O caso de
Karina Bolaños, vice-ministra da Juventude e Cultura de Costa Rica
demitida após um vídeo íntimo “vazar” na internet, não
obstante estar sendo tratado nas redes sociais como mera anedota,
suscita importantes questões sobre as relações entre poder, ética
e sexualidade, em um contexto de diluição das fronteiras entre o
pessoal e o público.
No vídeo
caseiro, Karina adentra o quadro pela lateral, de lingerie, deita-se
de bruços sobre a cama de casal, perpendicularmente à câmera e,
com o rosto em primeiro plano, olhando diretamente ao espectador, faz
calientes declarações de amor ao que se evidencia ser alguém
com quem já se relacionara anteriormente.
Não há
absolutamente nada de pornográfico e, embora a CNN, ao transmiti-lo,
tenha borrado digitalmente parte da imagem (para evitar que fossem
vistas as bordas das auréolas em volta dos mamilos), trata-se de
material que, se parte de uma trama ficcional, poderia tranquilamente
ser exibido numa telenovela brasileira.
Fora dos padrões
A ênfase
cômica com que o vídeo tem sido difundido nas redes sociais é
compreensível, mas empobrecedora. Sendo a circulação de fait
divers de apelo humorístico
uma das modalidades principais
da internet, o vídeo de Karina, além de saciar o voyeurismo que
caracteriza as sociedades contemporâneas e explica o sucesso de
reality-shows e
congêneres, parece ter se tornado atraente para os aficionados
justamente por seu conteúdo desviar-se dos padrões
estético-comportamentais impostos pela indústria cultural.
O que o tornaria engraçado é o fato de ser protagonizado não por
uma Paris “Barbie” Hilton de corpo sarado transando para as
câmeras que, como parte do esforço de autopromoção, finge
desconhecer, mas por uma mulher comum, nem muito feia nem muito
bonita, nos seus quarenta anos, com um corpo alguns quilos acima do
que a ditadura da beleza manda, e cujos impulsos sedutores incluem
gravar em vídeo derramadas promessas de êxtase a quem ama.
Economia sexual
Pergunto: o que há, de fato, de tão engraçado no vídeo? Por que
provocou tanto frenesi e estupefação? A imposição de padrões
quase inalcançáveis de beleza estaria de tal modo instituída que
teria tacitamente proibido aos que neles não se encaixam ousarem
manifestar sua sexualidade e o fazerem sem o crivo do deboche? Ou é
a própria concepção de romantismo que se mostraria de tal forma
sobrepujada por uma visão programaticamente mensurada, cronometrada
e atlética do universo afetivo-sexual que torna anacrônico o que
recenda a romantismo e derramamento?
Creio que uma das possíveis respostas a esta pergunta é que Karina,
com seu físico fora dos padrões e o tom confessional de seu
romântico erotismo, é uma penetra numa festa à qual não foi
convidada, numa arena virtual reservada àqueles que obedecem os
preceitos ditados pelo biopoder capitalista em seu atual estágio,
que propulsiona, através do culto fetichizado do corpo perfeito e
da hiperestimulação de uma sexualidade definida em bases clínicas,
um processo de insatisfação permanente do ego, o qual, por sua vez,
retroalimenta continuadamente o consumismo.
E
um dos traços distintivos de tal economia política – e uma das
bases para sua manutenção - tem sido, justamente, a criação de um
discurso de exclusão que quer fazer crer que o acesso a uma
sexualidade prazerosa limita-se aos que se adequam a tais demandas.
Ao contradizer tal mito, o caso Karina também escandaliza porque
acaba por furar o bloqueio e aludir ao fato de que, por mais
surpreendente que a alguns possa parecer, a grande maioria de
mulheres com estrias e celulite, gordinhas, gordas ou obesas, bem,
como os homens barrigudos e carecas, também têm vida afetiva e
sexual, muitas vezes intensa. A sexualidade restrita aos seres de
corpo perfeito é um fetiche da era da virtualização do sexo, um
fenômeno com menos de 20 anos.
Injustiça e sofrimento
Desde o início, embora goste de dar risadas com coisas tolas, não
consegui ver nada de engraçado no vídeo de Karina. Talvez eu tenha
uma prevenção contra esse voyeurismo que se tornou corrente,
manifestada numa ojeriza ao vazio intelectual e existencial de Big
Brother e congêneres, mas o fato é que o que vi no vídeo foi
uma mulher, um ser humano, tendo sua intimidade brutalmente
devassada, contra sua vontade e em nome de uma voyeurismo humorístico
gratuito. O sentimento predominante, para mim, foi a certeza de que a
experiência de ser assim exposta deveria estar sendo avassaladora
para ela.
De fato, a história por trás do vídeo nada tem de engraçada. Além
de ter custado o emprego de sua protagonista, sua divulgação se
deve, segundo relato de uma devastada Karina à CNN em espanhol, a um
malfadado processo de extorsão da qual ela e seu marido - que é deputado e era o destinatário do polêmico vídeo - seriam, há
meses, vítimas.
Na entrevista, que pode ser vista no vídeo abaixo, embora o seu
abatimento emocional fique evidente e confirme, infelizmente, o
sentimento que tive ao assistir ao vídeo, Karina tem a lucidez de
reivindicar o caráter privado do vídeo, o direito de exercer sua
sexualidade e de protestar contra sua demissão.
A reação patriarcal
É de fato lamentável - e significativo - que o universo da
política, tão tolerante quando se trata da relativização de
programas de governo, da constituição de alianças espúrias e da
malversação de verbas públicas, se mostre implacável ante a
sexualidade feminina, ainda que manifestada em um contexto privado
cuja publicização, a rigor, em nada afetaria o desempenho
profissional de sua protagonista.
Acho uma
pena que o caso Karina tenha
recebido tão pouca atenção das feministas brasileiras. Para
ficar só em dois tópicos de evidente interesse, a demissão da
vice-ministra é um exemplo didático do recurso ao moralismo como
instrumento patriarcal de repressão e, como já acima sugerido, a
reação ao vídeo vazado evoca uma série de questões relevantes
concernentes a corpo, sexualidade e padrões de beleza impostos às
mulheres. Merecia ser levado seriamente e mais debatido.
2 comentários:
Concordo com você, tanto em relação à análise que faz do episódio quanto no que diz respeito ao silêncio das feministas.
Muito boa sua análise sobre como os padrões inalcançáveis nos impinge sofrimentos que tentamos curar com o consumismo. Não tinha pensado nisso.
Abraços
Obrigado, Natalie,
Um abraço.
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