Atual curador-convidado de uma exposição do Louvre intitulada “Mille e tre”, que “traça a evolução do conceito de lista através da história”, Umberto Eco afirma, em entrevista para o Der Spiegel, que o fascínio humano por listas deriva de nossa luta com a morte:
“Nós temos um limite, muito desencorajador e humilhante: a morte. É por isso que gostamos de todas as coisas que presumimos não ter limite e, portanto, fim. É um modo de escapar de pensamentos sobre a morte. Gostamos de listas porque não queremos morrer”.A matéria é encimada por foto do intelectual italiano (a quem nunca havia visto): parece, como se vê ao lado, um típico personagem de Fellini e, por uma dessas nebulosas relações que fazemos entre imagem e essência, aparência e conteúdo, alguém que não transmite visualmente a grande cultura e inteligência que possui. Imagino-o numa cena de Amarcord, como um velhinho ranzinza a ralhar contra uma fila que não anda...
Um tipo inesquecível
Mas data de muito antes da leitura da entrevista de Eco minha simpatia por listas, que se sobrepõe ao enfado que às vezes provocam. Isso graças a uma figura humana tremenda, o poeta e professor Moacy Cirne (na foto que encabeça o post), com quem convivi durante toda a graduação.
A razão de ser de Cirne no ambiente universitário, além das aulas, era distribuir pessoalmente pelo campus o Balaio Porreta, um jornalzinho (com todo o respeito) de uma folha que às vezes chegava a três edições semanais, já teve 2849 números publicados e que era a um tempo remanescente da literatura de mimeógrafo e precursor da blogosfera, para onde acabaria por migrar - confira aqui a edição atualizada.
Potiguar, com um sotaque muito forte, cabelos e longa barba brancos, havia algo de Papai Noel sertanejo em sua figura – aspecto que se realçava nos eventos festivos da universidade, quando sorteava livros e CDs (dando preferência mal disfarçada às moças bonitas) e distribuía doses de uma cachaça especial que ele trazia do Rio Grande do Norte.
Uma figura dessas não poderia sobreviver impune à pseudo-profissionalização da academia brasileira: embora seja um dos maiores especialistas brasileiros em histórias-em-quadrinhos, com vários livros e artigos publicados, e faça parte da história da literatura nacional como um dos fundadores do poema-processo, Cirne, a partir de um determinado momento, passou a sofrer uma espécie de discriminação mal disfarçada no interior da universidade, tonando-se mais uma vítima da empáfia baseada em títulos –e não em conhecimento e cultura - ora vigente. Claro está que esses doutores imberbes de nariz empinado não têm um décimo da cultura de Cirne – para não mencionar sua coerência político-ideológica - para oferecer.
Cinéfilo refinado
No Balaio Porreta, além de dar vazão à sua vasta cultura geral, ao seu conhecimento profundo (embora tendencioso – menosprezando, por exemplo, Vinicius de Moraes) da poesia brasileira, às suas firmes posições esquerdistas – e de divulgar a poesia deliciosamente pornográfica de Chico Doido do Caicó (que eu por muito tempo julguei tratar-se do próprio Cirne) - ele elaborava tudo quanto é tipo de listas, das mais óbvias às mais inventivas, mas sempre com um conteúdo que indicava profundo conhecimento literário, musical, artístico e, sobretudo, cinematográfico.
Pois ele é um cinéfilo dos mais cultuados que conheci, como se pode constatar pela sua lista de melhores filmes dos anos 2000 até agora (desça a página até a edição de 13 de novembro) – só tem filmaços, raros nas listas dos ditos críticos especializados. Nos meus últimos tempos de Rio de Janeiro, eu o via sempre nas mostras e nas sessões alternativas, e às vezes trocávamos impressões, raramente coincidentes (pois ele tinha uma tolerância ao experimentalismo formal muito maior do que a minha), sobre o filme que acabáramos de ver. Lembro perfeitamente que foi ele a primeira pessoa que me chamou a atenção para Jacques Rivette, de quem ele adorava A Bela Intrigante (La belle noiseuse, França/Suíça, 1991), com suas quase quatro horas de duração – predileção a qual passei a compartilhar tão logo assisti ao filme.
