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sábado, 30 de maio de 2009

"Memória para Uso Diário" e a questão da tortura no Brasil

O Canal Brasil tem exibido o documentário Memória para Uso Diário (2007), excelente filme que debate e sugere importantes reflexões sobre a ditadura militar e a questão da tortura no Brasil – não só quando aplicada contra presos políticos, mas em sua persistência nos dias atuais como forma indiscriminada de repressão às classes periféricas.

A estrutura narrativa em forma de mosaico, embora a princípio um pouco confusa, possibilita a cobertura de aspectos diversos do tema – como a importância e abrangência da atuação do grupo Tortura Nunca Mais (que co-patrocina a produção), as consequências psicológicas para os torturados, a questão da memória pessoal e sentimental, as estratégias do aparato militar para sonegar informações e a leniência dos governos civis para aprovar leis que as liberem, a formação dos torturadores no Brasil e na Escola das Américas (EUA), e a persistência da tortura e das execuções sumárias nos dias atuais, resultando numa abordagem densa e multifacetada do tema, que utiliza com inventividade depoimentos, reportagens televisivas, material gráfico e de arquivo.

Tema difícil de ser tratado em termos cinematográficos, a dor da “tortura a longo prazo” a que são submetidas as famílias dos “desaparecidos” – particularmente as mães -, impedidas de enterrarem seus entes queridos, é enfocado com tato e sem pieguice. Ele está diretamente conectado ao principal fio condutor da trama, a trajetória de d. Ivanilda - uma senhora que durante 31 anos percorre os arquivos do Estado em busca de informações sobre o marido, militante do “partidão" desaparecido em 1975. Sua luta evidencia a importância que tem, em termos emocionais e psicológicos, o reconhecimento, pela Justiça, da responsabilidade do Estado nas mortes dos familiares desaparecidos, medida incomparavelmente mais significativa para as viúvas e filhos do que a concessão de “indenização” financeira que de ordinário a acompanha – e que tem sido, quase sempre, o único e malicioso interesse da mídia corporativa no que concerne à questão.




Dois dos momentos mais sublimes do filme dirigido por Beth Formaggini - que recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior, incluindo Melhor Longa Documentário - Voto Popular, no Festival do Rio 2007 - advém de depoimentos de mães que tiveram seus filhos mortos pelas forças de repressão. No primeiro deles, uma franzina senhora, cujo filho foi morto pela repressão, muito emocionada e humildemente argumenta que aceitaria que ele fosse julgado pelos eventuais crimes pelos quais fora acusado, mas que não pode se conformar com sua execução sumária, sem direito a julgamento. O depoimento desmonta, em poucos segundos, um dos argumentos mais falaciosos ora utilizado pelos setores de direita em sua tentativa de justificar o injustificável – o de que a morte de militantes se justificaria por se tratar de criminosos. Ainda que, apenas como exercício de retórica, aceitássemos que de crime se trata a luta contra um regime arbitrário, o depoimento da senhora encerra a questão: a punição não poderia jamais dar-se na forma de tortura ou de assassinato sumário praticados pelas forças do Estado, e sim exclusivamente através da obediência aos devidos ritos judiciais.

Mas a pedra de toque do filme – e um de seus momentos mais dilacerantes – vem da direta relação que perfaz entre a repressão no período militar e a violação dos direitos humanos hoje; entre a tentativa de se anular a subjetividade psicológica do preso por meio da tortura, objetivo dos interrogatórios durante a ditadura, e o atual desprezo pela identidade dos habitantes das favelas e periferias, vítimas de assassinatos sistemáticos perpetuados por policiais militares e grupos de extermínio. Efetivada através do depoimento de uma jovem mãe negra, habitante da favela da Maré, que teve seu filho de 17 anos assassinado a sangue frio por forças policiais, a relação entre passado e presente se evidencia ainda através dos métodos empregados: se antigamente se “montava uma cena” para alegar que o militante torturado já morto reagira à prisão, atualmente basta rotular o jovem assassinado como traficante (como se fosse possível distinguir à primeira vista pessoas honestas de traficantes - e como se a lei brasileira autorizasse a execução sumária destes, dispensando o rito judicial). Por sua vez, a mídia, como enfatiza a jovem mãe com lágrimas nos olhos, “só passa para contar o número de mortos”.

