O debate em torno da
renúncia de Luiza Erundina à candidatura à vice-prefeitura de São
Paulo, para além das questões políticas concretas às quais se
liga – como a aliança do PT com o PP de Maluf ou a escolha de um
novo candidato a vice - evidenciou importantes aspectos acerca dos
debates e dilemas políticos da esquerda - e de sua relação com o
conservadorismo - em um contexto no qual as redes sociais assomam à
posição de fórum comunicacional dos mais relevantes, por vezes
determinante.
Esse cenário traz em
seu bojo uma série de benefícios imediatos e de possibilidades de
comunicação, interação e, em algum nível, de participação
política – as quais, aprofundadas e institucionalizadas à medida
que a tecnologia e a inclusão digital avancem, tendem, a médio
prazo, a revolucionar o próprio modo de inserção
político-eleitoral dos cidadãos no âmbito de uma ciberdemocracia.
Movimento de manada
Por outro lado, essas
transformações operadas na confluência da tecnologia, da
comunicação e da política, embora eminentemente positivas, não
estão desprovidas de armadilhas, de riscos de manipulação e de
possibilidades temerosas várias, os quais acabarão por demandar
autocrítica, ajustes e precauções por parte dos próprios agentes
comunicacionais e políticos.
Assistimos neste
momento, no Brasil, à disseminação de uma das mais potencialmente
danosas dessas práticas, cuja diifusão tem sido extremamente
facilitada pelas chamadas novas tecnologias: o ataque pessoal
desqualificador em massa. Ele constitui, de qualquer maneira, uma
prática a se lamentar, mas mais ainda porque ora se dá no interior
da própria esquerda, em um processo autofágico de agressões
mútuas. Isso já vinha ocorrendo, pontualmente e em escala menor, há
algum tempo, mas atinge uma especie de ápice através do processo de
agressiva difamação contra Erundina que teve lugar nas redes
sociais já na noite de terça-feira (19/06) e se manteve intenso
durante todo o dia de ontem e de hoje.
De santa à vilã
Uma
sucessão de pseudo-denúncias, do tipo “Veja a foto do pacto de Erundina
com Quércia”, “Você sabia que partido de Erundina é ninho de
ex-malufistas?” ou “Deputados estaduais do PSDB fizeram uma
vaquinha para ajudar Erundina? [por que e em quais circunstâncias, é
claro, não dizem]”, além da indefectível ressurreição do caso
do Tribunal de Contas proliferaram ontem na internet, não raras
vezes reproduzidas pelos mesmos perfis que três dias atrás vibravam
com sua indicação a vice.
Ora,
há toneladas de fotos de praticamente todos os políticos da geração
de Quércia com ele, inclusive de Lula, e o PMDB quercista – do
qual chegou a tomar parte o vice-presidente Michel Temer – foi e -
evidentemente não mais com essa denominação - continua a ser,
parcialmente, integrante do maior partido aliado no PT em âmbito
federal. E o próprio Nassif, que ontem condenou o gesto de Erundina, sustenta que ela "foi alvo de uma tentativa de golpe por parte do Tribunal de Contas do Município (TCM)", caso cujos desdobramentos finais acabariam por mobilizar
gente de todos os partidos em solidariedade à respeitável figura
política que ela é (pois, ao contrário do que algumas mentes
tacanhas pensam, opositores não são necessariamente inimigos
figadais e mesmo entre políticos profissionais pode, eventualmente, haver
solidariedade).
Veja faz escola
De
qualquer modo, não é o debate sobre a procedência ou não de tais
acusações o que interessa aqui, e sim chamar a atenção e alertar
preventivamente para um fenômeno mais ou menos recente nas redes
sociais e que, se devidamente manipulado pelos setores conservadores,
pode gerar ainda mais divisões e conflitos de monta no interior das
forças que lhes fazem oposição.