Cirne possuía uma humildade autêntica que jamais em submissão se tornava - um dom especial, raro na espécie humana mas comum a muitos nordestinos, incluindo o presidente Lula. Mas acima de todos as suas qualidades intelectuais, sua bagagem cultural e sua coerência ideológica, o que ele transmitia era uma intensa afetividade, uma generosidade nada piegas, e uma solidariedade plena de calor humano. (Na pior crise empregatícia que vivi, quando terminei o mestrado e não conseguia emprego, encontrei-me por acaso com Cirne ao ir-me inscrever para um concurso. Nunca me esqueci da expressão sinceramente desolada dele ao saber de minha situação.) Não sei se ele está na ativa como professor ou se já se aposentou, mas tenho plena convicção de que tais qualidades fazem muita falta no ambiente universitário atual.
-X-
E assim, com esse post-homenagem a um mestre querido,o blog chega, para minha surpresa, ao 100º post. Talvez eu não seja tão displiscente quanto imagino...
9 comentários:
Cara, o seu texto me emocionou. Sério! E passarei, claro, a ser letor de seu blogue.
Um grande abraço.
Ah, sim,
estou aposentado desde 2003.
Hoje vivo entre natal e o Rio.
Mais um abraço.
Aposentado desde 2003, entre Natal e o Rio? Que vida boa , hein (rs.)!
Um grande abraço,
Maurício.
Parabéns pelo 100º post!
Continue assim sempre: sarcástico, inteligente e trazendo bons temas.
Forte abraço,
Rapha
Obrigado, Raphael, abração!
pois é, né. o cabra é danado da peste mesmo. nem me lembro como cheguei até esse nome, talvez procurando alguma resenha de obra-prima, talvez poesia que saísse da mesmice, talvez até mesmo através de mim mesma, porque, pensando bem, acho que ele me achou perdida num ellenismo brabo.
pois é, tá pra nascer cabra firme assim. viva a balaiada!
quanto ao seu texto, destaco a parte em que diz do ostracismo universitário. na universidade tive um grande professor, coincidência ou não, moacyr (com erre). ele nos levava a todos os doidos a doidería-ría. e os detentores do saber, aqueles mesmos que enclausuram o conhecimento dentro da universidade, ah, não vêem os moacyres...
belo texto. e, veja, a apalavra de verificação é "impar", como o mestre aí.
um abraço.
Oi, Nina,
Muito bom seu blog, vou aparecer por lá.
Adorei "detentores do saber, aqueles mesmos que enclausuram o conhecimento dentro da universidade, ah, não vêem os moacyres...". Êita povo pra gostar de um "frame teórico" (gasp)...
Um abraço,
Maurício.
sobre universidades, eu estava falando dessa modorra e dessa mania de se achar acima de todos, como se fosse detentor da sabedoria total do universo, que existe no ambiente universitário. isso me dá preguiça e acho que atrasa demais o saber, que emperra a curiosidade e afasat muita gente que poderia contribuir, mas enfim ...aquela sua série de posts sobre a universidade foi excelente falando inclusive sobre isso.
mas a gente tem sempre um ou outro Mestre, assim com m maíusculo mesmo que inspira e deve ficar feliz que tirou um ou outro aluno das garras da mesmice ( é eles sabem que não é possível salvar a todos, infelizmente)
aí fui passear no blog do seu professor. fiquei encantada com os poemas fora do lugar comum e adorei as listas, fiquei com vontade de ver um monte de filmes ali, estou pensando em deixar o vício maldito do twitter e alugar alguns daqueles ( se conseguir achar- aqui tem uma locadora cult muito boa) e voltar pros outros 3 livros que comprei..
bjs
Iaiá,
O Balaio Porreta é porreta mesmo! Sabia que vc ia gostar!
Eu tenho uma relação ambígua com a universidade: é um dos poucos lugares em que se pode discutir certos assuntos livremente e em alto nível, mas, por outro lado, tem esse hermetismo e esse elitismo besta que poluem o ambiente.
Quanto a largar esse vício maldito que corrói a juventude brasileira - o Twitter -, é algo que tenho tentado, mas a cruel crise de abstinência não deixa..rs..
Um beijo,
Maurício.
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