Como citado alguns posts atrás, discutir segurança pública no Brasil é temerário. A exacerbação da violência urbana, as medidas tomadas, nos âmbitos municipal, estadual e federal, pelo Estado e, sobretudo, o modo como a mídia trata o tema, conformaram-no ao conservadorismo mais tacanho (e contraproducente, mas essa é outra história). Debater a questão das drogas, nesse cenário, beira a impossibilidade (mas Júlia M consegue, dialogando com humor).
Um dos sucessos estrondosos do conservadorismo, no que tange ao tema, é jogar nos ombros dos usuários de drogas a responsabilidade primária pela violência urbana – que por sua vez, costuma ser atribuída sobretudo ao tráfico de drogas. Tropa de Elite é a obra-síntese desse pensamento, caudatário do modo Rede Globo de retratar as temáticas ditas sociais. O esquema é manjado: finge-se não ver as brutais assimetrias sócioeconômicas e as hordas de miseráveis que habitam as grandes cidades ao mesmo tempo em que se ignora a realidade internacional do mercado de drogas. Só assim a teoria que responsabiliza os usuários pode ser mantida, pois é necessário fingir não saber que o consumo de drogas é muito mais alto nos EUA e nos países desenvolvidos da Europa do que no Brasil e que, pasmem, a violência urbana lá é muito menor do que a daqui. Ora, então a conclusão lógica e inescapável é que não é o tráfico de drogas – e muito menos o usuário - o culpado pela violência urbana, não é mesmo? Mas, para que procurar os reais culpados se o bode expiatório está à mão - na forma do odioso usuário que insiste no crime hediondo de levar seu baseado à boca e tragá-lo? Ademais, sua utilização marota pela mídia não contraria nem os interesses dos verdadeiros tubarões do crime organizado nem os dos políticos incapazes de enfrentar a violência e a pobreza, além de ajudar a continuar evitando que a população tome ciência das verdadeiras causas da violência e da miséria geral às quais está submetida, e comece a ter idéias subversivas e de transformação da realidade política e socioeconômica.
A crescente culpabilização do usuário e a posição subalterna à qual ele é mantido no debate têm favorecido a mistificação. “Maconha mata seus neurônios”, alardeava um célebre anúncio do Ministério da Saúde, no tempo de Serra. Ele visava estabelecer uma caricata dicotomia entre “drogados semi-retardados e apáticos” e “jovens dinâmicos e saudáveis”. Nenhuma das principais pesquisas de longa duração, realizadas segundo critérios consagrados pela comunidade científica, constata “morte” de neurônios em decorrência do uso de maconha. Tais danos estão na esfera de ação das drogas lisérgicas, como os derivados do LSD, “ácidos” sintetizados e cogumelos.
Campanhas baseadas em inverdades e na mistificação tendem ao fracasso. Além das pessoas bem sucedidas e produtivas que pertencem ao círculo de amizades dos jovens, a própria mídia é habitada por personalidades as mais cultuadas, capazes de performances atléticas e notoriamente ligadas ao uso de drogas – e às vezes por longos períodos, como no caso de alguns superstars do rock (The Rolling Stones, Iggy Pop, David Bowie, Rita Lee, pra ficar só nos da "velha guarda"). Quem convive com a juventude urbana se apercebe de que o destino de tais estratagemas publicitários é somar-se ao vasto anedotário das campanhas anti-droga, que, ao recorrerem a discursos que os usuários acabam descobrindo, por experiência própria, inverídicos e caricaturais, reforçam a eles a impressão de que o governo os quer ludibriar com tais campanhas – que acabam, portanto, se revertendo em contra-propaganda.
