As
primeiras levas de médicos cubanos desembarcam no Brasil e o ritual
de sua chegada, saudada com bandeiras dos dois países, pequeno mas
entusiasmado comitê de recepção e discurso em portunhol não deixa
de resultar emocionante. Em primeiro lugar, por deixar claro que,
meio século depois, a mística revolucionária cubana ainda toca os
corações esquerdistas, não obstante patrocinada por um
investimento milionário e em condições trabalhistas no mínimo
questionáveis.
Em
segundo lugar, a recepção comove por demonstrar que, a despeito da
guerra fratricida que precedeu a vinda dos médicos, prevaleceu o bom
senso e nenhum deles foi pessoalmente destratado: podemos continuar
alimentando nossa orgulhosa autoimagem de povo que a todos bem
recebe.
Um
terceiro motivo para a emoção – neste caso, negativa – deriva
da constatação (óbvia para quem ouviu às declarações dos
médicos, em que uma das doutoras, muito simpática, prometeu atender
bem ao "puoblo brasileño") de que, ao contrário do que
divulgou o Ministério da Saúde, os médicos cubanos que aqui
aportarão não têm domínio do idioma português. Não que isso vá
ser um impeditivo: certamente a comunicação se estabelecerá. Mas o
que interessa reter aqui é o fato de que, ao menos nesse quesito, o
governo mentiu.
Insegurança
jurídica
A
despeito dessa constatação tão rotineira em se tratando de
políticos (e de Brasil), resta-nos desejar que a missão
"humanitário-comercial" cubana obtenha sucesso e melhore a
saúde de uma parte da população há séculos desassistida. Porém,
como sabemos, esse sucesso depende, em primeiro lugar, de um
encaminhamento satisfatório das intrincadas questões jurídicas que
envolvem o caso, as quais derivam do afobamento e improvisação que
são características distintivas da administração Dilma Rousseff,
onde as decisões invariavelmente saem "prontas" do
gabinete presidencial, sem terem sido previamente debatidas com a
sociedade ou amadurecidas em seus aspectos técnicos, operacionais,
logísticos e legais.
No
presente momento, o imbroglio
é o seguinte: a Medida Provisória que instituiu o Programa Mais
Médicos prevê que, como os profissionais cubanos não revalidarão
o diploma, caberá ao Conselho Regional de Medicina conceder-lhes uma
permissão temporária para trabalhar. Essa entidade, porém, se
recusa a fazê-lo sem avaliá-los previamente (no que está correta,
pois é esta a sua função institucional). O Procurador-Geral do
Trabalho insiste que o CRM terá de emitir tal documento, mas
disputa-se se ele tem autoridade para exigir que este seja
autorizativo ou se tal exigência feriria a autonomia do CRM, que
poderia se valer de uma justificativa oficial para não conceder
autorização ao exercício da medicina.
Estratégias
de desqualificação
Tal
confusão jurídica poderia perfeitamente ter sido evitada, bem como
o clima de batalha campal que se instalou na arena pública, se o
governo Dilma obedecesse aos ritos democráticos, fosse mais
transparente e se dispusesse a debater com a sociedade as medidas que
pretende tomar, ao invés de lançá-las direto dos gabinetes para as
manchetes, como um fato consumado e uma panaceia incontestável.
Poucos casos comprovam de forma mais clara tais defeitos do
governo Dilma do que tudo o que até agora envolveu o Programa Mais
Médicos.
Após um
desastroso lançamento nos moldes acima descritos vieram reações
corporativas até certo ponto compreensíveis, mas que logo
degringolaram para manifestações de um elitismo atroz, além de
contrárias à própria deontologia da profissão. O governo, ao
invés de efetivamente negociar, passou então a praticar o
mesmo jogo duplo que armara por ocasião da greve dos professores
federais, em 2012, jogando para a plateia em público e atiçando
fogo contra as corporações médicas nos bastidores. O resultado é
um clima de agressão mútua que, açulado pela natureza belicosa das
redes sociais, permanece até hoje, virtualmente impede o debate e
onde as duas partes se digladiam com acusações preconceituosas ou
desinformadas, que não levam a nada.
Assim,
fica difícil decidir o que é mais patético: se os direitosos mais
delirantes ressuscitando o perigo de uma revolução comunista na qual os médicos plantariam a semente ideológica para a revolta,
ou o governismo, desta feita com forte adesão de partes da esquerda,
que generaliza chamando os médicos de "coxinha de jaleco"
e, como uma torcida organizada, agride em turbas quem quer que ouse
criticar o que ingenuamente veem como a panaceia para a Saúde no
país.
