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sábado, 9 de maio de 2009

De crianças e de menores

No decorrrer do último século, a infância vivenciou uma situação paradoxal: ao passo que, pela primeira vez na história, constituíam-se – no bojo da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) - salvaguardas legais a seu desenvolvimento e proteção, ela tornou-se, cada vez mais, uma problemática contemporânea por excelência.

A denominação “menor” está, segundo o pesquisador Fernando Torres Londoño, presente em debates públicos desde o final do século XIX e inscrita no código jurídico do país a partir de 1927. Ela expressa uma distinção fundamental, aceita e disseminada na socidade brasileira, entre crianças – esses seres lúdicos de sorrisos cativantes que brincam nos jardins e nas praças – e “meninos de rua” – esses marginais em miniatura, de olhar ameaçador, que roubam e aterrorizam a sociedade. O menino de rua não é – e, como estabelido por essa distinção, não poderá jamais ser – uma criança, um ser cujos valores éticos estão em formação, cabendo à sociedade adulta fornecê-los. O menino de rua já nasce um criminoso. Pertence, portanto, sempre segundo tal distinção, a outra ordem ontológica.

Se atentarmos ao fato de que os “menores” de rua, nas fotos de jornal ou mesmo em revistas recheadas de fotos de filhos de celebridades e prodígios mirins, não podem ser identificados – pois uma tarja preta lhes fraciona a face –, desvelamos um discurso subjacente que reproduz e preserva a distinção entre uma infância constituída de sujeitos – Maísa, Sacha, antes Sandy e Júnior - e outra anônima e sem direito à identidade – o que intensifica sua marginalização. Essa distinção entre “‘menores’ de rua” e “crianças de família” é de tal forma disseminada e institucionalizada que seus fundamentos não costumam ser sequer percebidos, quanto mais questionados.

A situação da infância tem sido agravada nos anos recentes pelos efeitos da exclusão social e pelo tratamento criminal que historicamente o país tem destinado à questão. Embora signatário da Declaração dos Direitos da Criança (1959), políticas enfaticamante repressivas, orientadas pela “ideologia de segurança nacional” forjada na Escola Superior de Guerra, são implementadas durante a ditadura, logo convertendo o diploma em letra morta.

Desde então – e ao longo dos mais de vinte anos de democracia – as cinicamente chamadas “políticas de assistência à infância” vêm sendo aplicadas, significando, na prática, tortura institucionalizada, encarceramento em condições degradantes, execuções sumárias - como no "massacre da Candelária - e toda sorte de violação aos direitos humanos. Assim, a situação, há tempos, fugiu ao controle. O fato de ter-se tornado, de fato, uma urgente questão de segurança pública – e, aos olhos da sociedade e da mídia, unicamente uma questão de segurança pública - tem impedido uma abordagem do problema que leve em conta toda a sua complexidade, com o ônus recaindo quase unicamente sobre a infância desamparada e facilmente cooptada pelo crime organizado.

No bojo do modelo punitivo de inspiração norteamericana (que este blog abordou aqui), ganha cada vez mais força a pregação de medidas francamente contrárias ao espírito do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – um avançado arcabouço legal de proteção à infância, como tal internacionalmente saudado quando de sua promulgação em 1990 que ora é cada vez mais discutido e atacado, sendo que a maioria de seus artigos jamais foram de fato incorporados à prática social (em mais um exemplo desse fenômeno tão brasileiro que é o das leis que não “pegam”). Exemplo disso é a renitente discussão da redução da inimputabilidade penal.

Assim, entre o escrito e desejado e o vivido e real, os desafios são imensos para se consubstanciar os direitos da criança firmados nacional e internacionalmente e sua sistemática violação no Brasil. Isso supondo, é claro, que queiramos ser, um dia, uma nação que trata suas crianças com educação, respeito e amor.

4 comentários:

Hugo Albuquerque disse...

Mauricio,

Pois é, o ECA ainda é tão bombardeado. Hoje a obsessão contra ele diminuiu um pouco, mas não o suficiente - não falta quem se aproveite de algum caso específico e afastado para fazer uma gritaria contra ele.

Agora, pelo menos 99% da classe média não gostaria que o ECA não fosse utilizado para suas crianças, mas os mesmos não deixam de se perguntar por que as crianças da favela e de rua precisam gozar desse "privilégio" também.

É mais ou menos como no caso da escola pública e da privada. Muita, mas muita gente mesmo da classe média se cala para o problema porque tem condições de pagar escola privada e, consciente ou inconscientemente, sabe que seus filhos estão sendo favorecidos na medida em que os filhos dos pobres estão na escola pública que é ruim. Deplorável.

Unknown disse...

Realmente, Hugo, parece que "esqueceram" um pouco do ECA. Pelo menos até o próximo crime envolvendo menores. Quanto à sua comparação com a relação da classe média com a escola pública, achei brilhante - um resumo perfeito do egoísmo de nossas elites.

Eduardo Prado disse...

Maurício e Hugo,

Por alguma razão que eu desconheço _ talvez até conheça, mas ache absurda demais _ o ECA não é conhecido, ou melhor, não é compreendido pelo conjunto da sociedade.

Usa-se a desculpa de que a lei protege a criança para não agir contra o estado de abandono em que elas se encontram. Pior ainda, O ECA acaba sendo o bode expiatório da violência juvenil, quando a verdadeira culpada é a sociedade egoísta que insistimos em manter.

A alguns anos atrás li Poema Pedagógico, de Anton Makarenko, diretor diretor de um reformatório para menores infratores na Ucrânia da Revolução, entre 1920 e 1928. Peço licença ao Maurício para transcrever dois trechos do livro que têm tudo a ver com este post.


... “Nas ruas, a vida desses pequenos cidadãos transcorre naturalmente e os problemas de sobrevivência são solucionados sem que se recorra à moral e aos princípios tanto prezados pela nossa sociedade, pois não possuem nem tempo, nem costume, nem escrivaninha para ocuparem-se destas coisas. [...]precisam sobreviver, mantendo-se com força na superfície do globo terrestre, mesmo que para isso precisem se agarrar nas bolsas das senhoras e nas pastas de elegantes cavalheiros.

(...) essas crianças não são nada idiotas; de fato são crianças comuns, colocadas pelo destino numa situação incrivelmente absurda: Por um lado elas estão privadas de todos os beneficios do desenvolvimento humano e, por outro, são excluídas das soluções salvadoras, pela simples razão da sua luta pela sobrevivência.

Unknown disse...

Que maravilha de citação, Eduardo, obrigado. Se eu a conhecesse quando da redação de minha dissertação de mestrado, a teria incluído no texto. Agora, fica para quando o livro for publicado, com as devidas citações.