Não restam dúvidas de que o aumento mundial dos preços das commodities é, atualmente, um fator de inquietação a gerar tensões inflacionárias no exterior e, em decorrência, no Brasil. Tais pressões se mostram agravadas, no caso brasileiro, não só pelos efeitos deletérios da inepta sobrevalorização do real em relação ao dólar – a qual, de longa duração, tem afetado duramente setores industriais nacionais -, mas por dois fatores decorrentes da ampla expansão de crédito verificada no biênio final do governo Lula: a inflação especulativa gerada pela alta demanda por determinados produtos e serviços e (em parte como desdobramento desta) a iminente possibilidade de um estouro da bolha de consumo na forma de inadimplência em cadeia
Portanto, é forçoso reconhecer que há motivos reais de preocupação na seara econômica – a expansão do crédito interno, se foi um fator fundamental para que no Brasil a crise econômica mundial não passasse de uma “marolinha”, cobra agora, num cenário de alta inflacionária mundial, o seu preço.
É como reação a tal cenário que se inserem as principais medidas do início do governo Dilma, como a meta de zerar o déficit nominal [gastos menos despesas, incluindo pagamento de juros], em nome do qual se anuncia um corte de R$50 bilhões no orçamento (o qual, a despeito do que declara o governo, fatalmente reincidirá sobre áreas sociais); um salário mínimo sem aumento real, fixado em módicos R$545,00; e a suspensão de novos concursos e de contratação de aprovados em concursos anteriores (no âmbito federal, é claro).
Déjà-vu
Tudo isso torna o início do governo Dilma incrivelmente parecido com a primeira presidência de Lula, cujo biênio inicial no poder, com Palocci à frente do Ministério da Fazenda, foi marcado por um aperto macroeconômico de diretriz neoliberal ainda mais severo do que à época de FHC/Malan. Cristãos novos tendem a ser mais fanáticos, diz o ditado.
Como a repetir tal dinâmica, o governo Dilma anuncia que não se contentará em manter um alto superávit primário [gastos menos despesas, sem contar pagamento de juros], mas, como já mencionado, quer zerar o déficit nominal. Se levada efetivamente a cabo, trata-se de uma medida que exigirá restrições orçamentárias de efeitos sociais potencialmente devastadores.
Desnecessário assinalar que a situação enfrentada por Lula em 2003 era incomparavelmente mais grave do que a atual, com o país tendo ido à bancarrota três vezes e uma quebradeira total a la Argentina ainda antes da posse só evitada por um empréstimo tomado, com o aval do presidente norte-americano George W. Bush, junto ao FMI, o qual impôs as medidas de cunho neoliberal acima referidas, notadamente o comprometimento com um alto superávit primário e um Banco Central independente (se não no papel, na prática, como de fato se manteve, Meirelles à frente, até o final da segunda presidência de Lula).
No caso do ex-presidente, essas medidas iniciais acabaram por se provar fundamentais para que o país tivesse lastro para bancar, sobretudo via setor público, o aumento de empregabilidade, crédito e, em decorrência, mercado, que não só possibilitou superar olimpicamente a crise mundial mas promoveu a ascensão de uma nova classe média, sem deixar de reduzir de forma expressiva a pobreza via programas sociais.
Deve-se, em relação aos acontecimentos atuais, levar em conta tal dinâmica, sobretudo no que diz respeito a um governo em estágio embrionário e reiteradamente comprometido não só com o modelo de desenvolvimento socialmente includente erigido por Lula mas com a bandeira de um Estado com participação ativa na economia.
Simbologia do aumento do mínimo
Ainda assim, destrinchado o contexto e feitas tais ressalvas, a recusa por um aumento real do salário mínimo não deixa de soar como uma medida excessiva, prescindível e socialmente inadequada, além de geradora potencial de um grande desgaste político-eleitoral.
O salário mínimo de R$545,00 (cerca de U$320) é incomparavelmente maior do que na era FHC, em que a meta, poucas vezes atingida, era equipará-lo a U$100. Não passa, portanto, de oportunismo eleitoral a defesa de um mínimo de R$600 por parlamentares tucanos. Por outro lado, é também irreal (como de costume), pois inexequível, o clamor por R$700 mensais bradado pelo PSOL.
Mas se o compromisso do governo Dilma é de fato com a continuidade e o aprimoramento das conquistas da era Lula, o coerente seria a concessão de um aumento real do salário mínimo, ainda que, dadas as pressões econômicas, pequeno. Certamente há, no enorme montante de dinheiro público que escoa para os ralos do setor financeiro, um aporte de verbas qualquer capaz de permitir tal aceno simbólico aos que deram seus votos para um projeto político progressista.
Medida arbitrária
Talvez mais grave do que a questão salarial é a contingência de contratações e concursos anunciada ontem (15/02). Trata-se de uma medida perigosa para o bom funcionamento das instituições federais, em um momento em que um salto de qualidade em alguns setores parece prestes a ocorrer; é, ainda, passível de ser identificada como um flanco aberto pelo governo ao render-se ao discurso de enxugamento da máquina, que os setores conservadores berram reiteradamente, alegando aparelhamento estatal; e, mais grave, vai frontalmente contra os compromissos que a própria Dilma defendeu publicamente, inclusive no discurso da posse.
Tanto a recusa pelo aumento real do mínimo quanto, sobretudo, a suspensão de concursos e contratações soam extremamente mesquinhas - além de fornecer motivos concretos para alimentar temores quanto às posições de Dilma que a presença de Palocci no governo só faz incitar.
