Considero o Peru minha segunda pátria. Convivo desde os tempos da graduação em cinema com amigos peruanos, sendo que três deles são como irmãos para mim; amo o país, que irei visitar mais uma vez no final do ano; Cusco, a cidade mágica ('umbigo do mundo" em quéchua), sede do império Inca, tem, na minha vida, uma importância simbólica e afetiva que só a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro é capaz de superar. Por conta dessas circunstâncias tenho um razoável conhecimento da cultura e da história peruana, que são riquíssimas – mas também, esta última, trágica, escrita em sangue e por vezes de um absurdo que nem a mais delirante obra do realismo mágico conseguiria conceber.
Em razão disso tudo, senti um frio no peito quando, em 2006, vi confirmar-se a eleição de Alan García como presidente do país, pela segunda vez (a primeira foi de 1985 a 1990). Seria como se Collor de Mello fosse novamente eleito presidente do Brasil.
Em seu primeiro mandato, García, assim como Collor, comandou uma administração escandalosamente corrupta (mesmo para os padrões latinoamericanos) e durante a qual o país passou pela pior crise econômica de sua história, além de estar praticamente sitiado pelas ações do grupo terrorista Sendero Luminoso, que sequestrava nas estradas e com frequência interrompia o fornecimento de energia elétrica às grandes cidades. O atual presidente deixou o governo sob grande insatisfação popular e a um triz de sofrer impeachment (um ano depois, quando se intensificou a investigação sobre a corrupção em seu governo, foi afastado temporariamente do Senado e teve de exilar-se na Colômbia).
Por conta desses fatos, se, três anos antes, um analista político predizesse sua volta ao poder seria tachado de louco. Mas, nas eleições de 2006, a histeria que tomou conta das elites, da mídia peruana e, consequentemente, da classe média urbana com a possibilidade da vitória do militar nacionalista Ollanta Humala – vendido pela mídia como uma espécie de Hugo Chávez peruano – permitiu a García derrotá-lo por 52,6% a 47,4% no segundo turno.
García é herdeiro do aprismo - originalmente um movimento latinoamericano de centroesquerda dos anos 30, que acabaria por adotar a socialdemocracia nas décadas seguintes e, no Peru (onde o APRA é o partido mais organizado e massificado) desandaria, desde os anos 80, para um populismo de centro-direita, que o atual presidente peruano leva agora ao paroxismo.
O mau presságio que senti ao ouvir a notícia de sua mais recente vitória eleitoral logo se revelaria profético e é agora plenamente confirmado pelas notícias que chegam do Peru (“chegam”, prezado leitor, é modo de dizer, já que não podem ser lidas, senão em retalhos inconsistentes e tendenciosos, na nossa briosa “grande mídia" – que, como aponta Rafael Fortes, além de usualmente voltar as costas à América Latina, tudo perdoa quando se trata de governos alinhados ao ideário neoliberal).
Genealogia de um massacre
García anuncia, em dois artigos escritos em novembro de 2007, sua intenção de explorar a Amazônia através de vultosos empreendimentos madeireiros que se viabilizariam com a concessão de vastas extensões de terras a empresas multinacionais – um projeto democrático e de grande alcance social, como se vê. Seus argumentos são de um cinismo atroz, sem demonstrar a mínima consideração por questões humanitárias e ecológicas. Em dado momento, ele candidamente pergunta: “Os que se opõem dizem que não se pode dar terras na Amazônia (e por que na costa e na serra sim?)”. Nos dois artigos não há uma vírgula sobre os povos indígenas que lá habitam (e os quais o apoiaram no primeiro governo). Tal omissão não impede que a desculpa de García para implementar o programa seja a mesmíssima utilizada por governos anteriores, com os resultados sabidos: combater a pobreza.
Porém, como observam os antropólogos Alberto Chirif e Frederica Barclay, no excelente artigo (em espanhol) “Ataques y mentiras contra los derechos indígenas", “O governo, se é que o tema o interessa de verdade, não deve buscar a pobreza em lugares tão distantes como a Amazônia, e sim em Lima e nas demais grandes cidades do país, onde uma grande porcentagem da população não tem trabalho e sobrevive com rendas ínfimas. A pobreza que realmente afeta os indígenas amazônicos está precisamente nas zonas que têm sido devastadas pela colonização e pelas indústrias extrativistas, que têm contaminado o meio ambiente, afetado sua saúde e destruído suas redes sociais de solidaridade. Mas essas políticas do governo não se voltam à solução desses problemas, mas ao seu agravamento”.
