O golpe de Estado
contra o presidente eleito do Paraguai, para além dos graves danos
que causa à evolução da incipiente democracia do país – que
até 1989 esteve sob a ditadura de Stroessner e desde então só
elegera mandatários do partido de centro-direita Colorado, com
exceção de Lugo -, abre um precedente perigoso e potencialmente
ameaçador à normalidade democrática na América do Sul.
Tal constatação é
corroborada por três fatores principais: o primeiro é a natureza
cosmética da deposição de Lugo, um golpe de Estado travestido de
impeachment, não obstante
tratar-se de mera pantomima jurídica, com o raio de ação e o tempo
disponível à defesa do acusado drasticamente limitados e armado com
acusações baseadas em platitudes sem definição legal ou critérios
objetivos de averiguação, tais como “mau exercício do governo”.
Guess
who's coming to dinner?
A
velocidade recorde com que os Estados Unidos, confirmando sua
autoatribuída vocação de país defensor da democracia,
reconheceram o novo governo de um golpista que atende pela sugestiva
alcunha de Franco é um segundo elemento a caracterizar a quartelada
civil paraguaia como ameaçadora à soberania sul-americana. O
reativamento da Quarta Frota, as evocações cada vez mais frequentes
à Doutrina Monroe e a tentativa recente - e malsucedida – de
fincar uma base militar no Equador são representativas da atenção
e das intenções do país mais bélico do mundo para com a região (leia texto de Azenha sobre interesses dos EUA no golpe).
Tanto
mais pelo crescimento que ora se verifica, no subcontinente, no
número de regimes, democraticamente eleitos, alinhados à
centro-esquerda ou à esquerda bolivariana, ambos patrocinadores, em
maior ou menor grau, de projetos políticos que implicam tanto na
recusa à ALCA quanto ao fim do alinhamento automático e
preferencial com os EUA.
A
tal configuração, que forma o último item de nossa lista tríplice,
a quartelada que depôs Lugo (foto) se contrapõe como sugestão às forças
conservadoras sul-americanas ora na oposição – e a seus parceiros
transnacionais – de uma promissora novidade: a armação de
cenários golpistas aparentemente assépticos, sem tanques na rua, a
partir do conluio entre oligarquia, parlamentares e mídia.
Reações
Ante
tal quadro, duas medidas se impõem como mais do que urgentes,
necessárias: a reação ao golpe paraguaio, como forma de
revertê-lo, restituindo a ordem constitucional; e a tomada das
devidas precauções para impedir que conspirações similares tenham
lugar nos demais países da América Latina.
Quanto à reação, é forçoso constatar que a
janela de reversão imediata do golpe estreita-se à medida que o
tempo passa, sobretudo se se leva em conta a rapidez com que ditas
potências imperialistas do hemisfério norte vêm reconhecendo o
novo regime. Mesmo com a reação enfática de Argentina, Venezuela e
Equador – e com nota oficial firme e ponderada do governo
brasileiro – a possibilidade de ver Lugo reempossado já nos
próximos dias depende agora de uma combinação extraordinária de
sucessos.
De qualquer forma, hoje ou em um futuro próximo,
a reversão do quadro dependerá de uma ação coordenada entre os
países com governos progressistas na região e as forças legalistas
paraguaias visando, a um tempo, esvaziar a autoridade dos golpistas e
construir meios de recondução e bases institucionais de sustentação
a Lugo. Além do enfrentamento com os próprios golpistas e com a
elite paraguaia, tal operação implica numa batalha
surda com os EUA e em deparar-se com delicadas e potencialmente explosivas questões
- inclusive algumas diretamente relativas ao Brasil, como no caso dos brasiguaios e dos “sacoleiros” - derivadas da permeabilidade das fronteiras paraguaias e do protagonismo da questão agrária no país, tema este analisado por Chico Bicudo.
Medidas preventivas
Já
em relação a medidas preventivas contra esse tipo de golpe low
profile, afiguram-se urgentes ações em três frentes: no âmbito
sul-americano, numa interação coordenada entre os governos
progressistas da região no sentido de, com ações de inteligência,
antecipá-las e as neutralizar e de, se mesmo assim efetivadas, agir
pronta e conjuntamente para esvaziá-las e as reverter.
Já
em termos nacionais, a mais efetiva medida contra anomalias golpistas
é o reforço das instituições democráticas, notadamente
assegurar-se de dar à Justiça, ao Legislativo e ao Executivo não
apenas as melhores condições para o exercício de suas funções –
e isso inclui a adoção dos métodos mais democráticos para eleição
ou seleção dos cidadãos e cidadãs melhor capacitados a
desempenhar tais funções -, mas a preservação do equilíbrio de
relações o mais harmoniosas entre os três poderes.
Ademais
-e ainda no âmbito das medidas institucionais anti-golpismo - a
implementação do que Norberto Bobbio denominou Direitos Humanos de
quarta geração acaba por implicar, além de numa vacina
anti-golpismo (não fosse este, por definição, um ato múltiplo de
violação de DHs), na necessidade de efetivação do esforço de
superação positiva dos meios de participação popular na
democracia representativa convencional, com o recurso a uma interação
maior, mais frequente e mais efetiva dos cidadãos com os poderes
constituídos, para além do momento de eleição.
