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quinta-feira, 23 de abril de 2009

Crime e Castigo

“Educai as crianças e não será preciso punir os homens” – a frase, atribuída ao filósofo e matemático grego Pitágoras, resume e antecipa em mais de vinte séculos pressupostos da filosofia iluminista de Jean-Jacques Rousseau, que o grande sambista dos anos 40 Wilson Batista sumarizaria em versos: “Se o homem nasceu bom/ e bom não se conservou/ a culpa é da sociedade/ que o transformou”.

Tais pressupostos encontram-se hoje em baixa, solapados pela ideologia punitiva que vicejou sob o neoliberalismo, açulada por sua vez pela explosão populacional, “no marco de sociedades fraturadas por linhas de pobreza e aturdidas pelo florescimento de ideologias individualistas e anti-solidárias”, como observa Beatriz Sarlo em seu belo livro Cenas da Vida Pós-Moderna.

Isso é ainda mais evidente no Rio de Janeiro de Wilson Batista, ainda e sempre “berço do samba e das lindas canções”, em parte porque sua topologia e suas pronunciadas assimetrias sócioeconômicas alimentam os pesadelos paleofuturistas das metrópoles do terceiro milênio, em parte porque um grande grupo de mídia não tem escúpulos em manipular, para seus ganhos políticos, a violência e o medo que esta – ou sua iminência, real ou sugerida – causam na população, “cidadãos completamente loucos com carradas de razão”, como canta o mais celebrado herdeiro de Batista.

Nesse quadro - marcado pelo maniqueísmo e por preconceitos de classe - o debate público em torno de cidadania e direitos tende a se restringir à ótica da criminalização. Como aponta a pesquisadora Helena Singer, “os discursos e as práticas sobre os direitos humanos não chegam à população sob a forma de igualdade, felicidade e liberdade, mas sim de culpabilização, penalização e punição, integrando um movimento mundial de obsessão punitiva crescente”. Daí, a popularização da expressão "direitos humanos de bandidos" - símbolo máximo de ignorância, alienação do sujeito e desconhecimento histórico, como se só àqueles a luta de séculos pela conquista dos direitos humanos se destinasse, e como se, ao violar a lei pelos homens escrita, passassem eles a pertencer a outra ordem ontológica que não a humana.

Mas não se limita a querelas brasileiras o recrudescimento de modelos punitivos. O acirramento do debate sobre criminalização e direitos humanos está intrinsicamente ligado à emergência de um “Estado penal e policial” nos EUA, em substituição ao “Estado caritativo”, como observa Loïc Wacquant em seu estudo sobre as políticas de segurança pública norteamericana nas últimas três décadas. No período, o país vivenciou uma escalada da penalização das relações sociais que, entre outros efeitos, intensifica a confusão entre pobreza e marginalidade. Sob a hegemonia do construcionismo social, avança-se com furor sobre questões comportamentais; a inimputabilidade penal está limitada, em alguns estados, aos sete anos de idade e a privatização do sistema prisional impulsiona o aumento exponencial do número de presidiários nas últimas décadas – com o fator “raça” sendo determinante na composição da população carcerária.

Talvez poucos se deem conta de que esse modelo vem sendo paulatinamente importado pelo Brasil, aparentemente de forma menos acelerada sob Lula do que no governo de seus precursores e certamente com particular vigor no Sul - região cujo Judiciário não prima exatamente pelo liberalismo. Mas sua importação, adequando-as às tradições de violência e repressão que caracterizam a vida nacional, encontra-se em curso. A privatização dos presídios está no horizonte; na prática,a abordagem criminal do uso de drogas predomina, a despeito dos avanços legais; no Rio e em São Paulo,"silêncios solidários" saúdam operações de extermínio praticadas por forças do Estado; a tortura, energicamente combatida quando aplicada aos militantes de classe média durante o regime militar, fixou-se como prática corriqueira não só nas delegacias e prisões, mas até nas instituições para "menores", para o que muito colabora a omissão de entidades uma vez ativas (e ora em franca deterioração), como a ABI e a OAB.