No entanto, García ignora as reações negativas que seu projeto provoca e, ato contínuo, consegue do Congresso autorização, inicialmente em vigor por seis meses, para governar através de decretos legislativos (D.L.). Essa autorização é válida apenas para decisões relativas ao TLC (Tratado de Libre Comércio Perú-EUA), mas o presidente ignora esse “detalhe técnico” e passa a gerir de forma direta o país, particularmente seu tenebroso projeto para a Amazônia, sem dar satisfações ao Congresso. (Ou, posto de outra forma: a ocupação comercial da Amazônia é item obrigatório para assinatura do TLC, mas isso não pode ser publicamente assumido.)
Ataque frontal ao direito dos índigenas
Dentre os decretos que promulga está o DL 1064, “um dos mais nocivos para as comunidades indígenas, porque atropela o direito de imprescritibilidade de suas terras e permite que invasores [grilheiros] estabelecidos há apenas quatro anos se apropriem de terras comunais”, explicam Chirif e Barclay.
Em agosto de 2008 começam as paralizações dos povos indígenas nas regiões amazônicas afetadas. Elas são organizadas pela Aidesep (Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana), que representa nacionalmente os povos indígenas e reúne 1350 comunidades nativas. A pressão a princípio funciona, e o Congresso derruba a D.L. 1015, promulgada por García e chamada – observe o duplo sentido – de “lei da selva”, pois permitia que se comprasse, com a anuência de apenas 3 de seus membros, toda a propriedade de cada comunidade indígena. A Defensoría Pública também questiona a constitucionalidade da lei e as instituições do país parecem dar mostras de que funcionariam a contento, favorecendo uma solução democrática para o impasse.
Mas García, que é apoiado pelos militares, pelo grande capital internacional e, o que é mais revelador, até pelos fujimoristas - bem como pela mídia e pelos setores médios da população, concentrados nas grandes cidades e satisfeitos com o "bom momento" da economia do páis -, reage com rapidez e promulga novos decretos ao mesmo tempo em que intensifica a cooptação de setores do Congresso. É sempre bom lembrar que os dados da economia peruana têm de ser postos sob suspeita, já que o INEI (o IBGE deles) deixou de ser confiável desde que seu presidente foi demitido e processado por divulgar estatísticas que contrariavam o Executivo. Quanto aos métodos de aliciamento do Congresso, creio ser suficiente registrar que, em outubro de 2008, todo o gabinete peruano teve de renunciar por terem sido encontradas provas de políticos apristas recebendo grandes somas para alterar as licitações das vendas de lotes petrolíferos na Amazônia. Veja, caro leitor, que coincidência curiosa: o processo está suspenso porque o Judiciário alega não possuir determinados programas de computador necessários para retirar a informação dos HDs...
Em razão disso tudo, senti um frio no peito quando, em 2006, vi confirmar-se a eleição de Alan García como presidente do país, pela segunda vez (a primeira foi de 1985 a 1990). Seria como se Collor de Mello fosse novamente eleito presidente do Brasil.
Em seu primeiro mandato, García, assim como Collor, comandou uma administração escandalosamente corrupta (mesmo para os padrões latinoamericanos) e durante a qual o país passou pela pior crise econômica de sua história, além de estar praticamente sitiado pelas ações do grupo terrorista Sendero Luminoso, que sequestrava nas estradas e com frequência interrompia o fornecimento de energia elétrica às grandes cidades. O atual presidente deixou o governo sob grande insatisfação popular e a um triz de sofrer impeachment (um ano depois, quando se intensificou a investigação sobre a corrupção em seu governo, foi afastado temporariamente do Senado e teve de exilar-se na Colômbia).
Por conta desses fatos, se, três anos antes, um analista político predizesse sua volta ao poder seria tachado de louco. Mas, nas eleições de 2006, a histeria que tomou conta das elites, da mídia peruana e, consequentemente, da classe média urbana com a possibilidade da vitória do militar nacionalista Ollanta Humala – vendido pela mídia como uma espécie de Hugo Chávez peruano – permitiu a García derrotá-lo por 52,6% a 47,4% no segundo turno.
García é herdeiro do aprismo - originalmente um movimento latinoamericano de centroesquerda dos anos 30, que acabaria por adotar a socialdemocracia nas décadas seguintes e, no Peru (onde o APRA é o partido mais organizado e massificado) desandaria, desde os anos 80, para um populismo de centro-direita, que o atual presidente peruano leva agora ao paroxismo.