Direitos
trabalhistas
Essa
Fla-Flu histérico, maniqueísta e eivado de preconceitos, impede que
se debata com clareza algumas questões graves associadas à
importação dos médicos cubanos. A mais grave delas, a meu ver, diz
respeito ao absoluto desprezo pelas leis trabalhistas do país e pela
perigosa prerrogativa que isso abre para o futuro. Pois, em um
momento de extrema flexibilização e desregulamentação das
relações trabalhistas e de agravamento da questão do emprego como
um problema global, esperava-se da esquerda que se unisse em oposição
a medidas que claramente se caracterizam como terceirizantes, fora do
âmbito da CLT e do sindicalismo – para não citar sua leniência com um heterodoxo
sistema de exploração de mão-de-obra de um país socialista há
décadas oprimido por um criminoso boicote econômico.
É
preciso muita cegueira ideológica para não se aperceber, neste
momento, da grave ameaça ao mercado trabalhista brasileiro inerente
à brecha aberta pelo petismo, através da implementação do Mais
Médicos. Com que argumentos essa dita "esquerda" reagirá
na eventualidade de importação maciça de operários sul-americanos
por um governo conservador futuro como forma de desmobilizar uma
greve ou impedir movimentos de reivindicação salarial?
Imagine a
reação dessa mesma pseudoesquerda se um ministro de um governo
conservador justificasse juridicamente os termos da importação de
operários dos EUA alegando que eles obedecem à legislação
norte-americana, como respondeu o ministro Alexandre Padilha ao
afirmar que a contratação dos médicos cubanos segue a legislação
de Cuba. Seria linchado.
O
fator eleitoral
Aliás, o
desempenho de Padilha neste episódio, se talvez venha a lhe render
mais exposição e introduza a novos eleitores sua figura articulada
e inteligente, por diversas vezes resvalou num populismo raso, na
aposta na ignorância jurídica da população (da qual fingir
presumir que basta o contrato atender à legislação cubana é o
exemplo cabal) e num antagonismo aberto contra os que se opõem ao
programa que se assimilou, em forma e conteúdo, ao passado
ditatorial do país. Sua declaração assegurando ter "segurança
jurídica" sobre o programa e "autorizando" a crítica desde que "não venham ameaçar a saúde da população que não tem médico" é exemplar de tudo isso.
Trata-se
de uma meia verdade, ou melhor, de algo que ora se transformou em
verdade factual, mas só graças à inação que a precedeu. Pois essa
população a qual o ministro Padilha se refere já não tinha médico
quando o PT assumiu o governo, há longínquos 10 anos e oito meses -
tempo mais do que suficiente para estudar o problema, debatê-lo e,
na forma acordada e civilizada que caracteriza as sociedades
democráticas, implementá-lo. Mas não: o governo passou mais de uma década tratando a Saúde como questão secundária, com paliativos, ora
ensaiando ampliar o SUS, ora flertando com a privatização
generalizada, além de sempre tratando os planos de saúde privados
com extrema leniência.
Foi o
choque trazido pela queda de popularidade que derivou das
manifestações de junho, somada à proximidade das eleições, que
fez com que a administração petista subitamente "descobrisse"
que a Saúde é uma questão prioritária e que há milhões de
brasileiros sem acesso a assistência alguma. E que priorizá-la permitiria ainda aumentar o cacife de um de seus ministros mais bem avaliados,
"grande esperança branca" petista das próximas eleições.
É este o contexto da declaração no espírito "Ame-o ou
deixe-o" do ministro da Saúde, não por acaso o mais provável
candidato a governador de São Paulo pelo PT.
Paliativo
Porém, em
meio aos debates políticos do momento, não se deve perder de vista
que se o governo tivesse priorizado a Saúde, como seus candidatos
presidenciais haviam prometido nas campanhas eleitorais, e cumprisse,
ano a ano, ao longo da última década, metas preestabelecidas para a
área, outra seria sua situação, e não só em relação à alegada
carência de médicos, mas em medidas imprescindíveis à saúde
pública (embora não rendam muitos votos), como saneamento básico,
atendimento ambulatorial, medicina familiar/itinerante, entre outras.
(A propósito, se o governo quer tanto levar médicos às áreas
carentes, porque pouquíssimas das novas universidades federais
oferecem cursos de Medicina?)
Seja como
for, a opção pelos médicos cubanos é um paliativo, que não
resolve estruturalmente a questão ou sequer a encaminha. A
solidariedade humana pede que torcemos para que resulte efetiva e
melhore a saúde da população sob seus cuidados. Mas isso não
significa, de forma alguma, que tenhamos de fechar os olhos ou ser
leniente para com seu caráter transitório e precário, as ameaças
potenciais que traz em relação aos direitos trabalhistas e
sindicais e o oportunismo político-eleitoral que embute.
(Foto de Luna Larkman/G1 flagrando recepção aos médicos cubanos em Recife retirada daqui)
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