A lisura no trato da
coisa pública é uma aspiração legítima da sociedade brasileira,
e o fato de o conservadorismo, em conluio com a mídia, manipular
politicamente tal demanda não a torna menos genuína. A esquerda não
pode igualar-se à direita e se utilizar de dois pesos e duas medidas
para relativizar a corrupção e dissimular suas próprias violações
éticas, sob pena de comprometer não apenas sua imagem, mas a
legitimidade de seu projeto político.
Por outro lado, a
parcialidade, a distorção deliberada e a assimetria de tratamento
que a mídia dispensa à corrupção quando praticada por
conservadores ou progressistas constitui, em si, não apenas uma
grave negligência das funções públicas que os meios de
comunicação – mesmo se privados - deveriam exercer, mas, assim,
uma forma perversa de violação da ordem democrática.
Que tal violação,
embora evidente e de longo prazo, permaneça impune – para o que
muito contribui a extinção da Lei de Imprensa pelo mais midiático
e politicamente tendencioso ministro da história do STF –
constitui, em si, um atestado do precário estágio do ordenamento
institucional jurídico do país e dos desequilíbrios entre os pesos
e contrapesos que lhe deveriam assegurar a plena democracia.
Parcialidade e omissão
O protagonismo do
“escândalo do mensalão” e a presunção de que seria o maior
caso de corrupção da história do país derivam diretamente desse
estado de coisas. Tanto o volume de movimentação financeira
envolvido quanto a gravidade das práticas alegadamente
identificadas, não obstante merecedoras de investigação e de
apreciação pela Justiça, estão aquém dos níveis alcançados por
diversos casos pregressos e atuais patrocinados pelos setores
conservadores, como o esquema identificado pela Operação Monte
Carlo da Polícia Federal, protagonizado por Carlinhos Cachoeira,
políticos do DEM e ao menos um órgão de imprensa, e as denúncias
documentadas envolvendo José Serra e o processo de privatização da
era FHC apresentadas no livro A Privataria Tucana,
do premiado repórter Amaury Ribeiro Jr.
O fato de a mídia dar
relativamente pouco destaque às descobertas gravíssimas da Operação
Monte Carlo – que sugerem um poder paralelo que dominaria o estado
de Goiás, com ramificações nacionais e grande poder de manipulação
midiática –, e não dar uma linha sequer sobre as denúncias
envolvendo as privatizações tucanas, em comparação com o
estardalhaço que fez, faz e continuará fazendo com o mensalão,
constitui uma clara violação do princípio da imparcialidade
jornalística.
Às favas os princípios
Ainda que constitua, na
prática, um preceito inatingível em sua plenitude, o esforço para
se manter fiel a ele seria fundamental para assegurar um
processamento criterioso e equânime à notícia, o qual desse um
tratamento em bases similares aos acusados e fornecesse os elementos
para o leitor julgar por si mesmo os fatos retratados, sem induzi-lo
ou manipulá-lo a favor desta ideologia ou daquele partido.
Desnecessário observar
que a mídia brasileira, embora erija para si um discurso fundado no
direito público à informação, ignora solenemente tal princípio
e, na verdade, pratica o inverso do que ele preceitua, como fica
evidente quando se analisa os casos acima citados e na diferença de
tratamento entre o quase desconhecido “mensalão” do PSDB e o
megadifundido “mensalão” petista. O primeiro, embora
cronologicamente anterior, milionário, protagonizado pelo mesmo
Marcos Valério e com processo criminal aberto no STF contra o
ex-governador Eduardo Azeredo (PSDB/MG), só é referenciado como
“mensalão mineiro”, truque retórico que troca a origem
partidária pela regional como forma de blindar os tucanos.
A cobertura do
“mensalão”
Seria ingenuidade
esperar que, com tal retrospecto, a mídia fosse oferecer uma
cobertura minimamente equilibrada do trâmite, no STF, da Ação
Penal 470, vulgo “julgamento do mensalão” - afinal, trata-se de
uma rara chance de, em pleno período eleitoral, dar uma força ao
carcomido demotucanismo.
