Uma longa e minuciosa descrição dos suplícios aos quais eram submetidos, nos interrogatórios, os prisioneiros da Era Medieval foi escolhida por Foucault para abrir Vigiar e Punir. Embora a ambição última do livro seja, na acepção ampla, não-histórica do termo, “iluminista” - desvelar e denunciar, através do estudo das relações de saber e de controle do sistema punitivo, a natureza política do Poder (como ponto de partida para um projeto maior de questionamento de múltiplos e micropoderes) – percebe-se, nessa passagem do texto do filósofo francês, duas características latentes: o prazer que sente em descrever minuciosamente aqueles tormentos cruéis; e o esforço que faz para mitigar e não deixar transparecer tal prazer, sobretudo através do uso de uma linguagem ainda mais “des-hierarquizada” (no sentido que lhe dá Derrida) do que na maior parte de sua obra.
Mas o prazer mitigado de Foucault não o torna uma exceção, ao contrário. Como observa, em texto que merece ser lido na íntegra, Juarez Cirino dos Santos, “o objeto da pena criminal é o corpo do condenado, mas o objetivo da pena criminal é a massa do povo, convocado para testemunhar a vitória do soberano sobre o criminoso”. A cena nos é familiar, graças ao gosto hollywoodiano pelo espetáculo: a multidão excitada à medida em que o prisioneiro é amarrado a um tronco alto, o close em um tipo pitoresco, de riso sádico e banguela; a fogueira acesa, a multidão urrando.
O filme não mostra, mas ao final do espetáculo, cheiro de carne humana assada no ar, o banguelo volta à servidão, a camponesa gorda a cuidar de seus 18 filhos e o rei ao castelo, para usufruir das benesses do poder. Esse processo de adesão dos oprimidos a uma política repressiva do poder central que a um tempo lhes dá a ilusão de estarem protegidos e os impede de associar assimetrias sócioeconômicas e crime não se limita, de modo algum, a um passado distante que o cinema eternizou em Cinemascope.
Fosse este um tempo em que não existisse a patrulha ideológica de direita e citar Marilena Chaui fosse bem quisto, eu lembraria que a filósofa uspiana dissecou como ninguém o processo de adesão das classes médias ao ideário da elite no Brasil, particularmente no que concerne às políticas de segurança pública (leia-se repressão às periferias).
Tais escritos de Chaui são de meados dos anos 70, e de lá pra cá, com a ajuda dos Datenas da vida, a impressão é de que tal identificação aprofundou-se muito. Ou, melhor dizendo, deixou de se apresentar explicitamente como uma identificação plebe rude-poder; o processo tornou-se mais sutil e quase invisível. Agora a violência apresenta-se onipresente e sem distinção de classe social, com o animado estímulo de uma mídia que se beneficia tremendamente de explorá-la e difundi-la (em audiência e, no Rio de Janeiro, em poder político proporcional à sensação de refém da bandidagem que a Rede Globo conseguir impingir à população). O país pára para acompanhar determinados crimes – a adolescente que matou os pais, os pais que teriam matado a filha, etc -, então o "ibope" sobe, os anunciantes anunciam, a emissora fatura, enquanto as mulheres comentam a beleza do cabelo da apresentadora e os homens a desejam. É fantástico, o show da vida (ou melhor, da morte, da violência, do medo). Mesmo que a pessoa nunca tenha sido vítima de crime, conhece alguém que foi - na vida real nem sempre, mas na TV com certeza. E, como dizem, "a próxima vítima pode ser você".
Por tudo isso, discutir segurança pública no Brasil é estabelecer a discórdia. Se você não quer ouvir a defesa do “esfola e mata” e do “bandido bom é bandido morto”, nem pense em fazê-lo numa mesa de bar, num jantar em família e menos ainda, na academia (de ginástica; se bem que na outra também não é muito recomendável, não...). Quando se trata do tema, mesmo os mais sagazes intelectuais, professores universitários, juristas, jornalistas (até um Janio de Freitas) escorregam feio para a defesa da repressão pura e simples e não se fala mais nisso.
Isso evidencia que um dos sucessos mais incontestáveis dos setores conservadores parece ser a difusão de que os direitos humanos seriam “direito de bandidos” (tema que o blog abordou aqui). O “silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina”, de que nos fala Caetano Veloso, não passa de um flagrante celebratório de tal processo em um seu momento de consumação e paroxismo, mas que é repetido, com menor intensidade, nos pequenos espasmos sadomasoquistas de cada fim de tarde, nas versões televisivas dos jornais populares (“ banco de sangue encadernado”, na definição do também tropicalista Tom Zé).
