Na semana
que se inicia pode vir a ser aprovada, no Senado, a PEC 33/09, que
estabelece a volta da exigência do diploma de Jornalismo para o
exercício da profissão. Fruto de uma longa articulação,
coordenada pela Federação Nacional de Jornalistas (FENAJ) e que
envolveu juristas, parlamentares e professores e profissionais do
meio, a emenda constitucional, de autoria do senador Antonio Carlos Valadares (PSB/SE), seria, na prática, uma forma de reverter decisão do
STF, que em junho de 2009 seguiu o voto do relator Gilmar Mendes e
decidiu pela não-obrigatoriedade do título universitário.
Cronologicamente,
tal decisão coincidiu, por um lado, com um período de reafirmação
da blogosfera política brasileira como polo de contrainformação e
análise e, por outro (e um tanto em decorrência da crítica de
mídia pelos blogs produzida), da evidência de que a crise ética do
jornalismo praticado pelos grandes grupos midiáticos transcendera,
em muito, os limites do aceitável.
Excesso
de simplismo
Desse
modo, o debate sobre a exigência do diploma tornou-se não apenas
palco de uma disputa por espaço e e legitimidade entre blogueiros e
jornalistas – disputa esta a meu ver marcada pela premissa
equivocada de oposição entre atividades afins -, mas um tema assaz
contaminado pelo mau jornalismo que as principais corporações de
mídia têm praticado – a um ponto tal que, a julgar pelo grau de
virulência das manifestações contra o jornalismo e a favor da
decisão do STF, estas parecem frequentemente partir do pressuposto
de que a atividade jornalística se resume a trabalhar para Veja,
Folha de S. Paulo, Estadão
ou Rede Globo.
Negligencia-se,
assim, o exame de uma situação complexa, em favor de um argumento
geral excessivamente simplista: há maus jornalistas com diploma
atuando na grande mídia, então o diploma não serve para nada.
Trata-se de um sofisma.
O que se
despreza com essa visão reducionista e descolada da realidade é, em
primeiro lugar, que o Jornalismo, como campo, engloba uma enorme área
de trabalho e de estudo, no setor público e no setor privado, para
muito além da porcentagem ínfima de formados que vai trabalhar nos
grandes veículos de mídia.
A mídia
invisível
Em
segundo lugar, tal opinião incorre em uma generalização injusta.
Pois se é verdade que a mídia corporativa tem atuado como partido
político de oposição às administrações federais petistas – e
que os jornalistas que emprega, em sua maioria, deixaram-se cooptar
-, é fato também que a estratégia de comunicação estabelecida a
partir do governo Lula, ao pulverizar a verba publicitária federal,
limitada a 499 veículos em 2002, em nada menos do que 5.297 veículos
em 2009, assegurou a manutenção e a eventual expansão de uma mídia
capilarizada que deu emprego a um número substancialmente maior de
jornalistas comprometidos com os fatos e a deontologia da profissão,
e não com a plataforma neoliberal da aliança mídia-demotucanato.
A
internet, com a blogosfera e as redes sociais, teve um papel
relevante nas últimas eleições, como o próprio então presidente
Lula reconheceu em encontro com blogueiros. Mas negligenciar a
importância que as milhares de rádios e de publicações do
interior do país tiveram na eleição de Dilma Rousseff corresponde
a adotar uma postura elitista e obtusa. Os dados oficiais são
eloquentes: em 2003, a verba publicitária da
Presidência desaguava em apenas 499 veículos, número que subiria
para 4.795 cinco anos depois, contemplando principalmente rádios
(270 em 2003; 2.597 em 2008) e jornais de médio e pequeno porte (179
antes, 1.273 depois).
Maniqueísmo
e contrasenso
Ora, as dezenas de milhares de radialistas, pauteiros, editores,
redatores, repórteres, diagramadores e demais profissionais de
imprensa que ganham honestamente sua vida trabalhando como
jornalistas não podem ser socialmente achincalhados - e terem o
diploma pelo qual estudaram anos picotado - só porque uma “elite”
numericamente ínfima de profissionais dos grandes grupos de
comunicação sucumbiu, aceitando leiloar sua pena e seus escrúpulos
na bacia das almas da mídia corporativa brasileira em sua maior
crise ética.
Em
terceiro lugar, a generalização de uma visão negativa da atividade
jornalística como justificativa para defender a não-obrigatoriedade
do diploma finge desconhecer o fato de que o fortalecimento –
inclusive ético – e o aperfeiçoamento do desempenho de
determinado ramo de atuação depende, em larga medida, justamente de
sua constituição como área profissional - incluindo desde o
ensino (teórico, prático e deontológico) ao exercício das
profissões a tal área conectadas. Daí decorre a constatação de
que é um contrasenso cobrar pelo aprimoramento ético da atividade
jornalística e, ao mesmo tempo, apoiar uma medida que só faz enfraquecê-la institucionalmente. Pois quanto menor o poder
institucional do jornalismo - e, em decorrência, dos
jornalistas -, maior o poder do grande capital de manipular a seu
bel-prazer os meios de comunicação tradicionais.
