Ontem assisti à cópia
digitalmente restaurada de Eles Não Usam Black-Tie, dirigido
por Leon Hirszman em 1981 e baseado na peça de Gianfrancesco
Guarnieri, que lidera o elenco onde também brilham Bete Mendes –
esplêndida, no papel de sua carreira - e Fernanda Montenegro.
Para além das
qualidades estilísticas do filme – como a mise en scène enxuta
mas significativa empreendida por Hirszman, o trabalho de câmera de
Lauro Escorel Filho, a direção musical de Radamés Gnattali - e do registro,
de um realismo quase documental, que perfaz da época e de ambientes
urbanos de São Paulo, chamou-me a atenção a capacidade da trama de
forjar, através de um número mínimo de personagens, uma poderosa
alegoria sobre a dinâmica política da sociedade brasileira de fins
dos anos 70.
Ela
se dá, sobretudo, através da história do jovem operário Tião
(Carlos Alberto Riccelli), o qual, premido pela determinação de se
casar com a namorada, grávida, e pela ânsia de subir na vida,
passa, em meio à agitação sindical crescente do período, a
delatar ao patrão os operários politizados. Quando a greve é
deflagrada ele, numa sequência de grande impacto dramático,
“fura” o piquete de porta de fábrica e vai trabalhar, traindo o
movimento, mesmo após ver seu pai (Guarnieri) sendo preso e
espancado pela polícia.
Arrivismo trator
Tião
é, a um tempo, a encarnação do ideário do “Brasil grande” do
período ditatorial, com seu desenvolvimentismo economicista e sua
indiferença para com o social, e a representação da mentalidade da
classe média ascendente do período, sumarizada no slogan
publicitário “o negócio é levar vantagem em tudo”. O
personagem endossa, ainda, o diagnóstico que Marilena Chaui faz, no
livro Conformismo e Resistência, em relação a tal nova classe
média - que, embora originalmente pertencente a um estrato social
mais pobre, tendia, em maioria, a levantar as bandeiras e
identificar-se com os setores privilegiados da sociedade, aos quais
aspirava pertencer, a irmanar-se das lutas dos de sua faixa
socioeconômica.
A
qualidade dramatúrgica da trama - que deve ser atribuída muito mais
ao texto original de Guarnieri do que ao roteiro escrito a quatro
mãos com Hirszman - é realçada, no filme, por jamais reduzir os
personagens à alegoria que eventualmente representam, compondo-os
como seres complexos e contraditórios, e por tratar com contundência questões como a violência policial e urbana, o alcoolismo, a omissão
do Estado em relação aos mais pobres - e outros temas que hoje são
prioritários mas que ainda eram periféricos na agenda política da
esquerda no período, como o racismo e o machismo (assista abaixo, numa sequência antológica do cinema brasileiro).
Crise de representação
Ao final do filme,
impôs-se uma reflexão acerca da brutal redução da capacidade do
cinema brasileiro – e das artes em geral – de abordar
criticamente a sociedade em que vivemos. Tal fenômeno, que se tornou
mais grave na última década – quando a entrada da Globo Filmes no
mercado reduziu de forma drástica o espaço de exibição do filme
independente ou de baixo orçamento -, diz respeito não apenas à
diminuição quantitativa mas também qualitativa de filmes fiéis ao
que foi, por muito tempo, quase um traço distintivo de nosso cinema.
Pois uma das principais
funções do cinema brasileiro tem sido, historicamente, fornecer
abordagens críticas da evolução sócio-politica do país –
abordagens essas que, por não estarem presas ao escopo ou às formas
da ciência política, tendiam a ser, quando bem-sucedidas, mais
abrangentes, surpreendentes e às vezes desconcertantes do que o que comumente se lia na mídia corporativa ou nos textos acadêmicos.
Particularmente durante a segunda metade do século XX, essa função social crítica foi o principal diferencial entre o cinema aqui produzido e o modo de produção industrial de vertente hollywoodiana: enquanto neste privilegiou-se o entretenimento, legando, eventualmente, a crítica social às entrelinhas ou à eventual epifania inerente a uma arte industrial total como o cinema, por aqui o cinema foi, destacadamente nos anos 60 e com persistência cada vez menor nas décadas posteriores, uma espécie de privilegiada consciência crítica da nação.
Particularmente durante a segunda metade do século XX, essa função social crítica foi o principal diferencial entre o cinema aqui produzido e o modo de produção industrial de vertente hollywoodiana: enquanto neste privilegiou-se o entretenimento, legando, eventualmente, a crítica social às entrelinhas ou à eventual epifania inerente a uma arte industrial total como o cinema, por aqui o cinema foi, destacadamente nos anos 60 e com persistência cada vez menor nas décadas posteriores, uma espécie de privilegiada consciência crítica da nação.
Tal afirmação vale
não apenas para o Cinema Novo – quando, paradoxalmente, o ímpeto
em fazer do cinema um meio de luta política, embora enorme,
negligenciou a necessidade de atrair o público para os filmes – e
para seus desdobramentos, sob o patrocínio do Estado e
comercialmente mais atraente, nas duas décadas seguintes, mas
inclusive para o “Cinema da Retomada” que teve lugar a partir da
segunda metade dos anos 90. Não obstante o fato de a crise de representação já ser mencionada, Ismail Xavier, na celebrada entrevista que concedeu à revista Praga em 2000, fornece exemplos contundentes da efetividade do papel crítico de tal produção em relação ao Brasil contemporâneo. Alguns dos filmes produzidos nesse
período – como, entre tantos outros, Terra Estrangeira (Daniela
Thomas/Walter Salles, 1996), Como Nascem os Anjos
Murilo Salles, 1996), Cronicamente Inviável
(Sergio Bianchi, 2000) e Cidade de Deus (Fernando
Meirelles, 2002) -, não obstante muito diversos entre si, claramente
se inserem nessa tradição crítica ambiciosa.
Questões ao cinema
O
que teria acontecido? Por que no cinema brasileiro atual são exíguas
as abordagens críticas acerca do novo Brasil que vem tomando forma
nesta década, socialmente mais inclusivo, com profundas mudanças em
seu perfil religioso graças a maior presença dos neopentecostais,
com um número expressivo de entusiastas da internet, com suas
brutais assimetrias socioeconômicas que, embora reduzidas, permanecem? Por que, ao
contrário do que antes ocorria, tem-se hoje com frequência a
impressão de que o Brasil que se vê nas telas não corresponde ao
país que se vê na rua, e que o país que se vê na rua não é
visto nas telas?
O
modelo financiador, baseado em renúncia fiscal de empresas que, na
prática, ditam os rumos da atividade cinematográfica, seria o
principal responsável ? As facilidades trazidas pelo digital teriam,
paradoxalmente, reforçado a primazia da questão tecnológica?
Haveria uma questão ligada à formação das novas gerações de
cineastas? O cinema brasileiro apenas se ajustou ao que já era lugar
comum em outras áreas culturais?
Não
é intenção deste post fornecer as respostas. Como um bom filme brasileiro de um passado não tão distante, em que os espectadores deixavam a sala pensando nas
questões levantadas, ele só quer instigar o debate.
(Imagem retirada daqui)
2 comentários:
Puta texto!
Obrigado!
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