No
dia de hoje o mais famoso discurso do movimento negro mundial
completa 50 anos. Ponto culminante da Marcha sobre Washington, que
reuniu ao menos 250 mil pessoas vindas dos mais diversos cantos dos
Estados Unidos, incertas quanto ao grau de violência racial ou mesmo
oficial que poderiam enfrentar, para protestar contra a segregação
racial e demandar liberdade e justiça social.
"I
have a dream" ("Eu tenho um sonho"), o mote repetido
diversas vezes ao longo dos pouco mais de seis minutos de pungente
discurso, mais que um emblema da luta pelos direitos civis em uma
sociedade em que o racismo era institucionalizado, tornou-se um
mantra pop político, à maneira do "Hay que endurecerse, pero
sin perder la ternura jamás" de Che Guevara. Alguns anos
depois, John Lennon nele se inspiraria para compor o clássico
"Imagine".
Discurso de mestre
Ao
proferir o discurso, Martin Luther King, que já era o mais
respeitado líder do movimento pelas liberdades civis – o Dr. King,
como o reverenciavam seus seguidores - soube aproveitar-se de um momento de
alta exposição midiática para lançar uma mensagem que,
enfatizando o pacifismo e projetando para as tensas relações
raciais os princípios cristãos da comunhão e do perdão, foi capaz
de, no clima favorável do nascedouro da contracultura, angariar
apoio entre setores hesitantes da juventude e da classe média
brancas, convencendo-as a fiar-se à possibilidade de "transformar
as estridentes discórdias de nossa nação em uma bela sinfonia de
fraternidade".
Como
se pode ver no vídeo legendado em português ao final do post, King, com raro senso de estratégia, substitui as costumeiras mensagens dirigidas aos próprios afro-americanos no sentido de instigá-los a se orgulharem de suas origens (na linha "say I'm black and I'm proud" ["diga: sou negro e me orgulho disso"]) por uma fala para todos, que não distingue público. E profere o discurso com
um profundo domínio da técnica, em um crescendo contínuo feito de
exaltações eventuais, culminando com o grand finale,
e com um misto de confissão e exortação que, se não disfarçam
sua formação como pastor e advogado, vêm imbuídos de um tal grau
de verdade e comprometimento que acabam por se impor afetivamente.
Persistência e vitória
Nutro
desde sempre uma profunda admiração pela figura de Martin Luther
King e pela luta pelas liberdades civis, deflagrada em um país que,
ao contrário de hoje em dia, ainda não havia se conspurcado com o
sangue de tantas guerras injustas sob motivos vis. Assim, a luta
contra o racismo afigurou-se uma luta épica e necessária, em
oposição a um passado cruel – do qual Strange Fruit,
com a interpretação sublime de Billie Holiday descrevendo as
"frutas estranhas que pendem das árvores do Sul, sangue nas
folhas e sangue nas raízes" é o retrato torturado - e ante
um sem-número de batalhas, muitas das quais fragorosamente perdidas
para o racismo institucional, antes que a tenacidade e a resilência
dos afro-americanos vencesse.
Décadas
depois desse período heroico, tive oportunidade de vivenciar in
loco a persistência e a força
remanescente dos símbolos da luta pelos direitos civis. Eu
estava nos EUA, cursando pós-graduação, quando Rosa Parks (foto) morreu,
e para mim foi uma experiência muito emocionante acompanhar de perto
o respeito – ou mesmo devoção - que pessoas de todas as idades e
"raças" demonstravam ter por essa ex-costureira do Alabama
que, em 1955, ao se recusar a se levantar do assento de um ônibus
para que um branco se sentasse lançou, a partir do boicote aos
ônibus de Montgomery, Alabama, a fagulha que acendeu a chama de um
movimento que mudaria a história do país, com repercussões em boa
parte do mundo (em última análise, não teríamos política de
cotas no Brasil hoje não fossem os processos decorridos desses
gestos iniciais).
Exemplo atual
A
luta pelo direitos civis nos EUA, para além de seus méritos (e,
problemas e contradições) intrínsecos, constitui, ainda hoje, um
exemplo a ser estudado pelas esquerdas, sobretudo por tratar-se, na
maior parte do tempo, de uma luta essencialmente reformista, vencida
após sucessivas batalhas no interior dos sistemas políticos e
jurídicos de uma democracia liberal. Num mundo como o atual, em que
a perspectiva revolucionária strictu sensu, rarefeita,
encontra-se em profunda crise, afigura-se essencial a compreensão de
como lutar e vencer batalhas nos interstícios do próprio sistema
democrático. Que tal sucesso tenha se dado sob forte oposição, sob
uma ordenação jurídica e institucional desfavorável e eivada de
vícios, e através de alianças táticas que efetivamente resultaram
em ganhos para ambas as partes é uma constatação das mais
relevantes para as atuais batalhas por hegemonia particularmente no
que concerne a temas ligados à biopolítica – tais como aborto,
direitos matrimoniais dos gays, legalização da maconha -, que têm
sido negociado com o conservadorismo na bacia das almas pelo
ultrapragmatismo de nossa autointitulada centro-esquerda.
Neste momento de acirramento dos ódios classistas e de reavaliação compulsória do mito segundo o qual o Brasil não seria um país racista, a luta pelos direitos civis comandada por King deveria, ainda, servir de exemplo e de inspiração tanto para os ativistas do movimento negro em particular como, de forma geral, para aqueles que lutam por uma sociedade mais justa e sem discriminação racial.
(Imagens retiradas, respectivamente, daqui e dali)
(Imagens retiradas, respectivamente, daqui e dali)
2 comentários:
Olá Maurício, saudades do curto período que vc passou em Viçosa e de nossos encontros do CineMau. Aqui em casa, vimos, por sua sugestão A Festa da Menina Morta, que deixou-nos a todos sem fôlego. Abraço.
Olá, Maria Inês,
Bons tempos....
Tudo de bom pra vc e pra Fernanda!
Um abraço,
Mauricio.
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