Formação ética
Além
disso, tal posição faz com que se negligencie a constatação de
que os (bons) cursos universitários de Jornalismo, além de
ensinarem o aspecto operacional da profissão, de proporcionarem aos
alunos uma cultura jornalística a qual o leigo dificilmente tem,
enfatizam a formação ética e deontológica para o exercício da
profissão (se alguns profissionais depois não a seguem, isso é
outra questão, que deveria ser passível de punição pela
sociedade).
Porém,
mesmo essa desejável instauração de mecanismos de regulação ou
de autorregulação ética foi dificultada ainda mais pelo fim da
exigência de diploma, que tornou o campo ainda mais
desregulamentado. Nesse sentido, a aprovação da PEC 33/09 – que,
vale lembrar, não justifica a acusação de reserva de mercado, pois
não torna o campo exclusivo - abriria caminhos para a adoção de
parâmetros éticos para a profissão e um modo efetivo de torná-los
correntes e de punir os desvios, à maneira do que ocorre nos
conselhos regionais de medicina, odontologia, engenharia, etc.).
Até
agora, de concreto, a não-obrigatoriedade do diploma só manteve ou
agravou efeitos deletérios: fragilizou ainda mais as condições
para o exercício da atividade jornalística, as garantias
trabalhistas e, mesmo em um ambiente de vigor econômico, aumentou o
desemprego e arrochou os salários; “naturalizou” de vez o
contrato do jornalista como entidade jurídica - uma excrescência que
deveria, há muito, ser coibida pelos poderes de direito -, e instaurou
a insegurança profissional ou estudantil em jovens profissionais e
estudantes universitários, com consequências psicológicas
potencialmente graves.
Contrato
quebrado
Este
último item nos leva ao último ponto a ser abordado por este texto,
versando sobre uma questão de justiça histórica e de expectativa
de direito. Durante 40 anos, milhares de jovens ingressaram
anualmente num curso universitário – muito concorrido, no caso das
boas universidades - com a garantia legal de que, após quatro ou
cinco anos assimilando teorias e conceitos, aprendendo e praticando
técnicas à exaustão e realizando dezenas de trabalhos, receberiam,
ao final, um diploma de curso superior necessário ao exercício da
profissão de jornalista.
De
repente, decide-se subtrair substancialmente a importância de tal
diploma: justamente em um momento de revalorização do ensino
superior, em que novas classes sociais adentram, pela primeira vez,
as portas da universidade, que se enobrece ao se democratizar (ainda
que só um pouco), as dezenas de milhares de bacharéis em Jornalismo
(ou em Comunicação Social, habilitação Jornalismo), dos
recém-formados aos prestes a se aposentar, são informados que o
diploma específico pelo qual tanto se dedicaram tornou-se algo
entre um diploma universitário genérico e um pedaço de papel sem
valor.
É
preciso uma dose brutal de insensibilidade social, de desprezo pela
coerência jurídica e histórica, de negligência para com o papel
formador do ensino superior em sua especificidade planejada, e de
desrespeito aos direitos adquiridos e aos esforços pessoais de longo
prazo para não se escandalizar com a arbitrariedade de tal decisão
– e para deixar de temer que ela se alastre para outros campos
profissionais passíveis de incomodar o grande capital.
O ressentimento enquanto critério
É compreensível e se justifica de forma plena que a inaceitável
atuação da grande mídia nos anos recentes tenha gerado um grande
volume de insatisfação e de repulsa, ainda mais em blogueiros que
procuram fazer um trabalho sério de contrainformação. Agora, é
preocupante que tal ojeriza tenha derivado para um ressentimento
generalizado e generalizante, e que este tome o lugar do critério e
do rigor, gerando uma aversão ao jornalismo como atividade e aos
jornalistas em geral e fazendo com que, no caso da
não-obrigatoriedade do diploma, muitos blogueiros que se dizem de
esquerda tenham se aliado às posições de Gilmar Mendes, da
plutocracia midiática e do grande capital – que vibraram com a
conquista de sua bandeira histórica - contra a ABI, a FENARJ, os
sindicatos de trabalhadores e as demais associações e pessoas
físicas que defendem o jornalismo.
Atravessa-se, assim, a arisca fronteira entre o voluntarismo
militante e a ingenuidade política.
3 comentários:
Professor, ler seu texto foi para mim, como recém formada, ter um desabafo. Em especial: "O que se despreza com essa visão reducionista e descolada da realidade é, em primeiro lugar, que o Jornalismo, como campo, engloba uma enorme área de trabalho e de estudo, no setor público e no setor privado, para muito além da porcentagem ínfima de formados que vai trabalhar nos grandes veículos de mídia."
No meu trabalho agora aprendi que o jornalista é também um educador. E como os educadores estão desvalorizados em nossa sociedade...
Paula,
Fico contente que tenha gostado do post e de saber que continua na luta como educadora.
Quanto a educadores serem desvalorizados na sociedade, acho relativo: financeiramente e em termos de status, sem dúvida o são; mas, embora eu defenda a luta por melhores condições, não estou convencido de que isso seja o que mais importa. O que conta é a dedicação e a convicção de estar se esforçando ao máximo para fazer um bom trabalho e, eventualmente, a recompensa que recebemos ao constatar a evolução do aluno e o seu crescimento.
Um abraço,
Maurício.
Como diz minha mãe: não existe felicidade, mas realização. hehe
Um abraço, Maurício!
Saudades de suas aulas.
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