O mau presságio que senti ao ouvir a notícia de sua mais recente vitória eleitoral logo se revelaria profético e é agora plenamente confirmado pelas notícias que chegam do Peru (“chegam”, prezado leitor, é modo de dizer, já que não podem ser lidas, senão em retalhos inconsistentes e tendenciosos, na nossa briosa “grande mídia" – que, como aponta Rafael Fortes, além de usualmente voltar as costas à América Latina, tudo perdoa quando se trata de governos alinhados ao ideário neoliberal).
Genealogia de um massacre
García anuncia, em dois artigos escritos em novembro de 2007, sua intenção de explorar a Amazônia através de vultosos empreendimentos madeireiros que se viabilizariam com a concessão de vastas extensões de terras a empresas multinacionais – um projeto democrático e de grande alcance social, como se vê. Seus argumentos são de um cinismo atroz, sem demonstrar a mínima consideração por questões humanitárias e ecológicas. Em dado momento, ele candidamente pergunta: “Os que se opõem dizem que não se pode dar terras na Amazônia (e por que na costa e na serra sim?)”. Nos dois artigos não há uma vírgula sobre os povos indígenas que lá habitam (e os quais o apoiaram no primeiro governo). Tal omissão não impede que a desculpa de García para implementar o programa seja a mesmíssima utilizada por governos anteriores, com os resultados sabidos: combater a pobreza.
Porém, como observam os antropólogos Alberto Chirif e Frederica Barclay, no excelente artigo (em espanhol) “Ataques y mentiras contra los derechos indígenas", “O governo, se é que o tema o interessa de verdade, não deve buscar a pobreza em lugares tão distantes como a Amazônia, e sim em Lima e nas demais grandes cidades do país, onde uma grande porcentagem da população não tem trabalho e sobrevive com rendas ínfimas. A pobreza que realmente afeta os indígenas amazônicos está precisamente nas zonas que têm sido devastadas pela colonização e pelas indústrias extrativistas, que têm contaminado o meio ambiente, afetado sua saúde e destruído suas redes sociais de solidaridade. Mas essas políticas do governo não se voltam à solução desses problemas, mas ao seu agravamento”.
No entanto, García ignora as reações negativas que seu projeto provoca e, ato contínuo, consegue do Congresso autorização, inicialmente em vigor por seis meses, para governar através de decretos legislativos (D.L.). Essa autorização é válida apenas para decisões relativas ao TLC (Tratado de Libre Comércio Perú-EUA), mas o presidente ignora esse “detalhe técnico” e passa a gerir de forma direta o país, particularmente seu tenebroso projeto para a Amazônia, sem dar satisfações ao Congresso. (Ou, posto de outra forma: a ocupação comercial da Amazônia é item obrigatório para assinatura do TLC, mas isso não pode ser publicamente assumido.)
Ataque frontal ao direito dos índigenas
Dentre os decretos que promulga está o DL 1064, “um dos mais nocivos para as comunidades indígenas, porque atropela o direito de imprescritibilidade de suas terras e permite que invasores [grilheiros] estabelecidos há apenas quatro anos se apropriem de terras comunais”, explicam Chirif e Barclay.
Em agosto de 2008 começam as paralizações dos povos indígenas nas regiões amazônicas afetadas. Elas são organizadas pela Aidesep (Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana), que representa nacionalmente os povos indígenas e reúne 1350 comunidades nativas. A pressão a princípio funciona, e o Congresso derruba a D.L. 1015, promulgada por García e chamada – observe o duplo sentido – de “lei da selva”, pois permitia que se comprasse, com a anuência de apenas 3 de seus membros, toda a propriedade de cada comunidade indígena. A Defensoría Pública também questiona a constitucionalidade da lei e as instituições do país parecem dar mostras de que funcionariam a contento, favorecendo uma solução democrática para o impasse.
Mas García, que é apoiado pelos militares, pelo grande capital internacional e, o que é mais revelador, até pelos fujimoristas - bem como pela mídia e pelos setores médios da população, concentrados nas grandes cidades e satisfeitos com o "bom momento" da economia do páis -, reage com rapidez e promulga novos decretos ao mesmo tempo em que intensifica a cooptação de setores do Congresso. É sempre bom lembrar que os dados da economia peruana têm de ser postos sob suspeita, já que o INEI (o IBGE deles) deixou de ser confiável desde que seu presidente foi demitido e processado por divulgar estatísticas que contrariavam o Executivo. Quanto aos métodos de aliciamento do Congresso, creio ser suficiente registrar que, em outubro de 2008, todo o gabinete peruano teve de renunciar por terem sido encontradas provas de políticos apristas recebendo grandes somas para alterar as licitações das vendas de lotes petrolíferos na Amazônia. Veja, caro leitor, que coincidência curiosa: o processo está suspenso porque o Judiciário alega não possuir determinados programas de computador necessários para retirar a informação dos HDs...