Um crítico chato talvez sublinhasse que uma edição mais enxuta e objetiva e maior apuro formal fariam bem a Memória..., mas são detalhes desimportantes em uma obra que, além do mérito indiscutível de tratar de assunto tão difícil com fluência, emoção e até humor, é tão rica em questões de fundamental importância para o avanço democrático do país. Um filme para ser visto e revisto - sobretudo pelas novas gerações, e não apenas com a máxima atenção, mas com o mesmo coração aberto com que, há quase 40 anos, jovens idealistas pegaram em armas e deram suas vidas numa luta – certamente ingênua, comprovadamente equivocada, mas indubitavelmente generosa – por um país melhor, livre do jugo ditatorial que tantos males legou à nação, da corrupção desenfreada à disseminação da tortura como prática policial.

Um filme cujo título corresponde à împortância dos temas que debate: memórias para uso diário.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

"Corações e Mentes" e um relato real sobre a ditadura militar no Brasil

Há 35 anos foi lançado no Brasil o filme Corações e Mentes. Mais incisivo documentário sobre a guerra do Vietnã, a obra dirigida por Peter Davis celebrizou-se pela denúncia da crueldade contra civis empregada pelo exército norteamericano no conflito, simbolizada na célebre foto (tirada em 1972 por Nic Ut) da garotinha vietnamita Kim Phuc correndo com o corpo nu queimado por Napalm.

Além da inegável importância histórica do filme, ele tem, para mim e para minha família, um significado especial, pois representou um dos momentos de maior risco que meu pai correu de ser apanhado pelas forças repressivas do regime militar.

Esta é uma história verídica e nunca tornada pública por nós, sendo que tampouco tive a oportunidade de lê-la escrita por alguma das outras pessoas que a vivenciaram. Trata-se, é evidente, de um episódio ínfimo (do ponto de vista das consequências vivenciadas individualmente por meu pai) se comparadas às brutalidades cometidas pelo regime militar - relatadas em documentos como o livro Brasil Nunca Mais -, mas que atingiram duramente, como ficará evidente, outros participantes do ocorrido.

É, no entanto, um relato ilustrativo do grau de cerceamento da liberdade individual durante o período que uma certa imprensa ousa hoje chamar de “ditabranda”, e do grande risco que cidadãos comuns, sem envolvimento direto com a luta política, corriam de serem enredados na teia de tortura e arbitrariedades de um aparelho repressor sem controle nem limites.

Meu pai foi ver Corações e Mentes no Cine Arouche, no centro de São Paulo. Embora fosse um homem de esquerda, simpatizante do comunismo, e temesse a repressão por conta de alguns textos analíticos e poemas políticos que publicara, tocava a vida e sustentava a família trabalhando num banco (emprego que odiava), restringindo suas opiniões sobre o regime para o círculo de amigos e para as noites boêmias do então seguro e potável centro de São Paulo (que adorava, boemia e local).

Um tanto por exigência do emprego, um tanto por vaidade pessoal, vestia-se muito bem, com ternos de casimira inglesa, pulseiras de prata, costeletas e cabelos compridos, de acordo com o modelito “playboy anos 70” – a tal ponto que um primo bulia, sempre que o via adentrar a casa de minha avó:
- Chegou a elegância e o dinheiro!

Certamente impressionado pela “pinta” do cidadão (ao menos foi o que meu pai imaginou), o porteiro do cinema insistiu para que ele visse o filme da sala 2, um "enlatado" hollywoodiano, argumentando que Corações e Mentes não era “uma fita apropriada pra um cavalheiro como o senhor”. Ele achou aquilo de um absurdo atroz, mas o funcionário foi muito insistente. Após quase chegarem à discussão, ele acabou entrando para ver o longa documental, que o impressionou desde a primeira sequência. As razões da insistência inusitada do porteiro logo se explicariam...

Quando o filme retratava um dos bombardeios mais violentos sobre uma vila vietnamita, em que toneladas de bombas eram lançadas contra pobres cidadãos indefesos, a luz de súbito se acendeu. A projeção foi interrompida. Militares, em trajes camuflados, cercavam a platéia, nos corredores laterais e à frente, apontando metralhadoras aos espectadores.

Seguiu-se um tempo que pareceu uma eternidade.

