A audiência pública de Ana de
Hollanda na Comissão de Educação e Cultura (CEC) da Câmara dos Deputados, realizada ao final da manhã de
hoje, dissipa qualquer eventual dúvida quando ao anacronismo de sua
visão das relações entre cultura e internet.
Foi um espetáculo deprimente: ante arguidores em sua
maioria anestesiados, desinteressados, a ministra da Cultura
demonstrou não possuir os conhecimentos mínimos requeridos de um
gestor cultural em sua posição, ostentando uma postura que choca
pelo primarismo – expressado numa visão reducionista da cultura
tão-somente enquanto produto cultural comercializável -, pelo
conservadorismo – em contraste com o discurso da candidata Dilma –
e, sobretudo, pelo atraso intelectual - ficou claro que as concepções
de Ana quanto às relações entre produção cultural, mercado e
internet apresentam uma defasagem de décadas e não se coadunam com
os fluxos culturais que caracterizam o mundo contemporâneo.
A ministra afirmou
temer pelo futuro da cultura brasileira devido à pirataria e à
internet. Ou seja, para ela, a rede mundial de computadores, cujas
imensas possibilidades de produção e circulação cultural são
exaltadas por pesquisadores do porte de um Jesus Martín-Barbero,
representa uma ameaça, e não um devir.
Foi constrangedor ouvir uma
figura ligada a uma tradição familiar caracterizada pelo culto à
inteligência e pela participação política progressista proferir
uma visão a um tempo tão retrógrada, desinformada e, ao mesmo
tempo, tão contrária ao bem coletivo e favorável ao lucro privado.
A ministra deu mostras de confundir troca de arquivos pela web com furto
e, assim, chamou veladamente tais internautas de ladrões.
Causa enorme
preocupação a constatação de que o órgão máximo de gestão da
cultura brasileira está sob o comando de alguém tão despreparado.
É ingenuidade, porém, a crença de que o problema do MinC seja de
ordem individual e que uma simples troca de nomes resolveria a
questão. Ana de Hollanda é uma peça da política federal de
cultura do governo Dilma Rousseff, e qualquer mudança só será
efetiva se a ideologia orientadora de tal política for
alterada a favor de uma abordagem positiva
da cultura digital, da retomada dos grandes projetos de inclusão
cultural da gestão Gilberto Gil/Juca Ferreira, hoje claramente
boicotados, e do fim da visão mercadista e atrasada de direitos
autorais que colocou o suspeitosíssimo Ecad no centro da cena
cultural brasileira - a qual ora se encontra muito aquém de suas
imensas potencialidades, em larga medida devido ao
estrabismo cultural do Estado.
A
audiência de Ana na Câmara dá-se em um momento em que a
insatisfação acumulada pela classe artística, por ativistas
digitais e pelos produtores culturais encontra-se na iminência de transbordar. Circula um
manifesto, que une tanto artistas de centro-esquerda quanto do campo
oposicionista, pedindo a substituição de Ana por Danilo Miranda, diretor cultual do SESC. Os ativistas digitais, que foram
ponta-de-lança durante as eleições, formam certamente o grupo mais
insatisfeito: se sentem traídos, dada a disparidade entre os
compromissos com a cultura digital assumidos em campanha - para a qual contribuíram intensamente - e a postura
mercantilista e corporativa assumida pelo MinC.
Dilma
parece dar, cada vez mais e a um número cada vez maior de pessoas, a
impressão de que seu governo concentra-se sobretudo em um esforço
gerencial, alegadamente “desideologizado”, da economia – e que
tudo o mais – políticas de gênero, educação, cultura - é
supérfluo. A classe artística é numericamente pequena, mas
tende a ser politicamente mais volátil e a ter um grande poder de
influência. A insistência no retrocesso das políticas culturais,
do qual Ana de Hollanda tornou-se o símbolo, além dos graves danos
à cultura, à cidadania e à segurança jurídica na internet que já vem
causando, pode vir a cobrar um alto preço eleitoral no futuro.
3 comentários:
Anacrônica é a palavra certa! Difícil não ver o contraste de visão política entre Gil, Juca e Ana. Tem que ser muito cego para não ver... E se a Dilma tem mesmo uma visão mais avançada, porque não tirou a Ana ou fez ela mudar de direção naquele caso do Creative Commons que rolou em 2011? Tá quesito esse negócio aí, viu...
Caleiro,o Merthiolático.
Muito boa sua perspectiva, esta história do ecad é de doer!
Vamos ver no que vai dar e vamos chiando.
Ah, postei no nosso blog este texto também.
Grande abraço.
Amanda,
A Anacrônica é só uma peça, que a Dilma move na direção que quiser ou tira do jogo. Acho que a tal visão avançada ou era truque eleitoral ou foi trocada por algum acordo espúrio.
Mucury,
Parabéns pela revista, ficou linda - aliás, merthiolática!
Um abraço aos dois e obrigado pelos comentários.
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