Pois tais práticas,
por si, já demonstram o quanto setores da esquerda na internet têm
seguido e mimetizado os métodos cafajestes que tomaram conta da
imprensa brasileira ma última década, a partir da atuação
militante da revista Veja –
notadamente do autoexilado Diogo Mainardi e de dois de seus
“blogueiros” de aluguel - na verdade, um par de jornalistas com
alguma expertise e
habilidades retóricas de seminaristas aplicados, que as utilizam
para distorcer e desvirtuar feitos e projetos da centro-esquerda e,
sobretudo, para difamação e desqualificações pessoais.
Gasolina na fogueira
Os
“novos” métodos que agora infelizmente maculam a atuação de
setores da esquerda pouco diferem, na prática, dos que há pouco eram virtualmente
exclusivos do esgoto jornalístico o qual alegam deplorar, valendo tudo para a agressão e a desqualificação pessoal. Incluem
até mesmo um personagem que se oculta por detrás de um pseudônimo
– Stanley Burburinho – que passa boa parte do dia desencavando e
difundindo material que, repercutido nas redes sociais, possa ser
usado para desqualificação de quem quer que se oponha ao projeto
político petista, na linha de partido. Vem desse ser covardemente
protegido pelo anonimato boa parte das “acusações” contra
Erundina.
Que
um número considerável de perfis - inclusive os de pessoas reais de
que gosto e respeito (ou respeitava) – reproduza, com intenção
vingativa e difamatória, “acusações” como as parágrafos acima
reproduzidas não passaria de algo a se lamentar, como evidência de
baixeza e de imaturidade política, não fosse o fato de que tal
estratagema não apenas interdita o debate, necessário ao avanço
democrático e à solução dos eventuais impasses – ainda mais em
um momento como o atual -, mas açula ódios e discórdias já à
flor da pele em decorrência da aliança com Maluf e da renúncia de
Erundina.
Táticas mistificadoras
O arco de tais ações comporta tanto agressões as mais abjetas, como procedimentos claramente mistificadores ou falseadores - como escandalizar-se com uma reprodução de uma declaração totalmente descontextualizada de Erundina, ou as tentativas de tentar caracterizar como artificial a revolta causada pela aliança com Maluf devido ao fato de o PP já ser um aliado nacional do PT. Ora, o PP nacional é invisível para a maioria da população e Lula nunca se prestou a ir beijar a mão de Maluf na mansão deste no Jardim América para selar a aliança, fornecendo imagens para a mídia se refastelar - o que, somado ao carnaval que os petistas entusiastas de tal aliança fizeram, comprova, por si, a especificidade de sua importância.Já em São Paulo, no âmbito de uma eleição municipal, a força das lideranças locais é imensuravelmente maior e Paulo Maluf é um cacique, enfraquecido, mas ainda capaz de se eleger seguidas vezes deputado, o que o ajuda a manter à distância a letárgica e elitista Justiça brasileira. Em seu reduto, ele continua sendo o símbolo máximo da corrupção (como criminoso internacionalmente procurado pela Interpol) e do desrespeito aos Direitos Humanos (fiador da Rota em seu pior momento e da repressão periférica em bases classistas e raciais). Além disso, é o mais destacado dos políticos paulistas ainda na ativa surgidos sob os auspícios da ditadura militar - ou seja, o retrato acabado da pior direita patrimonialista, um antagonista histórico e, este sim, figadal do PT, um estranho no ninho petista.
O melhor dos iguais?
Isso nos leva a um segundo aspecto preocupante da questão: o modo como setores da esquerda defenderam a aliança com uma figura política com tamanha folha corrida impressionou (e continua a impressionar) não apenas pela desfaçatez e ausência de escrúpulos, com a adoção de um pragmatismo exacerbado que desconsidera qualquer aspecto ético, mas pela agressividade com que reagiram contra os que ousaram criticar ou se opor a tal aliança - não só recusando, no mais das vezes, qualquer debate em bases civilizadas, mas procurando culpá-los pelas derrotas passadas e desqualificá-los como ingênuos, preos a um moralismo tacanho, "acusando-os" de "puros" (ver ótimo texto do jornalista Leandro Fortes a respeito). A questão que se coloca, no limite, é: se, para tais setores da esquerda, a ética ficou reduzida a algo arcaico e dispensável tanto no trato com os que com eles divergem (ainda que no mesmo campo político) quanto, relegado a mero empecilho contraproducente, do ponto de vista eleitoral, em que a aliança com uma das mais nefastas figuras políticas brasileiras – pior, só Bolsonaro – em troca de um minuto e meio na TV se justifica, com tudo que isso inexoravelmente traz como simbologia de conivência com a corrupção e com a violência de Estado, o que distinguiria a esquerda em termos de conduta ética e o que haveria de diferencial em seu projeto político em relação ao que os partidos de centro e de centro-direita oferecem?
