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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

PT, 35 anos: comemorar o quê?


O PT completa 35 anos, em um momento de profunda inquietação quanto ao futuro do partido e do país.

Os motivos para comemoração - a conquista, pela quarta vez consecutiva, da Presidência da República, a eleição do prefeito da maior cidade e do governador do terceiro maior estado do país – têm sido eclipsados pela derrocada econômica do governo Dilma, por uma crise política sem precedentes, e pelo envolvimento em graves e sucessivos casos de corrupção – destacadamente, o Mensalão e o Petrolão.



Mudança de imagem
Na última década, o partido que durante anos representou, para dezenas de milhões de brasileiros, a perspectiva de profundas mudanças sociais no país tornou-se parte do establishment. A esperança, mote de campanha, foi cedendo lugar ao conformismo e hoje, justa ou injustamente, o PT é por muitos visto como capaz de tudo pela manutenção do poder, como uma força corporativista dada a aparelhar e patrmonializar o Estado, como um símbolo máximo da corrupção.

Além dos escândalos já mencionados, colabora decisivamente para essa impressão o extremo pragmatismo como a agremiação, ao menos desde 2001, vem exercendo a chamada realpolitik, com acordos desprovidos de qualquer afinidade ideológica ou programática, e em que as plataformas originais petistas acabam sacrificadas em prol do apoio de figuras-símbolo do conservadorismo, sem que se evidencie qualquer pudor ético ou limite. Começou com Sarney e os caciques peemedebistas, “evoluiu” pra Maluf, pra Collor, pra Kassab, e agora atinge o paroxismo com o ministério da Agricultura sendo ocupado por uma líder ruralista e megalatifundiária, adversária histórica do petismo, contra quem pesam acusações que vão de desmatamento a exploração de trabalho escravo.



Alianças elásticas
Para piorar, essa estratégia das alianças sem critério soa cada vez mais ineficaz, já que se tem com frequência a impressão de que o PT, através de tais acordos, adota uma agenda conservadora em troca de nada. Pois, a despeito da alegada maioria que lhe assegurariam as “bases aliadas”, vira e mexe o partido está sendo acossado ou, nas ocasiões mais importantes, sofre derrotas históricas no parlamento – como na votação do ICMS, na era Lula, ou a recente vitória de Eduardo Cunha (PMDB/RJ) para a presidência da Câmara, na era Dilma.

Por fim, para evitar a ebulição interna que tais alianças invariavelmente provocavam, o PT foi pouco a pouco perdendo duas de suas mais admiráveis características: a interlocução direta com a sociedade, notadamente no que diz respeito aos movimentos sociais; e a democracia interna, que muitas vezes incluía choques desgastantes mas, em compensação, trazia legitimidade às suas decisões, debatidas e reformatadas até a obtenção de um consenso. Hoje, nesse quesito, o partido lembra o PRI mexicano, em que os candidatos são escolhidos à base do dedazo, com Lula determinando a cada eleição quais os “postes” que irão concorrer nas eleições, enquanto a militância bovinamente acata.



O álibi tucano
Pode-se argumentar – como os militantes fazem de forma recorrente, qualquer que seja o assunto – que no PSDB também é assim, com um grupo de caciques em torno de uma garrafa de vinho - francês, naturalmente - decidindo o futuro da agremiação. Porém, o que essa (e as demais) comparação com os tucanos dissimula é que o PT se apresentou na vida política brasileira como uma forma de superação do peessedebismo, uma alternativa melhor, e não como um partido que faz das práticas do PSDB um álibi para incorrer em práticas semelhantes - ou iguais.

Mas o que foi exposto acima não cobre toda a história do PT, dizendo respeito a desdobramentos dos últimos 12 anos, período em que o partido deixou de ser estilingue e virou janela, ocupando a Presidência da República. Seria injusto, é claro, formar um juízo de valor acerca do PT a partir de seu pior momento, de sua pior crise. Por outro lado, deixar de considerar o grau de deteriozação alcançado neste momento pelo partido seria negligenciar os efeitos últimos de suas opções ao longo do tempo, o impasse em que ora se encontra e o leque restrito de perspectivas disponíveis.