Dois homens entraram, ambos vestindo japonas beges com zíper. Um deles era o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Sem dizer uma palavra, passaram a percorrer fileira por fileira, olhando fixamente as feições de cada espectador. Ao comando de um dos dois, o sujeito era retirado da sala por soldados. A lenta operação foi repetida diversas vezes, com vários indivíduos sendo presos e nenhuma palavra, exceto o fatídico “Você, fora!” que determinava a sorte do indigitado.

Num dado momento, não aguentando mais e tomado pela exasperação, um homem abriu ostensiva e estrepitosamente um jornal. Foi imediatamente preso.

Ao fim de cerca de duas horas, Fleury virou-se para a audiência, desculpou-se e, identificando-se como delegado do DOPS, disse que eles foram obrigados a interromper a sessão porque ali se dava atividade subversiva – alguém, segundo ele, estaria distribuindo panfletos na sala. Nenhum desses supostos impressos jamais chegou às mãos de meu pai.

Os homens se retiraram, mas podia-se ver a fila dupla de soldados à saída do cinema. O filme recomeçou, mas quem conseguia prestar novamente atenção nele depois do que se passara? Imaginavam apenas o que os esperava lá fora. No mínimo, passaremos por um corredor polonês, pensou meu pai; no máximo, iremos todos presos, seremos barbaramente torturados e até mortos.

O filme acabou e ninguém saía do cinema. Após não aguentar mais esperar, meu pai foi o primeiro a se levantar, seguido por outros. Passou incólume pela fila dupla de soldados e, ao chegar à rua, defrontou-se com uma operação de guerra: brucutus sobre a grama do Largo do Arouche, diversos veículos militares nos arredores; investigadores e delegados, aparentemente comandados por Erasmo Dias, numa operação planejada com o intuito deliberado de captar esquerdistas – o público que mais tenderia a se sentir atraído por um filme que fazia uma denúncia contundente do imperialismo belicista dos EUA de então.

As pessoas retiradas da sala haviam sido todas encapuzadas e estavam algemadas, de pé, numa espécie de perua militar. Que destino atroz as esperava?

Meu pai teve que atravessar a confusão de veículos militares para resgatar sua Brasília marrom, parada em pleno largo. Veio dirigindo com o coração na mão e só se convenceu de que não estava sendo seguido quando contornou o obelisco do Ibirapuera, deixando a 23 de Maio. Em casa o esperavam minha mãe, a filha de 4 anos e este blogueiro, então uma criança inocente dos riscos de ser preso e torturado que seu pai correra – pela simples decisão de assitir a um filme. E ainda há quem defenda a ditadura militar brasileira.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Academia e mídia no cibercapitalismo

Benedict Anderson, dialogando com o Walter Benjamin de “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, identifica na conjunção entre capitalismo e o advento da impressão – o chamado print capitalism – um fator primordial na formação do Estado-nação. Para ele, a forma como essas comunidades nacionais passam a ser (auto)concebidas no imaginário social está diretamente ligada às relações entre a reprodução mecânica e decorrente mercantilização da linguagem impressa e ao papel destas na fixação e expansão do uso dos idiomas vernaculares nacionais.

Assiste-se, hoje, na era da “infotelecomunicação”, da mundialização da cultura e da diluição de fronteiras, a uma versão pós-moderna, hiper-rrealista e de abrangência global de tal processo, com o inglês como língua franca e a informação, digitalizada, circulando em tempo real e em interação direta, ativa e de duas mãos com os movimentos do capital.

Nesse capitalismo ciberfinanceiro, informação e capital passam a protagonizar o que Antonio Rubim define nos termos de “uma sociedade estruturada e ambientada pela comunicação, como uma verdadeira ‘Idade Mídia’, em suas profundas ressonâncias sobre a sociabilidade contemporânea em seus diversos campos”. Nessa conjuntura, “para operar e competir, o capital financeiro necessita fundamentar-se em conhecimentos distribuídos pelas tecnologias de informação. Este é significado concreto da articulação existente entre o modo de produção capitalista e o sistema informacional contemporâneo”, define com a precisão habitual Dênis de Moraes.

Pelo próprio papel que a imprensa, em suas várias vertentes, desempenha em tal processo, o campo do Jornalismo tenderia a ser particularmente adequado para o encruamento de tais questões e para o exercício do debate para além dos limites dos campi universitários. No país do maior monopólio comunicacional do planeta e no qual as dezenas de milhões de telespectadores do principal telejornal são concebidos como Homer Simpson – o anti-patriarca bobalhão do desenho animado – caberia aos profissionais da Comunicação – destacadamente os jornalistas, e com ainda maior ênfase os acadêmicos de Jornalismo – a produção e difusão de conteúdos comunicacionais capazes de tornar evidentes as relações entre capital e informação e de produzir sensos críticos alternativos aos continuamente induzidos pela grande mídia empresarial.

