O grande trunfo de Os
Descendentes (The
Descendants, 2011) é voltar-se
para o retrato de pessoas comuns, abordando seu
cotidiano, dramas e contradições com acento tragicômico –
mas sem jamais apelar para o sarcástico de filmes como Beleza
Americana ou
de diretores como Todd Solontz (Bem-vindo à Casa de
Bonecas; Felicidade).
Alexander
Payne – dos ótimos A Confissão de Smith,
com Jack Nicholson, e Sideways, com
Paul Giamatti – é um diretor de outra cepa, que assimilou como
poucos de seus conterrâneos as lições do neo-realismo italiano
sobre a importância da observação do cotidiano, da criação de
sentidos epifânicos através do realismo, da câmera como
“seguidora” do protagonista. Dotado de um talento ímpar para gerar significações valendo-se principalmente da dinâmica interna da imagem - algo bem raro hoje em dia - e de um aguçado sentido da estética e da ética contemporâneas, vem se firmando, ao lado de nomes como Iñárritu, Kiarostami e Walter Salles como um dos diretores mais representativos do neo-humanismo no cinema.
Na era da edição frenética, em
que as pesquisas mostram que as novas gerações, educadas na
gramática visual MTV, tendem a dispersar sua atenção se as tomadas
duram mais de sete segundos, a montagem de Descendentes - concebida por Payne e realizada por Kevin Tent, indicado ao Oscar-, sem jamais soar arrastada,
preserva o delicado equilíbrio entre a dinâmica interna da
sequência e sua duração, de modo a potencializar a geração de
sentidos.
Tais
qualidades são especialmente propícias a essa produção norte-americana, cujo tema central
é a crise – pessoal, familiar, de masculinidade – de um advogado
sovina, representante legal de sua enorme família em um negócio de
terras, que, não bastasse defrontar-se com a esposa Liza à beira da
morte por conta de um acidente, descobre que ela o traía e planejava
o divórcio. A dificuldade para lidar com seus sentimentos – os
quais nunca explicita – e para manter-se equilibrado o suficiente
para administrar tal situação, somada à conflituosa relação com
suas duas filhas – uma adolescente, outra prestes a ingressar na
puberdade, ambas também vivenciando dilemas emocionais -, formam o
substrato dramático da narrativa.
Em
termos formais, a fotografia trabalha em baixo contraste a luz
intensa do Havaí, de forma que mesmo o solar e o luminoso
predominantes adquirem um quê de sóbrio e, às vezes, melancólico,
sendo que as nuances pontuais de iluminação tendem a privilegiar o
humano (faces, sobretudo) ante o peculiar esplendor da paisagem
havaiana, que no mais das vezes não é realçada.
Ainda
assim, colabora para dotar o filme de um certo exotismo a escolha do
arquipélago havaiano como locação, dadas a a ambiência praiana típica e a mescla da
cultura local – no vestir-se, na comida, nas expressões
idiomáticas e, sobretudo na música (que serve de trilha sonora) –
e norte-americana – a língua, sobretudo, mas também os códigos
de conduta, como a indefectível niceness
da esposa do amante de Liza. É questionável, porém, até que ponto
tal ambiência realmente se insere dramaturgicamente na trama –
como em Lost in Translation,
de Sofia Coppola - ou se não passa de um penduricalho artificial a
evidenciar o esgotamento do cânone e, numa manjada estratégia
cinematográfica pós-moderna, a adicionar um tempero camp
à trama.
A novata Shailene Woodley, como a filha adolescente que rompera com a mãe por flagrá-la com o amante, oferece uma performance só aparentemente discreta, cujo valor está justamente nas sutilezas - e que lhe valeram, até agora, nos EUA, quatro prêmios regionais e dois nacionais, incluindo o prestigioso National Board of Review, o prêmio nacional da crítica. Indicada ao Globo de Ouro, junta-se a Tilda Swinton, protagonista de Precisamos Falar sobre o Kevin, como uma das injustiçadas do Oscar 2012.
E
é precisamente o modo sensível – mas nunca, jamais piegas – com
que Payne conduz tais dilemas, e a profunda ressonância que o drama
desse homem, de suas filhas e dos que orbitam em torno dessa família
encontra na vida real cotidiana que faz com que Os
Descendentes, mesmo sem ser um
grande filme, mereça ser visto. Difícil sair do cinema impune e
esquecê-lo na primeira esquina.
4 comentários:
Belo e erudito comentário. Assisti o filme ontem antes de ler sua resenha, e tive impressões semelhantes (sem toda essa percepção estilística de especialista). Também gostei muito da atuação da jovem e bela Shailene Woodley. Apenas uma pergunta: você colocaria o Jason Reitman nessa leva neo-humanista que você citou no início da crônica?
Lendo seu post, me veio uma enorme vontade de ver o filme!
Obrigado aos dois pelos comentários.
Mario, eu certamente colocaria o Reitman nesse grupo de cineastas neo-humanistas. "Amor sem escalas", sobretudo, me parece um filme que deixa claro a primazia que ele concede ao humanismo.
Um abraço,
Maurício.
É, "Amor sem Escalas" tem em comum o Clooney como protagonista, e esse cara parece ter muito critério para escolher os filmes em que trabalha. Até hoje só não gostei daquele "Batman" (não gosto de nenhum anterior ao "Begins") e do "Solaris", que me pareceu "cabeça" demais.
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