A
crise que o Brasil atravessa, na contramão da tendência mundial de
recuperação e documentada em índices vexatórios até mesmo se comparados aos de seus vizinhos continentais, permanece sem autores, sem
responsáveis e, em decorrência, sem um mísero pedido de desculpas
à população.
O
governo Dilma rendeu-se de vez e voluntariamente à ortodoxia
neoliberal e ora sobrepõe o aperto fiscal a todas as demais
demandas, com cortes que afetam – e muito – inclusive a Educação
e os programas sociais. Exatamente como dizia, na campanha eleitoral,
que seus adversários fariam.
A
passividade com que população, classe política e Judiciário (não)
reagem a esse autêntico estelionato eleitoral só é comparável, em
termos de desserviço à democracia brasileira, ao descompromisso do
petismo para com a autocrítica e as satisfações à população,
tanto do porquê de tamanha crise (já que os comerciais de João
Santana retratavam um país paradisíaco) quanto da traição
eleitoral que a adoção do outrora tão criticado receituário
neoliberal ortodoxo torna efetiva.
Narrativas
falseadoras
Não
que o neliberalismo não estivesse presente nos governos Lula e
Dilma, os quais desde sempre “costearam o alambrado”, como diria
o saudoso Leonel Brizola. Afinal, o tripé de sustentação das
políticas neoliberais vem sendo mantido efetivo há mais de 12 anos
(e nas poucas vezes em que foi relativizado, como por ocasião das
hoje investigadas “pedaladas” que Dilma usou para conseguir se
eleger, foi “na moita”, em silêncio, sem a coragem de questionar
publicamente o dogma fiscal neoliberal e confrontar o mercado, como
um partido de esquerda faria).
A
diferença é que antes havia o pudor do disfarce, de tentar ao menos
matizar o neoliberalismo com seguridade social e com laivos, em sua
maioria meramente retóricos, de “esquerdismo progressista”, ou
seja, derivado de versões vulgares e exclusivamente econômicas do
marxismo. Isso em pleno século XXI...
Petismo
tucano
Mas
agora tudo isso é passado. O governo petista sucumbiu
voluntariamente ao neoliberalismo ortodoxo da mesma forma que FHC o
fez: adotoando-o como uma panaceia, uma receita “técnica”, uma
solução incontestável, mesmo ciente de que sua implementação
venha a significar o sacrifício de pobres, trabalhadores,
desempregados, viúvas de inválidos, além de um retrocesso enorme
no processo de inclusão social das classes D e E, com aumento da
pobreza e da miséria (cuja erradicação já fora inclusive
anunciada). E tudo isso em se tratando de uma crise que apenas se
inicia, pois é evidente que o cenário socioeconômico tende a
agravar-se muito mais na medida em que os “ajustes”
recém-aprovados passem a efetivamente fazer efeito.
Assim,
contra uma crise tratada como manifestação súbita, imprevisivel e
descontrolada, alegadamentge alheia a seu própro governo, Dilma e o
petismo negligenciam qualquer compromisso político, programático ou
ideológico, renunciando à política, e respondem com o velho dogma
tecnocrata, cuja versão corrente desde o início dos anos 90 é o
neoliberalismo ortodoxo.*
A
serviço do mercado
Como
foi durante toda a era petista, a prioridade é o mercado financeiro,
e em nome deste qualquer possibilidade de mobilização social ou de
confronto é esvaziada, sob o pretexto da crise, em prol de um
determinismo econômico imposto de forma autoritária e sem debate com
a sociedade.
“Esse horror à realidade das contradições se exprime no modo como a classe dominante brasileira elabora as situações de crise. Uma crise nunca é entendida como resultado de contradições latentes que se tornam manifestas pelo processo histórico e que precisam ser trabalhadas social e politicamente. A crise é sempre convertida no fantasma da crise, irrupção inexplicável e repentina da irracionalidade, ameaçando a ordem social e política. Caos. Perigo.Contra a “irracionalidade”, a classe dominante apela para técnicas racionalizadoras (a célebre “modernização”), as tecnologias parecendo dotadas de fantástico poder reordenador e racionalizador.” **
Tal
diagnóstico, fornecido há quase três décadas por uma Marilena
Chaui cuja produção intelectual não havia ainda sido embotada pelo
fanatismo partidário, continua, como se vê – e com o perdão
pela ironia - atualíssimo.
Efeitos
colaterais
Assim,
para além das graves consequências sociais que esse economicismo
autoritário certamente legará – afetando de forma mais intensa as
camadas mais pobres da população -, as grandes vítimas da traição
petista à sua história e às suas plataformas eleitorais são a
política em si e a esquerda em particular.
A
primeira porque, além de já conspurcada pela corrupção que
certamente antecede o petismo, mas do qual este não está, de forma
alguma, excluído – muito pelo contrário -, é vista cada vez mais
como meio intrinsecamente desonesto de vida e locus do total
descompromisso entre o prometido pelo marketing político e o
efetivamente cumprido pelos partidos ou candidatos.
E
a esquerda pelo fato de o petismo, malgrado seus 12 anos de guinada
conservadora e sua atual rendição ao neoliberalismo, ser visto por
grande parte da população como um partido representante de tal
espectro político – para o que muito contribui a má formação
política geral e a ação, remunerada ou não, de um contingente de
militantes virtuais ou reais, cujos traços distintivos são o
fanatismo, a intransigência e a agressividade desqualificadora como
tática de ação política.
Direita,
volver!
Tudo
somado, a conclusão inevitável é que o petismo, na prática, tem
colaborado intensamente para o fortalecimento do conservadorismo e o
retorno, com ainda mais força e com resistência mínima, do
neoliberalismo como a “ideologia aideológica” hegemônica na
orientação das políticas públicas.
Um
quadro que só o surgimento de uma esquerda efetiva e coerente,
antineoliberal e biopolítica, ideológica e programaticamente
compromissada, baseada na interação horizontal possa, talvez,
reverter.
* Sobre a relação entre economicismo e (autonomia da) política, recomendo com ênfase texto recente de Bruno Cava.
**(CHAUI, 1986, p. 60. Imagem de Mafalda retirada daqui)
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