O governo mal se inicia, mas, é forçoso constatar, se inicia mal. Merece, sem dúvida, um voto de confiança e um prazo bem maior que um mês e meio para dizer a que veio. Porém, não reconhecer a inadequação, a orientação antissocial e o caráter intrinsicamente neoliberal das medidas acima referidas equivale à omissão.
9 comentários:
Muito bom, Caleiro. Em minha humilde opinião, esse equilíbrio que sopesa prós e contras é o que falta em nossa esquerda -- vê em qualquer crítica uma resteira e só aceita o elogio que mascara os problemas. Estamos sim num momento difícil. Assim como estivemos no início do governo Lula.
Obrigado, Marinilda, legal você ter comentado (e ter a paciência de repostar aqui...). Confesso que fiquei pasmo com o contigenciamento dos concursos e nomeações, achei deplorável. Mas é mesmo um momento difícil, vamos manter uma certa tolerância, afinal o governo mal começou e a Dilma teve um papel fundamental nas conquistas da era Lula. Abs.
Olha, o contingenciamento é mais velho do que andar pra frente. Ocorre todo início de ano e vai sendo reposto (descontingenciado, ufa!) ao longo dos meses. Ocorreu em todos os governos. Acho mais graves as coisinhas ocorrendo na paralela...
Se você diz, acredito. Mas achei preocupante a autorização para contratação de professor temporário, sem direito a férias e a 13o., para lecionar nas novas federais. Para quem prometia priorizar a educação, é um escárnio.
Excelente post, pegou muito bem as temáticas mais preocupantes da vertente econômica e traz pra questões concretas do dia a dia. Precisamos ficar alertas Gov de esquerda, administrando um estado capitalista em crise, tende a ser "mais realista que o rei", assim como Lula demorou 2 longos anos pra mudar, Dilma não precisa dar tantas provas de fé no capital.
Abraços
"Mais realista que o rei" é a expressão que melhor traduz a ortodoxia exagerada dessas medidas. E hoje o governo ainda corta impostos de importados. Tô passado...
Um abraço,
Maurício.
É realmente preocupante. Eu ainda sou a favor de observar por mais tempo esses acertos. Mas não custa cobrar que o governo não se esqueça dos seus compromissos.
No entanto eu tenho fé que uma pessoa que, como a Dilma, viu a política social-econômica dar mais certo - inclusive em termos econômicos - do que a política enxugatória-econômica, vá dar pra trás logo agora..
vamos torcendo pelo melhor, nós que nada entendemos disso ;)
Caleiro, você acusa parte da blogosfera de “desonestidade intelectual”. E isso você fez no segundo parágrafo do texto. O mesmo parágrafo em que você afirma que o governo Dilma impinge agora um “duríssimo choque anticíclico”, nunca visto sequer no “turbulento início de Lula, herdeiro da “herança maldita” tucana.
Não vou acusá-lo também de “desonestidade intelectual’, mas no mínimo você perdeu a mão. Vamos refrescar a memória? Em 2002 a inflação chegou a algo próximo a 14% e os índices apontavam para mais de 20%. Em meio à herança maldita de FHC, também repleta de debitos e caixa zerado, o governo Lula aumentou a taxa de juros para 26,5% em março de 2003. Em 2011 a taxa de juros também subiu, subiu para 11,25%!
Como você pode afirmar que o choque “anticíclico” da Dilma foi pior do que o de Lula? Você não se lembra da falta completa de investimentos privados, do alto desemprego, da recessão de 2003? Diante da comparação, como você afirma que temos agora um “duríssimo choque anticíclico nunca visto sequer no turbulento início da presidência de Lula”?
Na verdade, o choque dado no início do governo Lula nem foi “anticíclico”! Esse sim foi um choque duríssimo porém inevitável, que estabeleceu um grande sacrifício para que o país pudesse se estabilizar e crescer de modo sustentado, como efetivamente aconteceu! Foi um choque recessivo em meio a uma economia esquálida.
Vou repetir: como você pode sustentar que juros de 11,25% e uma economia de 50 bilhões no orçamento foram mais drásticos do que o início do governo Lula? A economia continua crescendo, a taxa de desemprego está no recorde mais baixo, os investimentos privados continuam, o PAC continua, o Minha Casa Minha Vida está aí, a desigualdade diminuiu.
No mais, eu também não concordo com o viés geral do seu texto. A Dilma é presidente do Brasil e pode sim comparecer ao convescote da folha, ela não foi lá me representar ou me contrarepresentar. Ela foi lá desempenhando um papel de chefe de Estado, escolhida pela maioria.
Mais importante do que saber onde e com quem a Dilma falou é sabermos os rumos que ela vai tomar nos temas nacionais.
E vou mais além. No começo do governo Lula até eu comprei as críticas contra a sua obsessão anti-inflacionária. Critiquei a falta de arrojo em relação ao crescimento da Argentina e da Venezuela.Bem, não preciso dizer mais nada, você já entendeu. Hoje é muito fácil constatar que "o cara" é que estava certo.
Muitos jornalistas e blogueiros carregam as suas tintas nas críticas, esse recurso é bastante eficiente em termos de ganho de visibilidade, de formação de polêmicas e tudo o mais.
Eu prefiro análises mais ponderadas e menos espalhafatosoas, essas costumam ressistir melhor ao tempo. Mesmo que esse tempo não seja assim tão longo...
Caleiro, por engano postei aqui um comentário que deveria ter postado no post mais recente, o da primavera da blogosfera.
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