Um dos sucessos inegáveis da Presidência de Luis Inácio Lula da Silva tem sido relativizar a crença de que à inserção do Brasil numa economia globalizada corresponderia o fim – ou a diminuição drástica – da capacidade do Estado de investir e intervir de forma efetiva nas políticas públicas.
Atualmente, a afirmação de tal capacidade talvez soe aos ouvidos do leitor algo óbvia, mas parte dessa impressão talvez deva ser creditada justamente à mudança – sutil, quase imperceptível tanto para uma mídia que atua como partido quanto para uma academia dividida por preconceitos ideológicos e de classe - operada pelo atual governo. Pois um denominador comum aos oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso foi justamente a insistência na crença de que o Estado, nesse novo contexto mundial, estava de mãos amarradas, que a margem de manobra dos Executivos nacionais era quase nula face ao poderio de uma economia que se move veloz e incontrolavelmente em fluxos globais.
Fluxos são justamente a principal categoria temática que, em um texto escrito originalmente para a Public Culture e tornado clássico, o antropólogo indiano Arjun Appandurai utiliza para reler o processo de globalização sob uma perspectiva neomarxista – isso é, privilegiando um enfoque histórico-materialista. Em “Disjunction and Difference in the Global Cultural Economy” (1990), ele identifica cinco fluxos – éticos, midiáticos, tecnológicos, financeiros e ideológicos – que, atuando de forma simultânea e transnacional, seriam responsáveis pela nova formatação sóciocultural-econômica mundial. Assim como a pioneira formulação do sociólogo brasileiro Renato Ortiz sobre a formação de classes econômicas transnacionais na globalização (Mundialização e Cultura, Brasiliense, 1994), o modelo proposto por Appandurai representa um alto nível de reflexão crítica sobre o fenômeno a partir de sua própria dinâmica e sem a adoção explícita de partis pris valorativo (curiosamente, num duplo processo de misreading, a teoria de Ortiz foi atacada por marxistas por alegadamente enfocar sob luz positiva o processo de globalização, enquanto o texto de Appandurai foi largamente utilizado como bandeira pelos defensores da globalização).
No final do governo FHC, escrevi num texto acadêmico que a forma como vinha sendo processado o ingresso do Brasil numa economia globalizada – como economia periférica a reboque dos humores do grande capital internacional e das “agências de risco” que ele próprio forjara – equivaleria a lançá-lo num pequeno barquinho, sem vela nem motor, em alto mar. Havia no texto, além da pobreza metafórica e da intenção de, através dela, criticar a falta de rumo e a enorme chance de desastre (confirmada a cada crise econômica em outras economias periféricas, como a turca, a russa e a dos “tigres asiáticos), a afirmação latente da possibilidade de, mesmo em tal contexto e sob suas intempéries, reassumir o leme.
Ao retirar da pobreza quase 40 milhões de pessoas e redesenhar o eixo da política externa brasileira, entre outras medidas, o governo Lula prova que tal operação é possível e que a globalização não necessariamente significa, às economias não-centrais, tão-somente submissão e renúncia. Essa conquista não deixou de ser, no entanto, eivada de contradições, mesmo porque a aderência do atual governo a alguns dos mantras neoliberais – como a independência do Banco Central e a manutenção de índices considerados satisfatórios de superávit primário – está no cerne do processo que tem garantido à administração federal alguma margem de manobra.
Mas não é, ainda, o momento de pôr na balança os méritos e defeitos do governo Lula. Deve-se levar em conta, no entanto, que a despeito de os oráculos econômicos privilegiados pela mídia nativa continuarem negando, economistas internacionalmente reconhecidos – como Stepehn Kanitz, Paulo Nogueira Batista Júnior e o espanhol Ricardo Lago – atestam que a crise mundial não apenas atingiu o Brasil com atraso, mas o fez de forma muito menos intensa e duradoura do que na maioria das outras economias nacionais – mais uma evidência da retomada vigorosa da capacidade de administração do Estado brasileiro.
Some-se a esses fatos a evidência de que a mesma crise econômica mundial vai certamente – como as medidas inciais tomadas pór EUA e União Européia indicam – restringir ainda mais a autonomia dos grandes capitais voláteis que, sob a desregulamentação então reinante, arrasaram mais de uma vez economias nacionais. Trata-se de mais um fator a exigir uma reflexão mais cuidadosa, mais humanitária e menos fatalista sobre o alegado fim dos Estados nacionais.
Atualmente, a afirmação de tal capacidade talvez soe aos ouvidos do leitor algo óbvia, mas parte dessa impressão talvez deva ser creditada justamente à mudança – sutil, quase imperceptível tanto para uma mídia que atua como partido quanto para uma academia dividida por preconceitos ideológicos e de classe - operada pelo atual governo. Pois um denominador comum aos oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso foi justamente a insistência na crença de que o Estado, nesse novo contexto mundial, estava de mãos amarradas, que a margem de manobra dos Executivos nacionais era quase nula face ao poderio de uma economia que se move veloz e incontrolavelmente em fluxos globais.