Novidade na politica
O Partido dos Trabalhadores, tal como surgido da confluência da ação do operariado do ABC capitaneado por Lula, de jovens lideranças da esquerda católica e de intelectuais, tanto acadêmicos (como Florestan Fernandes), quanto do mundo (como Carlito Maia) representou uma lufada de renovação no cenário totalitário e bipartide da ditadura, em distensão. Mas a novidade não estava desprovida de polêmicas: a suspeita de que seria instrumentalizado pelos militares para rachar a esquerda – como de fato viria a ocorrer, destacadamente nas eleições presidenciais de 1989 – vinha tanto dos comunistas quanto da oposição moderada, então representada pelo MDB.

Mas, após quase duas décadas de ditadura, em que a política oficial se limitava, como dizem maldosamente alguns, às querelas entre o “partido do 'sim' e o partido do 'sim, senhor'”, o PT do início dos anos 80 fascinava, com suas bandeiras vermelhas, seu lider operário de barba desgrenhada, rouquenho e sem papas na língua (em franca desarmonia como mundo dos generais carrancudos e políticos de fala polida e ternos mal cortados), seus broches de estrelinha, que – atenção para a penetração incipiente na juventude de classe média - as meninas dos centros acadêmicos vendiam para ajudar o partido.



Um vibrante começo
As primeiras vitórias eleitorais do PT - Maria Luiza Fontenelle em Fortaleza, Telma de Souza em Santos, Luiza Erundina em São Paulo - têm em comum o fato de corroborarem o partido como uma força à esquerda, voltada prioritariamente ao social, e de serem abruptamente descontinuadas graças à ação tanto da mídia corporativa (em um tempo em que não havia internet para fazer um contraponto) quanto dos grupos internos do partido, em um período de intensas, às vezes excessivas e contraproducentes disputas.

Erundina, sobretudo, comandou um governo cujo desempenho em áreas essenciais da administração – tais como Educação, Saúde, Transortes, Cultura – não pode ser considerada menos do que brilhante. E com um diferencial até então inédito (e jamais reproduzido em igual volume): incluindo, de forma massiva e sem exceção, as populações periféricas da cidade entre as beneficiárias da ação do poder público (aqui, um artigo detalhado sobre o que foi a prefeitura Erundina). No entanto, além de implacavelmente atacada pela mídia e, ao final, boicotada pelo partido graças a picuinhas internas, acabou sendo cristianizada pelo próprio PT no processo de reeleição.



A ascensão de Lula
Em um país escangalhado, recém-saído de uma ditadura militar e do toma-lá-dá-cá generalizado da era Sarney, com seus planos econômicos tão miraculosos quanto fugazes, a ascensão de um partido novo de esquerda, agora com alguma experiência administrativa e com um líder por demais carismático era mais do que previsível.

No entanto, as elites e as demais forças conservadoras sabiam que uma derrota para a esquerda nas eleições presidenciais de 1989, fosse para o petismo ou o brizolismo, representaria uma perda repentina de poder, e por um período incalculável. Assim, o pleito, ao mesmo tempo que se caracterizou como as eleições que alçaram Lula à posição de candidato competitivo e líder da esquerda, apoiado por um partido de massas, capaz de botar milhões nas ruas empunhando bandeiras vermelhas, por outro lado demarcarou o vale-tudo para derrubá-lo, numa operação que uniu mídia corporativa, marketing político profissional (em nível inédito no país) e golpes baixos variados.

A derrota, não obstante traumática, foi também pedagógica para o PT. Praticamente sem chances nas duas eleições presidenciais seguintes, o partido trataria, no período, de expandir suas bases e eleger o maior número de parlamentares, prefeitos e governadores, até que a oportunidade se concretizasse.