O Peru, assim como o Brasil, é pródigo em leis que, mesmo promulgadas, não são efetivamente cumpridas – notadamente aquelas que se referem aos estratos mais pobres e marginalizados da população, aos quais pertence enorme parcela dos peruanos de descendência indígena. É justamente uma dessas leis – com potencial para barrar todo o projeto garciano de ocupação extrativista da Amazônia – que causa os violentos acontecimentos que ora contrapõem governo e comunidades indígenas. Chamada popularmente de “Consulta”, initula-se “Convenio 169” (Ley Nº 26253) e firma a adesão às regras da Convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Prevê que os povos indígenas habitantes de suas terras devem ser consultados “cada vez que se prevejam medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar-lhes diretamente”, determinando, ainda, que com aprovação parcial das comunidades indígenas às medidas propostas, o Estado deve negociar até satisfazer a outra parte; e caso as comunidades rejeitem as medidas, estas não devem ser efetivadas.
Assinada há 15 anos, a lei não foi jamais cumprida. “Por quê? Porque que o Estado parece não saber as leis que assina ou porque, em se tratando de indígenas - que diabo! - por que fazer tanto alvoroço? Ao fim das contas, como assinalou o presidente Alan García, ‘As terras da Amazônia são de todos os peruanos’, o que significa apagar de uma canetada os direitos legais de propriedade das comunidades nativas e camponesas, declarar rapidamente a livre disponibilidade das terras da região e convocar o caos para que se encarregue de cancelar os direitos indígenas” (Chirif e Barclay). Já vimos esse filme antes na América Latina, não?
Populismo neoliberal
Em vias de terem suas terras comercializadas à sua revelia ante o avanço do projeto de García, as comunidades indígenas, vendo fracassarem as negociações, unem-se na luta pelo direito legal de determinar seu destino, mas García, numa jogada típica do neopopulismo aprista, passa a defender (como já citado) que a Amazônia pertence a todos os peruanos – e que, portanto, o direito de participar da “Consulta” e decidir sobre o que fazer com as terras amazônicas deve ser votado por todos. A legislação é absolutamente clara quanto aos beneficiários da “Consulta” – as comunidades indígenas que há séculos cultivam aquelas terras -, mas o sofisma de García cai como uma luva aos anseios midiáticos e das elites, que adotam-no como discurso e passam a difundi-lo.
Na conformação sócio-política do Peru atual, os indígenas, embora em grande número se computados os estratos urbanos e os campesinos, ocupam posição minoritária em termos de força política, contando apenas com o apoio do que restou da esquerda (que ou amoldou-se ao projeto neoliberal ainda em alta no país ou, se mais radical, foi praticamente dizimada por Fujimori em sua "abrangente" “Luta contra o terror”) e com o suporte da Aidesep, de algumas ONGs (embora entre elas destaquem-se organizações de projeção internacional) e com a atuação destemida da Defensoria del Pueblo, única instituição peruana que tem resistido sistematicamente - e com algum sucesso, embora fugaz - contra os abusos de García. Entre os exemplos deste último estão as cada vez mais frequentes concessões de autorização para que empresas como a canadense Pacific Stratus Energy, a franco-britânica Perenco e, ora vejam só, até a "nossa" Petrobrás possam operar no interior de reservas indígenas, onde tem sido descoberto petróleo. Ao mesmo tempo, sob a alegação de razões de segurança nacional e evidenciando a política antiindígena, tem sido negada autorização para a decretação de duas novas reservas e de um parque nacional, com a desculpa esfarrapadíssima de que os 700 índios secoyas peruanos e os 300 equatorianos que as habitam rebelar-se-iam e criariam um país autônomo. Mas, numa contradiçaõ só aparente, o conluio cívico-militar no poder mostra-se extremamente negligente com a verdadeira segurança nacional, fazendo vista grossa para uma cratera de - até agora -150km quadrados aberta pela empresa madeireira Newman Lumber Company (EUA) ao largo da fronteira com a Bolívia.