Por
fim, a terceira frente de ação preventiva diz respeito à mídia
– talvez o mais urgente e danoso dos
elementos potencialmente golpistas do cenário brasileiro, hoje.
O
fator mídia
O
comportamento da mídia brasileira quanto ao golpe em Assunção, em
sua quase totalidade, veio a corroborar sua posição de defensora
dos interesses das forças conservadoras, obedientes às regras
democráticas ou não. As falas de personagens como Arnaldo Jabor ou
Merval Pereira no sentido de, mais do que legitimar, enaltecer o
golpe acabam, por sua falta de coerência e excesso de parcialidade,
a deixar ainda mais evidente que eles – como tantos de seus colegas
com assento na mídia corporativa - não passam de ventríloquos
travestidos de jornalistas, a vocalizar um texto ditado pelo mercado
e pela corporação que lhes paga o salário. E, assim, o apreço que
tais corporações nutrem pela democracia se torna evidente.
Por
outro lado, como demonstrado com o brilho costumeiro e de forma cabal
por Dênis de Moraes no último encontro nacional de blogueiros, o
Brasil encontra-se em um estágio consideravelmente mais atrasado do
que vizinhos como Venezuela, Equador e Argentina no que concerne à
regulamentação e à decorrente diversificação político-ideológica
da mídia [em breve farei um post específico sobre sua apresentação
no evento.] É preciso muita indulgência para não reconhecer que os
governos Lula, com sua resistência passiva, e Dilma, com seus
esforços de cooptação, se esforçaram pouco e avançaram menos
ainda na democratização e na defesa da regulamentação da mídia.
Portanto, a questão midiática certamente se mostraria problemática na eventualidade agourenta de um
dia sofrermos uma tentativa de golpe aos moldes em questão – dados o grau de penetrabilidade capilar interna de parte mídia
brasileira e sua conformação como corporação transnacional, com
um peso e um potencial danoso exponencialmente maiores do que ora se
verifica no golpe no Paraguai. Desnecessário assinalar que este
forma mais uma entre tantas razões a evidenciar a urgência e a
centralidade da questão midiática no Brasil, e o quanto esta
demanda uma imediata e condizente atenção.
Diferença de escala
Embora
seja prudente tomar todas as medidas preventivas contra a
disseminação de tal espécie de golpe, é preciso ter claro, no que
nos tange diretamente enquanto nação, que o Brasil não é o
Paraguai.
Pois
uma análise sem preconceitos mas também sem ilusões mostra-nos, de forma clara, que,
comparativamente, a situação institucional é bem mais frágil no
país vizinho, devido a fatores diversos - em algum grau passíveis de serem atribuídas a uma herança histórica
para a qual o próprio Brasil contribuiu, quase exterminando, com sangue
escravo e a soldo da Inglaterra, a população masculina adulta paraguaia,
num genocídio que muito deveria nos envergonhar (e que, por isso mesmo, alguns revisionistas tentam a todo custo desmentir).
De qualquer maneira, o fato é que a fragilidade comparativa do país vizinho é hoje gritante no tamanho da
economia e na decorrente volubilidade econômica; na cultura política
construída num contexto de redemocratização tardia e precária, virtualmente
monopolizada pela centro-direita e marcada por episódios golpistas
mais ou menos recentes - além, sobretudo, da pobreza e da miséria
brutais as quais está submetida, sem colchões assistenciais
efetivos, a grande maioria da população paraguaia.
Tais constatações, não obstante lamentáveis, se
contrapostas às mostras de resilência da democracia brasileira nas
últimas décadas permitem, mesmo reconhecendo que esta está longe de poder ser considerada avançada, identificar diferenças de
escala entre um e outro modelo político-institucional e de estágio
entre graus de evolução democrática..
No pasarán
Esta
é uma razão a mais para que, embora, como já dito, devamos estar
atentos para evitar ao máximo a possibilidade de que algo similar ao
golpe paraguaio tenha lugar aqui, o novo modelo de insurgência das
elites não possa servir para a defesa de uma postura ainda mais
cordata e indulgente da esquerda em relação às forças conservadoras
nacionais, impulsionada por tais temores golpistas.
Seria,
na democracia, o pior dos cenários: na já excessivamente
contemporizadora e, no sentido buarqueano do termo, cordial política
brasileira, a inoculação do medo – e, pior, do medo golpista –
como forma de impor alianças mais dilatadas entre progressistas e conservadores.
Tal feito significaria não apenas a sujeição ainda maior a
demandas regressivas, mas, assim, a promoção espontânea de um
processo de indistinção entre esquerda e direita que só tende a
beneficiar esta, enquanto descaracteriza aquela. (Não é mera
coincidência que o golpe no Paraguai venha sendo utilizado nas
redes sócias para justificar aliança do PT de São Paulo com Paulo
Maluf, o que é o cúmulo do oportunismo – e não só porque o
político em questão é, ele mesmo, produto de uma ditadura
militar.)
2 comentários:
Grato pela rápida análise do fato. Que se soma a outras para bem avaliar o acontecido.
Obrigado, Puebla, abração!
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