Lulinha Lá
E ela teria lugar ao final do segundo e socialmente desastroso mandato de Fernando Henrique Cardoso, ao fim do qual o país estava inadimplente externamente e com uma crise interna profunda, o Estado sucateado e o desemprego em níveis alarmantes.

O PT de 2002, porém, em muito diferia do de 1989. O poder amealhado em estados e municípios trouxera contatos e contratos, fontes de arrecadação e de compromissos; o Lula ameaçador e desgrenhado, cria das fábricas de São Bernardo, dava lugar a Lulinha Paz e Amor, criatura de barba aparada, fala macia e conciliadora e ternos bem-cortados, forjada pelo marqueteiro Duda Mendonça. As ameaças davam lugar às promessas, o discurso da auditoria da dívida externa calava-se em nome da Carta ao Povo Brasileiro (que na verdade visava acalmar o mercado financeiro). Reforma agrária, taxação de herdeiros e de fortunas, regulamentação da mídia eram preteridas – e continuariam a sê-lo nos 12 anos seguintes - em nome da conciliação nacional, que incliu um silêncio perene sobre as privatarias da era tucana.



Conformismo e desistência
Tal transformação foi aceita pela grande maioria dos petistas, um pouco porque a militância também envelhecera (não se via mais mar de bandeiras vermelhas nas ruas), outro tanto porque havia a impressão disseminada de que Lulinha Paz e Amor não passava de um truque para enganar a direita e que, uma vez no poder, o novo presidente passaria paulatinamente a colocar em prática as políticas verdaceiramente esquerdistas que o velho Lula sempre defendera.

O tempo trataria de mostrar que era pra valer: a criatura se apossara do criador. “Mas o pragmatismo funcionou e o poder fora conquistado”, repete o militante típico, que daí em diante se mostraria cada vez menos preocupado com a coesão programática e ideolólógica dos candidatos petistas, e mais interessado nas chances de ganhar as eleições, mesmo que em péssima companhia. Patrocinada por Lula, a aliança entre Haddad e Maluf para as eleições paulistanas de 2012 tornaria-se o ápice simbólico desse vale-tudo, talvez por ter sido registrada em uma foto icônica com o trio nos jardins da mansão do último.



Ápice
O governo Lula marcou o auge do petismo. O primeiro ano, e os primeiros meses do segundo ano, com Palocci na economia, repetiram o que manda a ortodoxia em termos de crise: contenção de gastos, alto superávit primário, câmbio livre. “O governo preferiu conter a subida dos precos pelo caminho ortodoxo, aprofundando as receitas neoliberais, como foi o caso da combinação de corte no gasto publico e aumento de juros em 2003”, define André Singer.

Nada que, nem de longe, recenda a esquerda ou difira do receituário adotado por FHC, com um agravante: a assimilação e reprodução acrítica das políticas ortodoxas tiram do PT a capacidade de construir, na esfera econômica, uma narrativa alternativa àquela imposta pelo neoliberalismo - cujo tripé ortodoxo ele adota afetando constrangimento, mas jamais renega (como fazia durante toda a sua história pregressa). Com a retomada das privatizações, que viria a ser disseminada na era Dilma, tal interdito se consolida.

Mas, males que vêm para o bem, a ameaça, institucional e eleitoral, representada pela crise do “Mensalão” obrigaria Lula a agir e a apostar em uma política de amplificação exponencial da securidade socioeconômica via Bolsa Família combinada a prioridade À criação de empregos e à expansão do crédito, com acelerada inclusão das classes D e E.





Saída para cima
Eureca! Estava criado um modelo em que, alegadamente e enquanto o cenário internacional,com commodities em alta, permitiu, todos ganhariam. Estatisticamente, está provado que os ganhos foram muito maiores no topo e na base da pirâmide, ou seja, para os ricos e os pobres, do que para os estratos médios e médios-altos, mas, seja como for, o país vivia uma sitação inédita, de prosperidade com inclusão social. Esta viria a ser – e é até hoje - o grande legado positivo do PT no poder: a conscientização da importância de erradicação da miséria e de diminuição substantiva da pobreza. Nenhum candidato presidencial que queira vencer pode, depois disso, pensar em simplesmente abandonar o Bolsa Família sem garantir um outro mecanismo de securidade socioeconômica.