Parafraseando Drummond, "A liberdade é defendida com discursos e atacada com prisões".

4 comentários:

Hugo Albuquerque disse...

Maurício,

Grande post. Peguemos aqui os dois vetores principais do seu texto, o Rio contemporâneo e a cruzada contra os Direitos Humanos por meio de uma visão tosca e distorcida do Direito Penal.

Sobre o Rio, tendo, infelizmente a concordar. A cidade hoje mais parece uma daquelas metrópoles de filme futurista pós-apocalíptico dos anos 80; hiperviolência, falência institucional, fascismo mais ou menos velado, desigualdade brutal e tudo isso sob o olhar complacente de boa parte da intelectualidade carioca - no que toca a intelectualidade carioca, quem fez um post definitivo sobre o assunto foi o Azenha dia desses. Ele traçou um paralelo entre a decadência da cidade e o clientelismo intelectual em relação à Rede Globo.

Sobre esse clamor punitivo contra os Direitos Humanos e essa visão punitiva do Direito Penal - endossada, inclusive, por muitos "jurisconsultos" nacionais -se trata de um fenômeno onde a mais absoluta ignorância anda lado a lado com a mais pura desonestidade intelectual - onde a primeira, por certo, se subordina à segunda.

Qualquer um que conheça de Direito e Processo Penal sabe que esse ramo do Direito se assenta sobre um equilíbrio muito delicado e sutil. Mais do que qualquer outro ramo jurídico, ele se centra em um raciocínio estritamente aristotélico, onde é imperativo buscar o "nivelamento entre os pratos da balança" para não cair nas falácias da impunidade ou do linchamento jurídico, duas faces da mesma moeda, vícios em cujo meio-termo mora a virtude, a Justiça.

Infelizmente, não é muito interessante para o consensão concordar com isso daí, o que vale para muitos é boa e velha lógica do clamor de punição seletivo - para meus amigos tudo, para meus os inimigos a Lei - que é regra - e não exceção - em nossa história.

abraços

Unknown disse...

Obrigado, Hugo. Vou procurar o post do Azenha. O x do problema, como diria Noel Rosa (só para manter as referências musicais históricas do post) é justamente o tal do "consensão", como enfatizaria minha amiga Sylvia Moretszohn - que escreveu um ótimo livro sobre o senso comum no jornalismo (e da necessidade de questioná-lo). Sem deixar de mencionar que a mídia - Rede Globo à frente - adora manipulá-lo e utilizá-lo para criar clamores visando intrervir no ordenamento legal - como no caso da legislação dos "crimes hediondos", essa combinação de pleonasmo e excrescência jurídica.

O contato que tive com o mundo do Direito e, particularmente, com a criminologia foi relativamente breve, mas me permite concordar em gênero, número e grau contigo quanto quanto à visão punitiva e a luta contra os direitos humanos se tratar de um um "fenômeno onde a mais absoluta ignorância anda lado a lado com a mais pura desonestidade intelectual".

Um abraço,
Maurício.

Flavia disse...

Sim, concordo com o Hugo. Matou a pau, Mau!
A grande mídia tem tudo a ver com esse imbroglio e espero que neste ano possamos detoná-la um pouquinho que seja a partir do Confecom.

Aproveito o ensejo (vê que chique o linguajar, véi?) pra convidar de volta às lei rouanets sobre a qual continuo a escrever com fúria juvenil que nem mais convém à minha idade, mas fazer o quê?

beijos pra você e pro Joca, o cão mais lindão :)

p.s: não pude deixar de notar que as alternativas de postagem estão muito simpatissíssimas :D

Unknown disse...

Valeu, Flavinha. Já fui lá dar o meu pitaco - um tanto provocativo, pois não estou gostando muito do rumo daquela prosa, muito neoliberal pro meu gosto. Abreijos.