Um dos sucessos estrondosos do conservadorismo, no que tange ao tema, é jogar nos ombros dos usuários de drogas a responsabilidade primária pela violência urbana – que por sua vez, costuma ser atribuída sobretudo ao tráfico de drogas. Tropa de Elite é a obra-síntese desse pensamento, caudatário do modo Rede Globo de retratar as temáticas ditas sociais. O esquema é manjado: finge-se não ver as brutais assimetrias sócioeconômicas e as hordas de miseráveis que habitam as grandes cidades ao mesmo tempo em que se ignora a realidade internacional do mercado de drogas. Só assim a teoria que responsabiliza os usuários pode ser mantida, pois é necessário fingir não saber que o consumo de drogas é muito mais alto nos EUA e nos países desenvolvidos da Europa do que no Brasil e que, pasmem, a violência urbana lá é muito menor do que a daqui. Ora, então a conclusão lógica e inescapável é que não é o tráfico de drogas – e muito menos o usuário - o culpado pela violência urbana, não é mesmo? Mas, para que procurar os reais culpados se o bode expiatório está à mão - na forma do odioso usuário que insiste no crime hediondo de levar seu baseado à boca e tragá-lo? Ademais, sua utilização marota pela mídia não contraria nem os interesses dos verdadeiros tubarões do crime organizado nem os dos políticos incapazes de enfrentar a violência e a pobreza, além de ajudar a continuar evitando que a população tome ciência das verdadeiras causas da violência e da miséria geral às quais está submetida, e comece a ter idéias subversivas e de transformação da realidade política e socioeconômica.
A crescente culpabilização do usuário e a posição subalterna à qual ele é mantido no debate têm favorecido a mistificação. “Maconha mata seus neurônios”, alardeava um célebre anúncio do Ministério da Saúde, no tempo de Serra. Ele visava estabelecer uma caricata dicotomia entre “drogados semi-retardados e apáticos” e “jovens dinâmicos e saudáveis”. Nenhuma das principais pesquisas de longa duração, realizadas segundo critérios consagrados pela comunidade científica, constata “morte” de neurônios em decorrência do uso de maconha. Tais danos estão na esfera de ação das drogas lisérgicas, como os derivados do LSD, “ácidos” sintetizados e cogumelos.
Campanhas baseadas em inverdades e na mistificação tendem ao fracasso. Além das pessoas bem sucedidas e produtivas que pertencem ao círculo de amizades dos jovens, a própria mídia é habitada por personalidades as mais cultuadas, capazes de performances atléticas e notoriamente ligadas ao uso de drogas – e às vezes por longos períodos, como no caso de alguns superstars do rock (The Rolling Stones, Iggy Pop, David Bowie, Rita Lee, pra ficar só nos da "velha guarda"). Quem convive com a juventude urbana se apercebe de que o destino de tais estratagemas publicitários é somar-se ao vasto anedotário das campanhas anti-droga, que, ao recorrerem a discursos que os usuários acabam descobrindo, por experiência própria, inverídicos e caricaturais, reforçam a eles a impressão de que o governo os quer ludibriar com tais campanhas – que acabam, portanto, se revertendo em contra-propaganda.
A prevenção e o combate ao uso de drogas, questão de saúde pública, são legítimos e necessários, sobretudo no âmbito de substâncias pesadas e da disseminação de drogas facilmente acessíveis e de consequências potencialmente devastadoras à saúde, como o crack e o ecstasy. Porém, goste-se ou não, sua eficácia está diretamente ligada à capacidade de criar empatia e confiança com o público jovem. Mistificação e artifícios enganosos não ajudam em nada, significam retrocesso e, eventualmente revertem-se em estímulo ao consumo.
A orientação dogmática e preconceituosa das políticas sobre drogas no Brasil evidencia-se na recusa em se debater de forma adulta e com objetividade uma questão como a "descriminalização" da maconha (leia no blog O Descurvo uma ótima explicação jurídica sobre a questão). Trata-se de reivindicação relevante para parcelas da juventude que não podem compreender como uma droga de efeitos comprovadamente nocivos como o álcool é livremente comercializada, enquanto a maconha, que décadas de pesquisa - incluindo o estudo de 14 anos de duração da FDA norteamericana - nada constataram além de efeitos colaterais mínimos e em sua maioria reversíveis, esbarra em um muro de preconceitos e mistificação, na recusa em tratar o tema pelo mesmo prisma clínico utilizado para condenar outras drogas e no bloqueio ferrenho da militância religiosa. “Uma tática sempre empregada é tratar do tema de forma generalizante, colocando lado a lado a maconha e o mais perigoso dos opiáceos, ou reiterando a afirmação incomprovada de que o uso de maconha conduz ao uso de drogas pesadas”, observa o advogado Nilo Batista, citando estudo científico da New York University que desautorizou a chamada “teoria da escadinha”, em texto incluído num dos melhores livros já lançados no Brasil sobre o tema, a coletânia Maconha em Debate (Brasiliense, 1985).