- “Vira o poder pelo poder. Assim não voto mais no PT” - ouvi recentemente de uma amiga antes entusiasmada com a candidatura Haddad. [Não estou endossando que não haja diferenças entre o projeto petista e o da centro-direita – é claro que há, notadamente em termos de políticas sociais -, mas procurando demonstrar os efeitos simbólicos passíveis de se depreenderem de tal aliança.]
Caindo em armadilhas
Assim, incutir, como um
cavalo de Troia, a aliança com o maior símbolo do conservadorismo
populista – e, como já dito, da corrupção e do desrespeito aos
Direitos Humanos - no seio de uma extremamente promissora candidatura
de centro-esquerda não foi o único sucesso recente da direita, em
São Paulo. A adoção das estratégias desqualificadoras típicas do
jornalismo serrista é, hoje, prática corriqueira no interior da
própria centro-esquerda. E quem se beneficia tanto com Maluf na
chapa petista quanto com a esquerda trocando baixarias
desqualificadoras entre si são apenas os opositores de Haddad, Serra
notadamente. Por isso, às vezes passa-se a impressão que o PT está caindo como patinho nos ardis do conservadorismo - e o faz agredindo os que tentam alertar para o perigo, os quais poderia ao menos ouvir.
De qualquer forma, os danos da aliança
com Maluf estão feitos e, mesmo que ela viesse a ser revertida – o
que parece irreal -, foi dada,de livre e espontânea vontade, à
mídia a foto de Lula com Maluf que ela explorará à exaustão. Tal
aliança fatalmente levará a candidatura de Haddad a perder votos em
setores da esquerda, mas a chance de derrotar, a um tempo, o serrismo
e o PSDB em São Paulo impõe-se como elemento natural a, malgrado todas as rusgas, impelir a centroesquerda comandada pelo PT a buscar a união na cidade.
Trégua necessária
Parece, portanto, inteligente –
e producente - que, como medida inicial, sejam suspensas as
agressões, difamações e desqualificações no interior da
esquerda. Agredir Erundina ou quem quer que seja não contribui em
nada para a erradicação dos tucanos em SP, pelo contrário. Voltar
a criar um clima propenso ao diálogo e parar de ver um inimigo em
cada simpatizante que ousa fazer uma crítica polida à condução da
candidatura Haddad soam como medidas profiláticas.
Ademais, a
centro-esquerda dependerá de capacidade de articulação e de
pressão para que a escolha do candidato a vice na chapa petista
recaia em uma figura capaz de somar – e não apenas votos. Após
meter Maluf goela abaixo da militância, é hora de ao menos procurar
apaziguar a esquerda e acenar claramente contra o neoliberalismo e a
favor de avanços sociais e respeito aos Direitos Humanos. Isso não
cicatrizaria de imediato as feridas, mas começaria seu tratamento,
ao invés de avivá-las. Neste momento, já seria um feito.
(Imagem retirada daqui)
Um comentário:
Isso mesmo.
Não me surpreende, na verdade, porque ao contrário da sua amiga, eu tinha cogitado votar no PT POR CAUSA da Erundina, mas vou retornar à minha descrença anterior, que até foi bastante reforçada. Porque se antes já havia o tomaládacá com corruptos recentes, agora conseguiram chegar aos tempos da ditadura.
Muito bom o seu blog.
Arnaldo
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