquerque disse...

Interessante, vou ver tão logo!

Unknown disse...

Vai lá, filmaço! Abs.

bete disse...

pois é, adorei o filme. acho que desde "Volver" Penélope só cresce. Em Vicky Cristina para mim ela rouba o filme todo, até o delicioso Jávier Barden some perto dela, mas nesse ela dá show, pareo só mesmo na intérprete da Judit. Aliás é um filme que perpassa as emoções do amor romântico: paixão, desejo, posse, perda do ser amado, loucura, culpa. Os olhares da Judit quando sabe que perdeu seu homem são fantásticos, ela fica entre o ódio, o medo, a inveja, e mais tarde a culpa.
Também gostei da reverência ao cinema, aqui Almodóvar foi mais fundo nisso que antes, e em especial a dica Audrey Hepburn, que amo de paixão. mas achei interessante como vc teve um olhar masculino e cinéfilo para o filme e eu um feminino, focado na emoção dos personagens, ainda vou fazer meu post. bjs
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Unknown disse...

A atriz que faz a Judit (Blanca Portillo) tem uma força visceral, é uma atriz inata, com uma interpretação muito sofisticada (no sentido de profunda e detalhista).Ela me lembra a Lilia Cabral, não sei exatamente porquê.

Espero ansioso o seu post, com a visão feminina do filme.

Um beijo,
Maurício.

Érico José disse...

É um dos filmes que mais me cativa dele. Me vem à cabeça uma pitada de David Lynch, não sei o motivo.