No entanto, num período durante o qual os cursos de Comunicação e áreas afins se expandem aceleradamente tanto no setor público quanto, sobretudo, no privado, a academia, ao privilegiar um adestramento tecnificista e dispensar atenção insuficiente à formação cultural do jornalista (e ao aprimoramento de seu senso crítico), pode vir a minar, destarte, o seu próprio papel potencial (e o dos jornalistas que forma) de agente transformador das relações entre poder e cultura no país - contribuindo, ainda, para agravar a ora disseminada “amnésia estrutural” (Bourdieu), representada através de uma grave inconsciência ante o poder de controle da mídia. Tal possibilidade afigura-se uma ameaça às relações entre sociedade e comunicação no Brasil e um desvirtuamento das funções da universidade em um país com enormes desafios no campo sócio-econômico e cultural.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Lula, o pusilânime, e a CPI

Se danos comerciais e de imagem vierem a afetar a Petrobrás por conta da CPI destinada a investigá-la a conta deve ser debitada não apenas ao desespero e à índole antibrasil que caracteriza o conluio PSDB/DEM, mas à pusilanimidade e à leniência do presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Está mais do que provado que o modo lulista de fazer política inclui não apenas uma visão por demais elástica dos limites da realpolitik, a ponto de incluir alianças com figuras como Romero Jucá, José Sarney e até mesmo Fernando Collor de Mello, mas também, o que é mais grave, a inapetência para cobrar dos membros de tais alianças o apoio que lhe devem como ressarcimento pela parte que lhes cabe no butim do estado brasileiro.

Que, durante a era Lula, o fazer política continue a se basear em tais práticas mercantilistas – que vão contra tudo o que Lula e o PT historicamente defenderam – é algo deplorável, ainda mais porque os cerca de 80% de aprovação média do presidente permitiriam almejar maior coerência entre passado e presente, fosse esta a intenção do mandatário. A realidade, infelizmente, não é assim e todos parecem resignados com isso. Mas o cenário é ainda pior, pois mesmo submetendo-se ao jogo de interesses que sempre criticou, Lula, a despeito de seu prestígio e aprovação popular, não consegue mover as peças, vive encurralado por velhos caciques do mundo político. E quem paga por isso é o país.

Eduardo Guimarães, em seu blog, diagnostica com precisão cirúrgica o modus operandi de Lula, versão paz e amor: “O presidente não briga, porém. Politicamente, como ele afirmou, não é recomendável. O país perde, claro, mas não foi ele que o sabotou. Foram os tucanos, ora. Foi Serra, no fim das contas (...) Contudo, o país perde. E é uma depois da outra. Temos que pagar pela irresponsabilidade da oposição, mas também pela do governo. Aquela porque sabota o país e este porque não a denuncia, não reage à altura, não briga por nós, pois sabe que perderia eleitoralmente”.

Assim, por ocasião da votação da CPI da Petrobrás - cuja aprovação, ressalte-se, seria potencialmente desastrosa não apenas à empresa ou às ambições eleitorais do grupo governista, mas aos interesses do país -, o presidente não se prestou sequer a fazer valer sua autoridade para que os acordos com o PMDB fossem cumpridos, o que beira a irresponsabilidade administrativa. Sim, pois bastaria que o PMDB fosse enquadrado e cumprisse seus acordos com o governo para que a CPI da Petrobrás não fosse aprovada, já que se deve aos votos dos peemedebistas Geraldo Mesquita (AC), Mão Santa (PI), e dos santos do pau oco Jarbas Vasconcelos (PE) e Pedro Simon (RS), todos do partido da suposta base de apoio a Lula, a derrota do governo.

Por um lado, isso não se quer dizer, de forma alguma, que a oposição deva ser inocentada no episódio, nem mesmo sob o argumento – ao meu ver correto – de que o PT faria o mesmo se estivesse na oposição. Janio de Freitas, de volta à grande forma, observa que “Se o PSDB que agora clama pela CPI em defesa da ‘Petrobras que é um patrimônio do Brasil’. tivesse, de fato, dedicação perceptível à coisa pública, seus congressistas não chegariam a condutas até sórdidas para impedir CPIs no governo Fernando Henrique. Nem as ostensivas prevaricações na privatização da telefonia os sensibilizaram".

