No história recente, poucas
figuras públicas deixaram mais evidentes as ambiguidades e
contradições entre questões de gênero e política do que Margaret
Thatcher.
Numa sociedade
caracteristicamente conservadora, sua ascensão de filha de pequenos
comerciantes a primeira-ministra da Grã-Bretanha – e, daí, a uma
das principais lideranças mundiais de seu tempo - a torna, por si
só, um símbolo da emancipação feminina, dos novos papeis e das potencialidades de ascensão e de representação social da mulher
no século XX. Para o bem ou para o mal, credencia-se, em decorrência, como um ícone
feminista.
Por outro lado, seus
quase 12 anos no poder marcam o momento de afirmação do
neoliberalismo sem freios, do enfraquecimento do Estado, do desmanche
dos sindicatos e da legislação trabalhista, com gravíssimas
consequências sociais para os pobres e para a classe trabalhadora –
algumas delas perdurando até nossos dias. É impossível para um
humanista ou para qualquer pessoa que preze mais os seres humanos do
que o mercado de capitais avaliar como positivo o legado de sua liderança.
É precisamente ante o
dilema acima referido que se depara a produção franco-britânica A
Dama de Ferro, a cargo de
Phyllida Lloyd, consagrada
diretora inglesa de ópera. Antes do filme ser rodado, ela declarou
que a intenção era contar a história de Thatcher a partir de um
ponto de vista feminista e concentrado na figura humana da retratada,
incluindo uma incursão pelos seus anos recentes, reclusa, senil e
acometida de demência.
O
resultado surpreendente positivamente. O filme, que não se limita a retratar superficialmente o que há de controverso em relação a
Margaret Thatcher, deixa claro os danos que o thatcherismo causou à
sociedade britânica, seja através profunda insensibilidade social
da administradora ou do seu envolvimento entusiasmado no dispendioso
e desnecessário derramamento de sangue nas Malvinas.
Colabora sobremaneira para tal feito um roteiro inteligente - a cargo de Abi Morgan -, que contextualiza essas questões tanto através da fala de personagens (“o maior desemprego desde 1930, o mais baixo volume de produção industrial desde 1920”), quanto de trechos de telejornais (reais ou fictícios), além do recurso a impressionantes sequências documentais (onde se vê, por exemplo, um enorme contingente policial tentando em vão conter a fúria da multidão que protesta contra a repressão às greves).
Colabora sobremaneira para tal feito um roteiro inteligente - a cargo de Abi Morgan -, que contextualiza essas questões tanto através da fala de personagens (“o maior desemprego desde 1930, o mais baixo volume de produção industrial desde 1920”), quanto de trechos de telejornais (reais ou fictícios), além do recurso a impressionantes sequências documentais (onde se vê, por exemplo, um enorme contingente policial tentando em vão conter a fúria da multidão que protesta contra a repressão às greves).
É
evidente que, em se tratando de um produto audiovisual para o grande
público, há simplificação, falta de detalhamento e mesmo uma
certa condescendência para com a retratada, decorrentes de sua
humanização como personagem. Ainda assim, o resultado não é nada
ingênuo politicamente.
O
esforço relativamente bem-sucedido em conciliar a visão feminista e
a avaliação crítica das políticas thatcheristas ajuda a explicar
a recepção fria que a obra teve na Inglaterra - pois, por um lado,
tal retrato, devido aos efeitos benevolentes da citada humanização
da personagem, tende a desagradar os críticos de Thatcher; e,
por outro lado, a abordagem crítica sem meias-tintas de sua atuação
política tende a contrariar àqueles que a apoiam ou com ela
simpatizam. De concreto, pessoas dos círculos próximos à
ex-governante protestaram, em entrevistas à imprensa inglesa, pelo
que consideram invasão de privacidade alegadamente promovida pelo filme ao
retratar sua senilidade.
Meryl
Streep, como a Thatcher idosa e sofrendo de demência, tem uma
daquelas atuações impressionantes que me fazem defender – a sério
– a ideia de que ela deveria ser decretada hors-concours nas
premiações para melhor atriz. Já como a "Dama de Ferro" de
meia-idade, vivendo sua ascensão e queda como primeira-ministra,
embora também ofereça uma performance
superlativa em termos de empostação de voz, modo de olhar e
gestual de mãos e braços, ressenti-me tanto da ausência, na composição
da personagem, de um certo modo de caminhar típico de Thatcher (que pode ser visto em vídeos da época e que a atriz só reproduz ao final do filme), quanto de uma expressão facial mais encruada e maquiavélica (foto à direita), em comparação com a expressão clean e sutilmente cínica de Streep (que evidentemente tem um rosto bem mais bonito que o da ex-primeira-ministra). Mas tais observações, vistas em relação ao todo da atuação, não passam de detalhes, baseados em uma expectativa inflacionada de reprodução do real a qual a própria Streep por vezes parece induzir.
Colabora
para a performance de
La Streep – que declarou reiteradas vezes ter profundas
divergências políticas com Thatcher, mas grande interesse em sua
trajetória enquanto mulher - o impressionante trabalho de maquiagem
(única categoria, além da de atriz, pela qual o filme é indicado
ao Oscar). Mereceria destaque também a atuação de Harry Lloyd como
o jovem Denis Thatcher – o marido empresário que colaborou decisivamente
para que a jovem Thatcher fosse aceita nos altos círculos ingleses,
foi seu companheiro por décadas e com quem, em seus delírios senis,
a Margaret idosa dialoga.
As qualidades que permitem fazer uma avaliação positiva da produção, ao longo do texto citadas, estão longe de fazer de The Iron Lady um grande
espetáculo cinematográfico. Mas o fato de, no conservadorismo
social e cinematográfico vigente, o filme conseguir escapar com
galhardia e incisividade da armadilha de glorificar a personagem
retratada - e ainda oferecer mais uma grande performance
de uma dama da interpretação - não é um feito a ser menosprezado.
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