Rios de Sangue
Desesperados ante tal cenário e na iminência de perderem suas terras, os indígenas aumentam o tom e a frequencia dos protestos, bloqueando estradas. Em 9 de maio o governo declara Estado de Emergência em cinco estados da Amazônia. Está aberto o caminho para a disseminação da violência oficial.
É preciso, aqui, abrir parênteses para a especifidade da violência no Peru. O processo de genocídio e escravização dos incas promovido no século XVI pelo conquistador espanhol Francisco Pizarro – um dos mais brutais da história da humanidade - e os muitos massacres do período colonial, legaram ao país pobreza, um tecido social esgarçado e rancores represados que de tempos em tempos se materializam em atos de extrema violência. Para ficar em apenas um exemplo: as técnicas de tortura utilizadas pelos paramilitares na repressão contra o grupo maoísta Sendero Luminoso incluíam a utilização rotineira do fogo, arma que mesmo os torturadores mais cruentos evitam aplicar (se não por pudor, pelas marcas definitivas que provoca, evidência de tortura que, na impunidade generalizada que acompanhou a “guerra contra o terror” no Peru, não queria dizer nada) . Com o perdão da generalização, se o Brasil é o país em que convivem a alegria e o caos, o Peru é a pátria da doçura extrema e da violência exacerbada.
Para perpetuar essa história de extrema violência e aniquilação dos povos indígenas, em 5 de junho chegam com estrondo à região de Bagua, na Amazônia, 369 efetivos da temida Dinoes (Direção Nacional de Operativos Especiais), fortemente armados, tal qual os contingentes das Forças Armadas que os acompanham. Eles iniciam o que a imprensa chama de uma batalha – mas, como aponta João Villaverde, massacre seria uma melhor descrição – contra a revolta indígena, com saldo de mortes incerto.
Meu querido amigo Claudio Suárez, correspondente especial do blog no Peru (pensam que é só a Globo que tem dessas coisas?), informa: “Causa indignação o fato de a população limenha estar, em sua maioria, desinformada pelos meios de comunicação, que exibem informações tendenciosas [que horror! isso jamais acontece aqui no Brasil, Claudio]: fala-se em 12 policiais e 3 indígenas mortos, mas na zona de conflito a imprensa local faz estimativas de algo entre 50 e 100 mortos entre os indígenas (além de centenas de feridos), pois vários corpos teriam sido queimados e outros jogados em um rio; é patente que a polícia ostentava grande quantidade de francoatiradores que disparavam para matar” [alguns deles podem ser vistos em ação no link "mostram a polícia", abaixo].
Os números fornecidos por Claudio são de uma semana atrás e é quase certo que aumentaram bastante nos 5 dias seguintes ao conflito, em que a região ficou sob toque de recolher e execuções foram relatadas. Oficialmente, morreram 24 policiais e 9 civis, mas este último número não é levado a sério nem mesmo pela maioria das publicações da mídia corporativa internacional. Às manipulações da mídia soma-se um enraízado preconceito contra os indígenas, que acaba por resultar em uma autêntica fratura na sociedade peruana. Como registra José Álvarez Alonso, biólogo que trabalha na região amazônica, em artigo sereno mas contundente (em espanhol), os setores médios urbanos e as elites “seguem considerando os indígenas cidadãos de segunda classe [condição que foi corroborada por García em uma de suas falas], ‘esses chamados nativos’, como alguns os qualificam com desprezo. Enquanto se mostra na televisão cenas da dor dos valorosos policiais mortos no cumprimento do dever, se ignora ou minimiza-se a cifra de mortos indígenas, que alguns calculam en mais de uma centena, talvez duas”.
Como aponta o blog Diário Gauche (de onde vêm as fotos que ilustram o conflito), "Organizações indígenas de seis países acusam o presidente do Peru por massacre e genocídio." No portal esquerdista Vermelho pode-se acompanhar a evolução dos protestos no Brasil e no mundo. Mas, se é verdadeira a suposição de que o grau de violência de um massacre costuma ser inversamente proporcional ao número de registros visuais que o documentam, então os piores temores se justificam, pois o número de imagens documentando o conflito é absurdamente baixo para os padrões digitais-cibernéticos atuais. Vídeos, há alguns poucos no youtube (como este, aquele outro, dois que mostram a polícia atirando contra o povo e mais uns tantos), mas quase todos mal filmados e pouco explícitos, embora indicativos do grau de violência e impunidade das forças oficiais.