Por outro lado, o fato de a leniência acomodada de Lula ser prejudicial ao país - nesse episódio talvez como em nenhum outro - não iguala o seu governo ao de seus predecessores. Como aponta Idelber Avelar, “há um conjunto de forças políticas que trabalharam e trabalham pela privatização do patrimônio público. E há um outro conjunto que, com todos os problemas, têm mantido e ampliado esse patrimônio”. Embora trate-se de uma diferença essencial entre dois projetos de país, essa é apenas uma entre várias outras possíveis nas quais o governo Lula sai bem melhor na foto, em comparação com os tucanos. Mas não é este o momento de fazer um balanço da atual administração. Pelo contrário. É momento de cobrar uma atuação mais firme e corajosa do presidente Lula em sua relação com seus supostos aliados.

sábado, 16 de maio de 2009

Além dos Muros da Escola

Ainda antes de ficar gripado, fui assisir a Entre os Muros da Escola, bem recomendado por críticos e por amigos em geral. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, é dirigido por Laurent Cantet, que em 2001 realizou A Agenda (L’emploi du temps), um dos melhores filmes a abordar a difícil temática das relações trabalhistas (ou da ausência delas) no mundo atual, em que “um desempregado não é mais objeto de uma marginalização provisória, ocasional” e sim “de uma lógica planetária, que supõe a supressão daquilo que se chama trabalho; vale dizer, empregos”, como observa Vivien Forrestier em seu belo e dilacerante livro sobre o tema, O Horror Econômico (Unesp, 1997).

Mas Entre os Muros... me decepcionou. Não vou me alongar, pois a intenção não é escrever uma crítica do filme, que se não apresenta o mais grave defeito de boa parte do cinema francês atual – querer ser americano – tampouco oferece sequer espasmos do espetáculo estético, formal ou reflexivo caro à linhagem dos “filmes de autor” da França.

A intenção do diretor parece ser, através de uma abordagem hiperrealista das relações professor-aluno em uma escola da periferia, provocar no espectador a exasperante sensação causada por uma situação tensa e aparentemente sem saída que se repete não apenas todos os dias da semana, mas ano após ano. Pena que o filme limite-se a tal mecanismo de repetição e exaustão, sem jamais provocar a epifania que o supere, o que faz com que exasperante torne-se a experiência de assisti-lo.

O efeito que Entre os Muros... teve em mim foi me fazer lembrar dos bons filmes de um subgênero cinematográfico que eu simplesmente venero: o dos “filmes de professor”. Essencialmente norteamericano, no mais das vezes restrito às produções de baixo orçamento, esse subgênero é exemplar de um dos maiores méritos históricos – hoje em dia rarefeito e reduzido a fórmulas repetitivas - do cinema hollywoodiano: a capacidade de contar histórias que prendem a atenção, entretêm e emocionam o espectador.

Quase sempre trata-se de uma trama em que um(a) professor(a) chega a uma escola decaída, periférica e/ou violenta para dar aulas a uma classe - majoritariamente formada por marginais e rebeldes - que inicialmente o rejeita, humilha, enfrenta. Após atingir os limites de sua força, invariavelmente o mestre, não sem dificuldades, conquista a turma. O grand finale geralmente constitui-se de um grande momento de superação coletiva, em que tanto o professor é redimido quanto os alunos superam barreiras antes aparentemente intransponíveis.


O primeiro clássico no gênero, que estabeleceria alguns dos procedimentos básicos mencionados acima é Sementes de Violência (Blackboard Jungle, Richard Brooks, 1955), estrelado pelo ator canadense Glenn Ford e por Sidney Poitier, o primeiro grande astro negro do cinema norteamericano a superar – como ator versátil e não valendo-se apenas de tipos cômicos - a barreira racial. Ele dá um show de interpretação como Gregory Miller, o rebelde que, acusado, decide confrontar o professor. Doze anos anos depois, Poitier estrelaria – desta vez como o professor - outro clássico, talvez o mais reverenciado do gênero, Ao Mestre com Carinho (To Sir, with Love, James Clavell, Inglaterra, 1967). O filme teria uma boa mas incomparavelmente inferior sequência 35 anos depois (Ao mestre com Carinho 2/To Sir with Love II), dirigida para a TV pelo prestigiado Peter Bogdanovich, pesquisador de cinema e realizador de A Última Sessão de Cinema (The Last Picture Show, 1971).
O original foi refilmado diversas vezes, com algumas variações na trama e quase sempre de forma não oficial. Uma das melhores (e menos conhecidas) versões se chama O Preço do Desafio (Stand and Deliver, Ramón Menéndez, 1988) e é estrelada por Edward James Olmos, que dirigiria, 18 anos depois, o bom telefilme Walkout, que inicialmente segue estrutura similar à dos "filmes de professor" mas desenvolve-se contando a história (real) da revolta dos chicanos nas escolas de segundo grau dos EUA (passa no canal a cabo TNT de quando em quando).