Fluxos são justamente a principal categoria temática que, em um texto escrito originalmente para a Public Culture e tornado clássico, o antropólogo indiano Arjun Appandurai utiliza para reler o processo de globalização sob uma perspectiva neomarxista – isso é, privilegiando um enfoque histórico-materialista. Em “Disjunction and Difference in the Global Cultural Economy” (1990), ele identifica cinco fluxos – éticos, midiáticos, tecnológicos, financeiros e ideológicos – que, atuando de forma simultânea e transnacional, seriam responsáveis pela nova formatação sóciocultural-econômica mundial. Assim como a pioneira formulação do sociólogo brasileiro Renato Ortiz sobre a formação de classes econômicas transnacionais na globalização (Mundialização e Cultura, Brasiliense, 1994), o modelo proposto por Appandurai representa um alto nível de reflexão crítica sobre o fenômeno a partir de sua própria dinâmica e sem a adoção explícita de partis pris valorativo (curiosamente, num duplo processo de misreading, a teoria de Ortiz foi atacada por marxistas por alegadamente enfocar sob luz positiva o processo de globalização, enquanto o texto de Appandurai foi largamente utilizado como bandeira pelos defensores da globalização).
No final do governo FHC, escrevi num texto acadêmico que a forma como vinha sendo processado o ingresso do Brasil numa economia globalizada – como economia periférica a reboque dos humores do grande capital internacional e das “agências de risco” que ele próprio forjara – equivaleria a lançá-lo num pequeno barquinho, sem vela nem motor, em alto mar. Havia no texto, além da pobreza metafórica e da intenção de, através dela, criticar a falta de rumo e a enorme chance de desastre (confirmada a cada crise econômica em outras economias periféricas, como a turca, a russa e a dos “tigres asiáticos), a afirmação latente da possibilidade de, mesmo em tal contexto e sob suas intempéries, reassumir o leme.
Ao retirar da pobreza quase 40 milhões de pessoas e redesenhar o eixo da política externa brasileira, entre outras medidas, o governo Lula prova que tal operação é possível e que a globalização não necessariamente significa, às economias não-centrais, tão-somente submissão e renúncia. Essa conquista não deixou de ser, no entanto, eivada de contradições, mesmo porque a aderência do atual governo a alguns dos mantras neoliberais – como a independência do Banco Central e a manutenção de índices considerados satisfatórios de superávit primário – está no cerne do processo que tem garantido à administração federal alguma margem de manobra.
Mas não é, ainda, o momento de pôr na balança os méritos e defeitos do governo Lula. Deve-se levar em conta, no entanto, que a despeito de os oráculos econômicos privilegiados pela mídia nativa continuarem negando, economistas internacionalmente reconhecidos – como Stepehn Kanitz, Paulo Nogueira Batista Júnior e o espanhol Ricardo Lago – atestam que a crise mundial não apenas atingiu o Brasil com atraso, mas o fez de forma muito menos intensa e duradoura do que na maioria das outras economias nacionais – mais uma evidência da retomada vigorosa da capacidade de administração do Estado brasileiro.
Some-se a esses fatos a evidência de que a mesma crise econômica mundial vai certamente – como as medidas inciais tomadas pór EUA e União Européia indicam – restringir ainda mais a autonomia dos grandes capitais voláteis que, sob a desregulamentação então reinante, arrasaram mais de uma vez economias nacionais. Trata-se de mais um fator a exigir uma reflexão mais cuidadosa, mais humanitária e menos fatalista sobre o alegado fim dos Estados nacionais.
2 comentários:
Realmente, né? Tem razão: o governo Lula foi capaz de mecher nesa ideologia e na realidade do país. Acho que vai ser preciso dar o golpe pros tucanos pegarem a presidencia. Só na base de golpe. (xi, Mau, a gripe deu o golpe de estado no meu cérebro, não tá saindo nada mui...)
Sim, é necessário uma reflexão mais organizada, mesmo se formos tentar entender o porque do brasil estar mais forte que outros paises, menos atingivel por crises. Se queremos uma melhora, é preciso avaliar o que já tá bom, se não, na mudança, quebramos a casa e os móveis...
É, Flavinha, só que essas análises a gente não lê no jornal, né?
Também não creio que o PSDB volte ao poder - não só pelos méritos do governo Lula possivelmente superarem os defeitos (que são muitos e graves), mas porque permanece na população a memória do trauma que foi o governo antipovo e anti-Brasil de FHC.
Fico feliz de vê-la no blog.
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