Mas o prazer mitigado de Foucault não o torna uma exceção, ao contrário. Como observa, em texto que merece ser lido na íntegra, Juarez Cirino dos Santos, “o objeto da pena criminal é o corpo do condenado, mas o objetivo da pena criminal é a massa do povo, convocado para testemunhar a vitória do soberano sobre o criminoso”. A cena nos é familiar, graças ao gosto hollywoodiano pelo espetáculo: a multidão excitada à medida em que o prisioneiro é amarrado a um tronco alto, o close em um tipo pitoresco, de riso sádico e banguela; a fogueira acesa, a multidão urrando.
O filme não mostra, mas ao final do espetáculo, cheiro de carne humana assada no ar, o banguelo volta à servidão, a camponesa gorda a cuidar de seus 18 filhos e o rei ao castelo, para usufruir das benesses do poder. Esse processo de adesão dos oprimidos a uma política repressiva do poder central que a um tempo lhes dá a ilusão de estarem protegidos e os impede de associar assimetrias sócioeconômicas e crime não se limita, de modo algum, a um passado distante que o cinema eternizou em Cinemascope.
Fosse este um tempo em que não existisse a patrulha ideológica de direita e citar Marilena Chaui fosse bem quisto, eu lembraria que a filósofa uspiana dissecou como ninguém o processo de adesão das classes médias ao ideário da elite no Brasil, particularmente no que concerne às políticas de segurança pública (leia-se repressão às periferias).
Tais escritos de Chaui são de meados dos anos 70, e de lá pra cá, com a ajuda dos Datenas da vida, a impressão é de que tal identificação aprofundou-se muito. Ou, melhor dizendo, deixou de se apresentar explicitamente como uma identificação plebe rude-poder; o processo tornou-se mais sutil e quase invisível. Agora a violência apresenta-se onipresente e sem distinção de classe social, com o animado estímulo de uma mídia que se beneficia tremendamente de explorá-la e difundi-la (em audiência e, no Rio de Janeiro, em poder político proporcional à sensação de refém da bandidagem que a Rede Globo conseguir impingir à população). O país pára para acompanhar determinados crimes – a adolescente que matou os pais, os pais que teriam matado a filha, etc -, então o "ibope" sobe, os anunciantes anunciam, a emissora fatura, enquanto as mulheres comentam a beleza do cabelo da apresentadora e os homens a desejam. É fantástico, o show da vida (ou melhor, da morte, da violência, do medo). Mesmo que a pessoa nunca tenha sido vítima de crime, conhece alguém que foi - na vida real nem sempre, mas na TV com certeza. E, como dizem, "a próxima vítima pode ser você".
Por tudo isso, discutir segurança pública no Brasil é estabelecer a discórdia. Se você não quer ouvir a defesa do “esfola e mata” e do “bandido bom é bandido morto”, nem pense em fazê-lo numa mesa de bar, num jantar em família e menos ainda, na academia (de ginástica; se bem que na outra também não é muito recomendável, não...). Quando se trata do tema, mesmo os mais sagazes intelectuais, professores universitários, juristas, jornalistas (até um Janio de Freitas) escorregam feio para a defesa da repressão pura e simples e não se fala mais nisso.
Isso evidencia que um dos sucessos mais incontestáveis dos setores conservadores parece ser a difusão de que os direitos humanos seriam “direito de bandidos” (tema que o blog abordou aqui). O “silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina”, de que nos fala Caetano Veloso, não passa de um flagrante celebratório de tal processo em um seu momento de consumação e paroxismo, mas que é repetido, com menor intensidade, nos pequenos espasmos sadomasoquistas de cada fim de tarde, nas versões televisivas dos jornais populares (“ banco de sangue encadernado”, na definição do também tropicalista Tom Zé).
“É fácil dizer que ‘bandido tem é que morrer’ e sair por aí oprimindo toda uma população, divulgando que os habitantes das favelas e dos conjuntos e bairros populares têm propensão para o crime (...) Difícil é cobrar do Estado o respeito à lei e a proteção dos direitos que toda pessoa tem” – observa o advogado e professor de Direito da UERJ, Nilo Batista, no livro Punidos e Mal Pagos (RJ: Ed. Revan, 1990, pág. 159).
Como resultado dessas distorções, o Brasil apresenta um aparato prisional à beira do colapso, e cuja população aumentou consideravelmente no governo Lula (de 308mil presos em 2006 para inacreditáveis 445mil em 2008, ou seja, quase 50% em dois anos).
"Consequência mais tangível da hiperinflação carcerária, os estabelecimentos estão literalmente abarrotados. A tal ponto que várias cidades e estados viram-se obrigados a soltar criminosos aos milhares visando controlar a degradação das condições de reclusão".