A legalização de drogas leves (e a decorrente "descriminalização" de seu uso e, portanto, da condição de bode expiatório do usuário) é tema já superado ou na ordem do dia nas democracias européias mas, no Brasil, aguarda há vinte anos para entrar na agenda pública. Para organizar uma simples marcha a favor da legalização é necessário enfrentar uma série de barreiras legais e depender do humor dos Judiciários estaduais – o que é altamente ilustrativo não apenas da atrofia do debate sobre o tema mas das limitações impostas à liberdade de expressão num país dito democrático (acompanhe aqui a epopéia kafkiana que os organizadores da marcha vêm enfrentando há meses).
Intimidados por excrescências jurídicas - algumas delas criadas com o forte apoio da Rede Globo, que parece mandar até na Justiça deste país, como a figura legal da "Associação ao tráfico", instrumento que tem sido usado para roubar às classes subalternas seu direito democrático de manifestação pública - são poucos os que, como o Mello, têm coragem de defender abertamente uma posição pró-legalização.
A recusa institucional em sequer debater de forma aberta o tema não deixa de refletir, como ocorre com frequência nas questões públicas no Brasil, a profunda cisão sócioeconômica que cria, na prática, duas classes de cidadãos: para o “usuário de drogas” das classes médias e altas, uma série de facilidades, da freqüente corrupção policial à eventual chicana jurídica, se lhe oferecesse; para o “viciado” das classes subalternas, cadeia (e, lei não escrita, tortura institucionalizada, coação sexual etc.).
De qualquer modo, um tratamento muito diferente daquele que é dispensado ao usuário nas principais democracias européias, mesmo na mais repressiva. Na maior parte delas, o cidadão tem à sua disposição todas uma estrutura pública voltada à cura de seus vícios - incluindo em drogas -; mas, se prefere fazer uso delas, continua sendo um cidadão - e não, como aqui, um pária. Integrar o usuário de drogas na sociedade é tarefa de todo Estado Democrático de Direito.
Comparar os termos do debate sobre a questão das drogas no país, como colocados hoje em dia - concentrados quase que exclusivamente em questões de segurança pública -, à discussão que tomou vulto 25 anos atrás, logo após o fim da ditadura militar (e que avulta na coletânea citada), é defrontar-se com um retrocesso. Passada a euforia pós-Abertura política, o tema logo seria posto fora da agenda pela incomensurável – e ainda insatisfatoriamente debatida – reação conservadora que o advento conjunto de AIDS e neoliberalismo trouxe à tona. Ainda assim, nunca é demais salientar a legitimidade da posição dos que, como Camille Paglia e este blogueiro, defendem que “O Estado não deveria ter poder para vigiar ou regular atividades solitárias ou consensuais", como o uso de drogas ou a realização de fantasias sexuais entre adultos que as consentem.
Mesmo limitando o debate nos termos atuais, é forçoso notar que enquanto persistir, para amplos setores jovens descapitalizados, em uma ponta do processo, um sentimento de insatisfação e incompletude ante as demandas artificiais por consumo e prazer continuamente alimentadas pela onipresença da publicidade e da mídia; e, na outra ponta, um contingente enorme de mão-de-obra sem emprego e sem perspectivas de futuro, a questão das drogas continuará sendo um problema de primeira ordem no Brasil. Além de constituir uma ameaça permanente ao cidadão, passível de ser criminalmente acusado pelo simples ato de fumar um cigarro com uma erva proibida.
9 comentários:
Me sinto honrada pela citação! :)
Excelente post. Eu acrescentaria alguma coisa, se já não estivesse escrito aí tudo o que penso a respeito, e mais um pouco!
Vou acompanhar o blog com prazer.
Abraço!
Maconha, não trafique.
Plante em casa.
Valeu, Júlia, fico feliz que tenha gostado. Volte sempre.
Buenos dias, señor Puebla. Hasta que enfim deste la carita por estas veciñanzas...rs
Estoy todos los dias
no coment
Tú é bão Sebastião
Maurício,
Obrigado pela citação e pelo belo texto a respeito do assunto.De fato, falar sobre liberação do uso de maconha é sempre complicado porque muitas pessoas têm ou tiveram entes queridos que tiveram problemas graves com drogas.
O que passa desapercebido para boa parte da sociedade brasileira, no entanto, é o que o problema por detrás das drogas não é causado por elas, mas sim que elas são agentes catalisadoras de toda uma neurose coletiva decorrente de um quadro de desagregação que remonta aos anos 80 e 90.