Após o massacre, durante 5 dias, ninguem pôde entrar na zona de "batalha", nem imprensa, nem órgãos de direitos humanos, nem a Cruz Vermelha; foi instituído toque de recolher. Em seguida, parte da legislação sob ataque foi "suspensa", mas também o foram 7 dos mais aguerridos congressistas de oposição; líderes indígenas estão sendo processados por terrorismo e sedição, como já vinha ocorrendo com sindicalistas e lideranças sociais - o que levou o líder da Aidesep, Alberto Pizango, a se exilar na Nicarágua. Na quinta-feira (11/06), de 20 a 30 mil pessoas, segundo Claudio Suárez, protestaram em Lima, mas o que poderia ter sido o início da reação popular foi, como se vê na foto ao lado (por ele enviada), brutalmente reprimido pela polícia.
Após o massacre, durante 5 dias, ninguem pôde entrar na zona de "batalha", nem imprensa, nem órgãos de direitos humanos, nem a Cruz Vermelha; foi instituído toque de recolher. Em seguida, parte da legislação sob ataque foi "suspensa", mas também o foram 7 dos mais aguerridos congressistas de oposição; líderes indígenas estão sendo processados por terrorismo e sedição, como já vinha ocorrendo com sindicalistas e lideranças sociais - o que levou o líder da Aidesep, Alberto Pizango, a se exilar na Nicarágua. Na quinta-feira (11/06), de 20 a 30 mil pessoas, segundo Claudio Suárez, protestaram em Lima, mas o que poderia ter sido o início da reação popular foi, como se vê na foto ao lado (por ele enviada), brutalmente reprimido pela polícia.
13 comentários:
Maurício,
Espetacular esse seu post sobre a trágica situação peruana. Nessa semana tão agitada no Brasil, nem tivemos tempo para analisar essa verdadeira hecatombe.
Antes de mais, não, não há melhor analogia que se possa fazer com García do compara-lo a Collor; ele é o político corrupto e medíocre que banca uma política desastrosa só porque há uma elite igualmente corrupta e medíocre para sustenta-lo nessa posição.
Do mesmo modo, é possível fazer uma analogia bem verossímil entre Fujomori e Maluf - duas figuras de origens estrangeiras que ascenderam no espectro político de seus países no campo extrema-direita e que governaram com o apoio das elites e com a mão de ferro de um aparato repressor.
É isso é o que me dá mais medo: Isso poderia estar acontecendo no Brasil nesse exato momento, a política peruana não é tão diferente assim da política brasileira para estarmos livres de acontecimentos análogos. Se não estamos vivendo um momento igual, não é por falta de possibilidade, mas porque a sorte nos sorriu.
Outro ponto a ser refletido é a celeuma da Raposa Serra do Sol. Será que se nós não estivessmos sob a égide de um Governo razoavelmente progressista, o resultado do julgamento do STF seria aquele? E os processos dos grileiros de terra em Mato Grosso que invadem as terras dos índios e depois acusam os nativos de terem invadido elas?
Sobre essa segunda pergunta, meu caro, não me contaram, eu sei, eu já vi processos do tipo - basta procurar processos congêneres lá por algum dos tribunal do centro-oeste e ver que além disso acontecer, os índios nunca ganham em primeira instância...
O mundo está em crise e a crise é o divisor de águas. Para onde iremos? Para onde seremos mandados? O diagnóstico é possível agora. Muita coisa tem acontecido ao mesmo tempo nos últimos dias e isso não é à toa.
É muito triste sim e trágico, pois não foram os peruanos que elegeram o sr. Garcia?
Não conheço regime mais justo que a democracia. Mas o povo elege cada um hein...
Olá Maurício,
Ótimo artigo. A forma que você deu a ele - que começa de forma muito pessoal, realçando sua ligação ao Peru - dá a ele, e a todo o conjunto de informações levantadas, uma leveza muito bacana.
Um abraço
Josaphat, é realmente uma tragédia que algo assim seja promovido por um presidente eleito. Isso demonstra que não bastam eleições para poder se falar em regime democrático - é preciso aprimorar as instituições peruanas como um todo. Uma boa medida talvez fosse instituir alguma espécie de controle que exigisse que o eleito cumprisse uma porcentagem x das promessas de campanha.
Hugo,
Sem dúvida o apoio da elite - e do capital internacional, sobretudo - tem sido decisivo para que essa barbárie aconteça.
E o Brasil não está mesmo livre de algo assim, tanto na macropolítica quanto, sobretudo, na questão amazônica - já que, infelizmente, a política ambiental é um dos pontos mais fracos do governo Lula, que tem cedido ao lobbie ruralista e franqueado a região.