Há algumas outras versões um tanto bizarras mas palatáveis como entretenimento, como Um Diretor Contra Todos (The Pincipal, Christopher Cain, 1987), estrelada por James Belushi – sempre ótimo no papel de loser -, e Mentes Perigosas (Dangerous Minds, John N. Smith, 1995), com a bela Michelle Pfeiffer vivendo a professora idealista lançada às feras.



Outras adaptações do tema, com pretensões alegadamente mais sérias, são, ao meu ver, menos eficazes e não tão divertidas. São o caso de O Clube do Imperador (The Emperor’s Club, Michael Hoffman, 2002), protagonizado pelo limitado Kevin Kline, e de O Sorriso de Mona Lisa (Mona Lisa Smile, Mike Newell, 2003), que tem como estrela o colírio Julia Roberts, além de contar com um bom e belo elenco de coadjuvantes - mas não passa daqueles filmes que, embora bem-feitos, não acrescentam muito. Também o superestimado Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society, Peter Weir, 1989), estrelado por um excessivamente histriônico Robin Willians, embora possua méritos evidentes, é por demais encharcado de pieguice. Várias colheres de acúcar a menos lhe fariam bem.


Uma variação do tema é a do treinador esportivo que chega à uma escola secundária ou a uma universidade de terceira linha para treinar um time de esportistas rebeldes - e, invariavelmente, péssimos alunos. Ao final, é claro, faz com que seus pupilos atinjam resultados superlativos, na quadra (embora nem sempre conquistem o torneio de turno) e nas salas de aula. Momentos Decisivos (Hoosiers, David Aunspaugh, 1986), estrelado pelo carismático Gene Hackman é um dos melhores exemplos dessa linhagem, à qual também pertence Coach Carter, Treino para a Vida (Thomas Carter, 2005), em que Samuel L. Jackson tem, só pra variar, uma tremenda atuação no papel-título. Até o figuraça Nick Nolte andou protagonizando fitas do tipo, como o transgressor técnico de basquete de Blue Chips (Willliam Friedkin, 1994).

Uma terceira linhagem do subgênero é a dos filmes sobre professores de música. Nela se incluem Música do Coração (Music of the Heart), dirigido por Wes “Freddy Kruger” Craver e estrelado pelo fenômeno Meryl Streep como a professora que luta para ensinar garotos do Harlem a tocar violino, e o veículo para Jack Black, Escola de Rock (The School of Rock), dirigido por Richard Linklater em 2003. Mas meu favorito nessa estirpe é Adorável Professor (Mr. Holland’s Opus, Stephen Herek, 1995), protagonizado por Richard Dreyfuss, que seis anos depois encarnaria novamente - e de forma magistral - um professor, dessa feita em uma universidade para moças, contracenando com a ótima Marcia Gay Harden como o cáustico personagem-título de The Education of Max Bickford - que, assim como My So-Called Life, tem a mística das séries que, embora desenvolvam uma abordagem aguda do tema e do estrato social retratados (ou por isso mesmo), duram apenas uma temporada.

O recente Escritores da Liberdade (Freedom Writers, Richard LaGravanese, 2007), baseado em uma história real e protagonizado pela excelente atriz Hillary Swank, inova ao perfazer uma curiosa ponte entre o universo dos adolescentes dos guetos de Los Angeles e o dos judeus antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Prova de que o subgênero promete sobreviver por várias reencarnações.
Se depender de mim, ótimo, pois eu preferiria rever pela enésima vez qualquer um desses filmes a ter passado duas horas na (cara) cadeira do cinema enfrentando a, como diria Tom Jobim, “chatice espessa” de assistir a Entre os Muros da Escola...

sexta-feira, 15 de maio de 2009

O moribundo e o furibundo

Enquanto me recupero de uma gripe demolidora [mas pode ler o blog sem medo de contágio: não é a suína], alguns breves comentários sobre o pouco que tive disposição para ler esses dias – só para mostrar que o blog continua vivo, ainda que o blogueiro nem tanto (embora, como diria Mark Twain, as notícias sobre a minha morte tenham sido bastante exageradas...).