Obviamente, admitir isso, seria admitir uma série de outras coisas que não interessam muito ao Poder. Seria também a perda de um belo álibi para a repressão policial.
As polícias foram criadas pelo mundo para, prioritariamente, realizar o trabalho de repressão dos movimentos sociais e políticos, mas essa é uma verdade dura demais para ser publicamente admitida.
É muito mais cômodo vender uma certa necessidade de proteção decorrente de um narrativa maniqueísta do tipo mocinho x bandido; com o tráfico grassando, se justifica o aumento do aparato policial para o eleitor médio da "democracia" liberal de cada dia, mas quando o bicho pega, percebe-se qual é a verdadeira função da polícia.
Lembram-se da Crise da USP, pra quê tanta polícia ali? Se fossemos pensar pela lógica da cruzada contra o crime que eles nos vendem, não teria o menor sentido haver tantos policiais ali com tantos crimes sendo cometidos pela cidade de São Paulo, o fato é que, infelizmente, fazia todo sentido.
No fim das contas, a reivindicação liberação do uso da maconha e até mesmo das demais drogas, envolve mais coisas do que imaginamos: Ao ser feita, ela passa obrigatoriamente pela denúncia da repressão policial e das causas ocultas e terríveis por detrás dela.
A liberação da maconha em si - como assinalado no meu post que você linkou - é mais simples do que se imagina: Depende unicamente de uma Portaria do Ministério da Saúde e nada mais. Não precisaria de uma lei específica ou algum congênere.
À luz da ciência, não creio que hajam motivos para isso não ser feito, mas, claro, além dessas interferências de cunho político pesam, em vários momentos, as de natureza religiosa também - desde que se enxergue a religião desvinculada do âmbito político, o que raramente é possível.
abração
Hugo,
Disse tudo, meu velho. Não há o que acrescentar.
A bem da verdade, esta citação deveria ser incorporada ao post: "o problema por detrás das drogas não é causado por elas, mas sim que elas são agentes catalisadoras de toda uma neurose coletiva decorrente de um quadro de desagregação que remonta aos anos 80 e 90". Na mosca!
Enquanto isso, a juventude saudavel se entope de anabolizantes, presos à uma cultuação do corpo musculoso que esta na TV, em cada página das revistas. O corpo belo é corpo saudavel, não se pensa mais nisso. Só que os anabolizantes trazem resquícios duradouros a esses corpos. E e´ uma industria complexa essa da cultura do corpo.
Sobre criminalização do consumidor de drogas, dá uma olhada no documento que eu linkei sobre a lei de Serra e o fumante. Porque ele não criminaliza a indústria tabagista? É o que eu dizia a todos. Eu ia feliz comprar cigarro no morro.
Flavia,
Eu vi a sentença do juiz que vc publicou. Muito interessante.
Talvez ainda mais do que bebidas alcóolicas, o fato de o tabaco permanecer legal, com todas os comprovadíssimos males que causa à saúde, é, como você sugere, a mais evidente prova da hipocrisia com que i tema maconha tem sido tratado.
Acredito que o que o filme e pelo menos parte da mídia quer, não é jogar a culpa no usuário, mas sim mostrar a hipocrisia que existe em usuários que preferem ignorar que de fato estão na ponta estimulando um mercado violento, cruel e que destrói muitas vidas e redireciona a parte da economia para um lado que só favorece uma minoria. É claro que o maior culpado não é esse usuário. Mas, enquanto ele estiver transgredindo a lei, é importante ele ter consciência que contribui para o problema como um todo.
Na minha insignificante opinião, qualquer droga deveria ser liberada. Se alguem que ter um prazer extra esporadicamente ou um idiota quer se destruir em nome do prazer ou se um artista precisa deste artifício para ser criativo, é problema deles. Só deveriam evitar estimular outros a fazer o mesmo (pelo menos enquanto isso é ilegal).
O problema sempre é mudar o que já está convencionado. Não vai ser fácil criminalizar o tabaco e o álcool, assim como não vai ser fácil legalizar a maconha ou outras drogas.
Mas precisa-se sim, discutir formas para que pessoas sem absoluta consciência das conseqüências envolvidas, como crianças, entrem nesse mundo e comecem a destruir suas vidas e possivelmente de seus próximos.
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