Muito obrigado, Villaverde, fico feliz pela visita.
A questão que o Josaphat levanta sobre a Democracia no Peru é um tanto curiosa. Vejamos, creio que seja consenso de que eleições livres, secretas e com acesso universal sejam o primeiro passo para a Democracia, mas será que ela só limita a isso?
Quando levanto essa questão, não pretendo cair naquele velho lenga-lenga de sair desqualificando líderes eleitos a torto e a direito, mas só procuro lembrar que é preciso ter em vista que a investigação de como se dá as relações de poder no interior de uma sociedade - e de como isso se relaciona com os fatores materiais - é fundamental para distinguir o que é uma Democracia ou não.
Isso dá pano para manga, mas mesmo ficando na análise liberal-constitucional, rasinha que só ela, já não daria para chamar o Peru de "Estado de Direito". García está, mais do que qualquer outro líder da região, desrespeitando as leis de seu próprio país e está governando por mecanismos de exceção. Será que haveria tanto silêncio se ele não fosse de direita?
Hugo, imagine como seria a cobertura se Chávez ou Morales matassem dezenas - talvez centenas - de indígenas como forma de explorar comercialmente a Amazônia. Haja tinta, papel... e fígado.
Quanto à questão da democracia, acho que é gradativa, determinada por inúmeros fatores - como endividamento externo, tamanho da economia, posição geopolítica, autonomia da Justiça eleitoral, estrutura partidária, formas de financiamento das campanhas, conformação midiática, entre outros.
Infelizmente, é ilusão achar que a democracia é a mesma na Alemanha, no Brasil e no Peru.
Josaphat (estou negritando por que tenho algo a dizer para cada um, e algumas coisas pessoais que não tem, suponho o mínimo interesse para outros, então vou dividir em vários comentários)
Josaphat (nome legal, é descendente de que? só curiosa, nomes dizem muito)
Josaphat e Hugo,
Quando comecei a estudar aquela ciência capenga chamada cienc. política (ela continua sendo capenga) havia todas essas distinções entre sistemas eleitorais, pluripartidarismos, diversos sistemas partidários, etc, inclusive distinções entre os tipos de democracia que eu achava pura punhetagem, mas não que a c. polit. tenha melhorado, com a idade, o reumatismo vem chegando e também a reflexão.
Há uma discussão na área, acerca de democracia, que por mais que a c. pol., com suas pretenções a ser ciência tão científica quanto a física (gerando inúmeras faláceas na sua pretenção de usar unidades inúteis de medição, que podem ser desmontadas pela mais ingênua criança de primeiro ano de sociologia de picolé na mão e mamadeira na outra)
A discussão a que me refiro (muito mal levada pela c. pol. com pretenções a ciência medidora, tá bom já deixei claro o que eu acho desse povo besta) é sobre a justiça da democracia. Muitos sistemas adotaram formas de representação chamada pluralista (acho que era o termo) por que de certa forma dá um balanceamento quando há grupos muito diversos no sistema e as minorias precisam ser melhor representadas (apesar de seu número). A democracia majoritária tem esses problemas, que concernem à justiça. Em termos crús, ela pode constituir, para um grupo minoritário, uma ditadura da maioria (cuidado, pelamordedeus, com os usos deste termo).
Agra voltemos à situação peruana. Pelo que pude entender do post, imagino que a maior parte da população está amontoada nas cidades, e esses habitantes urbanos vivem uma realidade tão diversa dos grupos indígenas que seria como comparar os habitantes de londres aos povos nativos aborígenes da Austrália antes da chegada de Crook (tá, sei que não é assim, mas vale a metáfora exagerada pra fazer uso da imaginação sociológica de vocês). Ou seja, por mais que sejam geograficamente próximos, cada um desses mundos é como uma bolha que não se comunica: os habitantes citadinos vivem num sec XXI, com seus celulares, internet, globalização, se sentem felizes com as benesses da globalização, compram arroz vindo da.. sei lá, jamaica, carros produzidos em várias partes, suas peças vindas cada uma da França, outra da Alemanha, outra dos EU, ficam felizes quando baixa o preço do dólar e vivem um mundo moderno, de empregos, economia monetária, já falei de globalização?, o preço do petróleo, internacional, os afeta no preço que pagam a gasolina para ir de suas casas ao trabalho.Suas crianças estudam em escolas de modelo europeu, e pra eles é importante aprender o inglês, jamais as línguas indígenas (como é por aqui).