É preocupante a aprovação, pelo senado francês, de uma legislação draconiana para a Internet. Duvido muitíssimo que seja bem-sucedida pois, como o demonstram o artigo mais lido do Le Monde de ontem (14/05) e um número incalculável de posts na Internet, há mil formas de burlar a “Hapodi”(como chamam a lei), e a ocupação número um de muitos internautas pelo mundo hoje em dia é fazer o possível para que os franceses conheçam todas elas. Isso posto, não deixa de ser um péssimo sinal que um país com as (vá lá) tradições democráticas e o poder de influência da França dê tal mau exemplo para o mundo. “Dá idéia”, como se diz na gíria. Espero e acredito que vá ser um retumbante fracasso.

De qualquer modo, a nova lei fornece – ao lado das reformas propostas pelo onipresente Sarkozy para a saúde e para a educação - mais uma evidência das reais intenções do atual governante francês, que, após um primoroso trabalho inicial de marketing – que o vendeu como um boa-praça equilibrado, para o que muito colaborou o casamento com a sensível e bela Carla Bruni - diz realmente a que veio. A esquerda francesa - ou o que restou dela - precisa urgentemente se unir e reagir.

sábado, 9 de maio de 2009

De crianças e de menores

No decorrrer do último século, a infância vivenciou uma situação paradoxal: ao passo que, pela primeira vez na história, constituíam-se – no bojo da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) - salvaguardas legais a seu desenvolvimento e proteção, ela tornou-se, cada vez mais, uma problemática contemporânea por excelência.

A denominação “menor” está, segundo o pesquisador Fernando Torres Londoño, presente em debates públicos desde o final do século XIX e inscrita no código jurídico do país a partir de 1927. Ela expressa uma distinção fundamental, aceita e disseminada na socidade brasileira, entre crianças – esses seres lúdicos de sorrisos cativantes que brincam nos jardins e nas praças – e “meninos de rua” – esses marginais em miniatura, de olhar ameaçador, que roubam e aterrorizam a sociedade. O menino de rua não é – e, como estabelido por essa distinção, não poderá jamais ser – uma criança, um ser cujos valores éticos estão em formação, cabendo à sociedade adulta fornecê-los. O menino de rua já nasce um criminoso. Pertence, portanto, sempre segundo tal distinção, a outra ordem ontológica.

Se atentarmos ao fato de que os “menores” de rua, nas fotos de jornal ou mesmo em revistas recheadas de fotos de filhos de celebridades e prodígios mirins, não podem ser identificados – pois uma tarja preta lhes fraciona a face –, desvelamos um discurso subjacente que reproduz e preserva a distinção entre uma infância constituída de sujeitos – Maísa, Sacha, antes Sandy e Júnior - e outra anônima e sem direito à identidade – o que intensifica sua marginalização. Essa distinção entre “‘menores’ de rua” e “crianças de família” é de tal forma disseminada e institucionalizada que seus fundamentos não costumam ser sequer percebidos, quanto mais questionados.

A situação da infância tem sido agravada nos anos recentes pelos efeitos da exclusão social e pelo tratamento criminal que historicamente o país tem destinado à questão. Embora signatário da Declaração dos Direitos da Criança (1959), políticas enfaticamante repressivas, orientadas pela “ideologia de segurança nacional” forjada na Escola Superior de Guerra, são implementadas durante a ditadura, logo convertendo o diploma em letra morta.

Desde então – e ao longo dos mais de vinte anos de democracia – as cinicamente chamadas “políticas de assistência à infância” vêm sendo aplicadas, significando, na prática, tortura institucionalizada, encarceramento em condições degradantes, execuções sumárias - como no "massacre da Candelária - e toda sorte de violação aos direitos humanos. Assim, a situação, há tempos, fugiu ao controle. O fato de ter-se tornado, de fato, uma urgente questão de segurança pública – e, aos olhos da sociedade e da mídia, unicamente uma questão de segurança pública - tem impedido uma abordagem do problema que leve em conta toda a sua complexidade, com o ônus recaindo quase unicamente sobre a infância desamparada e facilmente cooptada pelo crime organizado.