O primeiro dia, que foi
dedicado a examinar – e a negar - o pedido da defesa pelo
desmembramento do processo - para que permanecessem apenas os réus
com direito à foro privilegiado no STF e os demais fossem submetidos
à primeira instância, como ocorrera com o “mensalão mineiro” -
acabou, inadvertidamente e numa ironia do destino, por levar ao
conhecimento do público a existência de um “mensalão” do PSDB,
citado pela maioria dos ministros.
Premissas questionáveis
Mas a mídia reagiria
ao lapso já no dia seguinte. E de forma virulenta: só o
partidarismo mais tacanho, somado ao pouco apreço pelo Estado de
Direito e ao desprezo intelectual que nutre por seus leitores e
telespectadores – os quais Willian Bonner compara a Homer Simpson
-, pode explicar a ginástica verbal que ela, no intuito de tirar o
máximo proveito eleitoral do “mensalão”, tem feito desde então
para legitimar como incriminadora a peça acusatória apresentada por
Roberto Gurgel, procurador-geral da República, contra o ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu.
O procurador parte de
uma premissa genérica que, não obstante potencialmente perigosa,
beira a comicidade: a de que a não-aparição do nome do acusado na,
em suas palavras, “execução do esquema” é indício de que ele
seria o “chefão”. Uau, isso permitiria acusar virtualmente
qualquer um. Seria o caso de recomendar aos chefões do crime, de
agora em diante, que, para se preservar, cuidem de sempre colocar seu
nome no expediente de suas quadrilhas...
A explanação de
Gurgel pecou não apenas por partir de tal premissa, mas por se valer
unicamente de relatos de terceiros – em sua maioria, acusados ou
inimigos políticos do réu – e de trechos selecionados de matérias
produzidas por nossa mais do que tendenciosa imprensa. Soa como uma
base para acusação extremamente frágil.
Provas, para quê?
Nenhum indício
material - um extrato de banco, uma assinatura em um documento -;
nenhuma evidência física - uma gravação, uma foto, um vídeo -;
nenhuma prova digital – um comprovante de transferência, um log de
movimentação financeira ou epistolar, um SMS, uma chamada
telefônica.
Na era do positivismo
científico, da tecnologia forense, do DNA, da vigilância eletrônica
e digital não seria demais esperar que o ilustre procurador
apresentasse indícios concretos e provas factíveis, passíveis de
comprovação, ao invés de uma interminável e monocórdia arenga
baseada numa premissa pra lá de questionável e no “ouvi dizer”
de testemunhas de índole questionável, além de no material produzido por uma mídia comprometida
até o pescoço com a condenação de Dirceu.
Talvez tivesse sido
mais honesto se o procurador abrisse mão da benevolência midiática
e de seus holofotes e admitisse que o Ministério Público Federal
não foi capaz de achar provas contra o acusado.
Punam-se os culpados,
mas todos
A falta de provas
contra Dirceu talvez seja uma exceção. Há, sim, um forte indício
de irregularidades cometidas, se não por todos, por alguns dos réus
do julgamento. É bem provável que pelo menos a utilização de
“caixa dois” seja caracterizada no decorrer do julgamento. Se
isso vier a acontecer, os responsáveis devem ser punidos, e com o
rigor cabível.
Ocorre, porém, que
utilização de “caixa dois” é um expediente amplamente
disseminado entre virtualmente todos os partidos políticos do país
e pau que bate em Chico bate em Francisco - ou seja, se o partido A
for justamente punido por recorrer a uma prática ilegal, a justiça
e o bom funcionamento da democracia demandam que os partidos B, C, D
e E também o sejam. E que a mídia cubra com igual voracidade. De
outro modo, não se estará fazendo justiça, mas, ao dispensar
diferentes tratamentos a práticas idênticas, promovendo o contrário disto.
(Imagem copiada daqui)
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