Ficam felizes com empreendimentos que prometem mais empregos e pouco se importam com povos indígenas, na verdade não entendem sua insistência em ficar de fora da modernidade e da globalização e que mania é essa de viver numa selva cheia de mosquitos e sem carros, mc donalds, etc. Absolutamente, são dois mundos incomunicáveis.
De forma semelhante, apesar de que eles estão na ponta afetada pela completa ausência de direitos, os indígenas tem sua própria cultura. Aqui no brasil algum antropólogo trabalhou (desculpem não me lembro nem d@ antropólog@ nem do nome da tribo) trabalhou com suicídios dessa tribo, ligados ao fato de que ao perderem suas terras comunais, os homens deste grupo perdiam sua identidade tanto indígena, quanto masculina, posto que esta estava ligada à caça e coleta nas terras comunais. Eles se suicidavam se pendurando pelo pescoço em um ramo baixo de uma àrvore e dobrando os joelhos, deixavam que seu peso os matasse num lento sufocamento do pescoço contra a corda (que é diferente do enforcamento, pois este em geral, é feito com o corpo totalmente suspenso no ar e em geral, se a pessoa não for considerada pesada, com um peso amarrado às pernas, para que o pescoço se quebre num golpe, diferente dos filmes de hollywood). Vocês podem comparar o drama vivido pelo índio suicida ao suicida que foi o meu visinho, mas que não conseguiu se matar, pela vigilância de sua esposa e pela ação de anti-depressivos que o deixaram muito lento mesmo. Ele cairia na categoria de homo sapiens sapiens moderno moderno para quem o sentido da vida se liga profundamente ao bom emprego, que ele teve, a poder ser o provedor de um lar classe média alta, com carro bom, escola molde inglês para as crianças, tecnologias domésticas e era assim que ele era amado e prestigiado. Bom, a economia muda, e pessoas com empregão perdem seu emprego e de uma hora pra outra passam de grandes mestres de sua àrea a desqualificados, ou, mais perverso, super-qualificados desempregados inempregáveis. Por isso a visinha de calcinha batendo às portas pedindo ajuda com um marido entorpecido por medicamentos que ainda assim queria se atirar do 14o andar pela sacada, que é boa pra essas coisas.
Tranquilo, abrimos a porta pra eles, ajudamos a segurar o homem todo tonto de prozac, ou sei lá, no corredor, etc...
Mas voltando ao Perú. São mundos que não se comunicam, mesmo estando um ao lado do outro. O problema posto da democracia e se o sistema adotado é justo ou não, é que a esmagadora maioria pode fazer parte de um desses mundos que não entende por que é que o outro simplesmente não "se civiliza" e pronto, pára de encher e torna tudo mais simples. Essa maioria escolhe presidente. Que ele esteja a matar índios, o citadino não vê, pelo uso das mídias alinhadas a estas políticas, mas também por que não se importa, pois não entende, nem quer entender o outro. Acha que a sua vida já é muito complicada, com a economia do país, com as contas pra pagar, as pressões no trabalho, etc.
volto aqui depois ;)
Não deixa de ser curioso o fato deste massacre ter ocorrido bem na época do 20º aniversário do massacre da Praça da Paz Celestial. Há semelhanças entre os dois, sobretudo o esforço de esconder o número real de mortos e feridos, queimando vários corpos e os jogando no rio.
Mas eu tenho certeza de que, daqui a 20 anos, 'ninguém' vai falar sobre este vergonhoso episódio no Peru: não haverá livros, filmes, nem sequer alguns segundos no noticiário. E o governo peruano fará - a exemplo do chinês - o possível para esconder o que aconteceu. Mas terá maior sucesso, pois a grande mídia internacional não trará este assunto à pauta novamente.
Sem dúvida, Luís Henrique, o destaque que se deu a um massacre e o desleixo com que se trata outro são reveladores do peso da ideologia nas decisões editoriais da "grande mídia" (que, é bom sempre lembrar, tem o dever de informar com a máxima isenção possível...)
Mau,
encontrei isto http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2009/07/449576.shtml?comment=on#comment
e lembrei de você, caso possa ser do teuinteresse, etc, está ligado ao assunto. Não tive tempo de esmiuçar e sei o quanto é complicado os outros acharem que somos especialistas que damos conta de tudo só com uma das mãos. Mas tá registrado, antes que eu perca o link, pois estou explorando outro assunto
beijos
Legal, Flavia,
Já conhecia a Mídia Independente, mas não esse manifesto. Valeu!
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