É o que vem acontecendo, por exemplo, no Rio Grande do Sul. Mas o "detalhe" é que o trecho citado acima não se refere ao Brasil, e sim aos EUA. Não se trata de coincidência. Como o próprio autor de Punir os Pobres: a Nova Gestão da Miséria nos EUA (RJ: Revan, 2003), Loïc Wacquant, abordou em outra ocasião (em artigos para o livro La Misère du Monde, organizado por Pierre Bourdieu), é esse o resultado de uma obsessão punitiva crescente que teve lugar nos EUA em fins dos anos 80 e vem sendo importada no Brasil por todos os governos democráticos pós-ditadura militar - incluindo, como se viu, a Presidência de Lula, pusilânime para promover mudanças numa política criminal que o PT sempre criticou.
Os resultados desse processo de criminalização, no Brasil, são a repressão periférica sistemática, a estigmatização e a colocação, na prática, das periferias e favelas fora do âmbito do Estado Legal de Direito, além do aprisionamento de um crescente contingente humano em condições degradantes. Tudo isso para a obtenção (sic) de um resultado pífio, para a manutenção de índices altíssimos de violência e para o acirramento dos ódios e temores de amplos setores da população que se veem como reféns da violência.
4 comentários:
Bote excluído contra excluído e você terá um prato cheio, presa fácil para os poderes, e eles sabem disso. Sua idéia é mantê-lo. As esquerdas, por sua vez ainda não discutiram segurança a sério, não se armam para a tarefa, salvo excessões. Segurança pública é tarefa dos governos dos estados. Aqui em São Paulo quando foi que o governo do estado foi ganho pela esquerda? Alguma vez ao menos se tentou construir candidatura capaz de ganhá-lo? Não considero azar que o governo do estado de são paulo nunca esteve, por exemplo, nas mãos do pt. Não daria pra estar, se nunca foi construida uma candidatura capaz de chegar lá, e construção de candidatura demanda esforço e compromissos.
A questão da segurança é, da forma como posta pela direita, difícil de abordar pela esquerda. Demonstrar humanidade aparece para a nossa população como ingenuidade de esquerdista e fraquesa. Por isso a tarefa da construção de uma esquerdaa capaz de mecher com segurança (mesmo por que estamos acostumados a nos colocaarmos "contra ela", contra a polícia em situações que demandam isto, pelos direitos humanos, que é visto como contra a segurança, e como disse Tom Zé quando tocou pra alunos da usp na reitoria na invasão de 2007, isso confunde nosso coração de esquerda" bom ele não disse de esquerda, mas poderia ter dito, eu digo - ache o vídeo no youtube, ou no Algodão num post recente)
Que a esquerda possa trabalhar com segurança e construir candidatura ao governo do estado demanda um esforço teórico.
È, Flavinha, essa é uma das "sinucas de bico" da esquerda: como propor uma nova abordagem em segurança pública sem parecer fraca ou conivente...
Maurício,
O Direito Penal e a lógica da punição prisional são frutos do Estado Burguês. É verdade: A concepção que nós temos de presídio e de punição remonta à Revolução Francesa.
Debater a problemática penal me fascina.
O grande problema que eu enxergo em relação à lógica penalista é a dificuldade dos teóricos da área pensarem numa saída mais equilibrada para a questão do crime ou, ao menos, pensarem ela. O que ocorre, não raro, é uma polarização falsa e estéril entre abolicionistas penais e partidários do punitivismo descarado - e por vezes aloprado.
O buraco é mais embaixo, há uma série de problemas de ordem lógica na concepção de Direito Penal e da lógica prisional; prender não é a solução para os problemas da sociedade, mas por outro lado deixar de fazê-lo também não é possível.
O fato é que nem sempre houve Direito Penal e ele não existirá para sempre.
Hugo,
É um tema fascinante mesmo, daqueles que dá para debater por horas. Também acho essa polarização entre duas posições radicais de que você fala muito curiosa e contraproducente.
Não dá pra aceitar a lógica (?) do "esfola e mata", mas a defesa da abolição pura e simples do encarceramento que o próprio Wacquant defende no livro citado parece-me irreal.
Penso que a pena de prisão não deveria ser aplicada da maneira indistinta como o é no Brasil e nos EUA, até por pequenos furtos.
Mas é fato que há psicopatas e delinquentes de alta periculosidade, dificilmente recuperáveis, que precisam ser apartados da sociedade. Mas as condições de encarceramento não deveriam incluir maus tratos, superlotação e todo o tipo de violência.
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