No bojo do modelo punitivo de inspiração norteamericana (que este blog abordou aqui), ganha cada vez mais força a pregação de medidas francamente contrárias ao espírito do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – um avançado arcabouço legal de proteção à infância, como tal internacionalmente saudado quando de sua promulgação em 1990 que ora é cada vez mais discutido e atacado, sendo que a maioria de seus artigos jamais foram de fato incorporados à prática social (em mais um exemplo desse fenômeno tão brasileiro que é o das leis que não “pegam”). Exemplo disso é a renitente discussão da redução da inimputabilidade penal.

Assim, entre o escrito e desejado e o vivido e real, os desafios são imensos para se consubstanciar os direitos da criança firmados nacional e internacionalmente e sua sistemática violação no Brasil. Isso supondo, é claro, que queiramos ser, um dia, uma nação que trata suas crianças com educação, respeito e amor.

domingo, 3 de maio de 2009

Boal, um grande brasileiro

Augusto Boal
Diretor de Teatro, Homem de Esquerda
e Fundador do Teatro do Oprimido
(1931-2009)

"Todas as sociedades humanas são espetaculares no seu cotidiano, e produzem espetáculos em momentos especiais".

"Mesmo quando inconscientes, as relações humanas são estruturadas em forma teatral: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a modulação das vozes, o confronto de idéias e paixões, tudo que fazemos no palco fazemos sempre em nossas vidas: nós somos teatro!"

"Teatro é a Verdade Escondida”.

"Atores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma! "

"Vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos em todas as sociedades, etnias, gêneros, classes e castas, vemos o mundo injusto e cruel."

"Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível."

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O fim da Lei de Imprensa

Em mais um grande serviço prestado à nação, O STF extinguiu, ontem, a "Lei de Imprensa" – cuja menção deve vir sempre precedida do adjetivo "famigerada" e que também atende por “entulho autoritário”, “excrescência jurídica” e outras denominações inventivas criadas, a soldo, por redatores que servem às cinco famiglias que monopolizam, com responsabilidade e espírito cívico, a comunicação no país.

Os esforços do Judiciário para igualar sua imagem pública à do Legislativo parecem não ter fim - trata-se de tarefa hercúlea, mas vai acabar conseguindo. Além da hiperatividade do presidente do STF, da regulação do uso de algemas (lei que sabiamente não se aplica aos PPPs, como pode ser constatado em qualquer dos Datenas da vida), dos habeas corpus a granel, do elitismo escancarado, da restituição aos Sarney [da capitania que lhes pertence] do estado do Maranhão (em acertada decisão que, respeitando a vontade popular, premia os derrotados nas urnas), agora a Justiça extingue, sem delongas, a única salvaguarda legal específica contra os abusos da imprensa.

Ainda bem que a mídia no Brasil – em São Paulo e no Rio Grande do Sul particularmente - tem primado pelo comportamento ético e pelo equilíbrio, jamais priorizando denúncias contra determinados candidatos e omitindo os atos ignominiosos dos de sua predileção (até porque, isenta que é, ela não os tem). Portanto, essa decisão tomada – por mera coincidência - na antevéspera das eleições presidenciais não nos permite alimentar o mínimo receio quanto a campanhas difamatórias, dossiês, denuncismo sem provas, grampos sem áudio e demais práticas abomináveis que jamais terão lugar numa mídia democraticamente avançada como a brasileira.

Na extremamente remota hipótese de que algo assim aconteça, temos certeza de que os excelentíssimos srs. ministro Hélio Costa e deputado Miro Teixeira – este o proponente da extinção da lei –, duas figuras públicas que JAMAIS tiveram ligação alguma com grupos de mídia corporativa, de pronto agirão, restabelecendo o Conselho de Comunicação Social previsto pela Constituição de 1988 e tornado inativo por força de legislação superior à Lei Magna, a saber, a LBJB (Lei do Baronato do Jardim Botânico).

A próxima eleição deve ser, portanto, marcada pelo debate de alto nível e por uma atuação isenta da mídia, que se limitará, como de costume, a divulgar informações fidedignas, mediar debates, produzir análises equilibradas e discutir soluções para o país.

A democracia brasileira avança. Não há o que temer.