Além disso, a sensação era de que o Brasil despontara, se tornara um player mundial, com uma ativa política Sul-Sul, representantes ascendendo a postos-chave dos organismos internacionais e a comemorada conquista de eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Na área cultural, o governo Lula se destacaria na área cultural, com os pontos de cultura e as brihantes gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira. Para completar, a descoberta de vultosas reservas de petróleo parecia confirmar a boa estrela de Lula e predizer um futuro faustoso para o país.



Fim de uma era
Com uma aprovação recorde para um presidente após dois mandatos, Lula deixou o governo no ápice. Mas que, como costuma acontecer com os auges, trazia em seu interior o germe de sua decaida. Esta seria representada, sobretudo, por quatro fatores:

  1. A economia dependente de um modelo de desenvolvimento arcaico e antiecológico, de expansão limitada, pois baseado no consumo de bens duráveis;
  1. A forma acrítica como, em suas práticas e alianças políticas, o governo se entregou ao pragmatismo aideológico, que enfraquece partidos e linhas programáticas e de onde derivam os grandes escândalos de corrupção nos quais se envolveu, com alto custo para sua imagem;

  2. A ausência de planos e políticas estruturadas a médio e longo prazos. Mesmo após 12 anos no poder, a improvisação cotidiana segue sendo a tônica, com áreas essenciais como Educação, saúde e cultura sendo submetidas aos humores e aos contingenciamentos sazonais, com eventuais avanços e retrocessos, mas sem continuidade e metas a curto, médio e longo prazos. A expansão das universidades exemplifica o processo: dobra-se o número de matrículas na graduação (o que é, a princípio, positivo), mas, sem o  investimento correspondente em professores, bibliotecas, laboratórios e equipamentos, a consequência é a queda brutal da qualidade do ensino e da pesquisa, com risco de sucateamento da universidade pública a médio prazo.
  1. A redução substancial da democracia interna no partido, somado à abrupta diminuição dos canais de diálogo entre governo, partido e sociedade.


Sucessora polêmica
Mas isso só se faria plenamente visível anos após o PT lograr um feito que seu rival tucano jamais conseguiu: eleger, pela terceira vez consecutiva, um(a) presidente da República – e a primeira mulher no cargo. Uma escolha solitária e autoritária de Lula, sem o crivo da democracia interna, que recaiu sobre uma ministra especializada em energia e cuja alegada capacidade gerencial foi ressaltada na campanha (quatro anos depois, a alegada expert, após estripulias populistas eleitoreiras com a conta de luz, ressuscitaria o temor de um apagão energético de grandes proporções). Mas ao final do governo Lula, sua escolha como candidata embora polêmica, pareceu inescapável, como observa a jornalista Denise Queiroz: 
Para qualquer conhecedor e observador da política, parecia um despropósito que uma pessoa que nunca havia disputado qualquer cargo pudesse ser eleita presidente do país. Mesmo no círculo dos cartolas do PT a escolha de Lula não foi bem recebida. Mas a verdade é que o partido havia descuidado de formar novos quadros políticos e as chances de qualquer outro nome seriam mínimas.



Dilma: direita, volver!
O governo Dilma recebeu de Lula um país em muito melhores condições do que o país que Lula recebera de FHC. Com maior apoio parlamentar e a oposição perplexa, desarticulada, tinha condições objetivas de implementar as políticas que julgasse necessárias, inclusive a regulamentação da mídia, que Franklin Martins deixara pronta para ser executada. Mas, contrariando todas as expectativas, ao invés de aprofundar conquistas e demarcar ideologicamente território, seu mandato foi caracterizado desde o início por uma tentativa de expansão da hegemonia eleitoral rumo à direita, seja esta representada pela mídia corporativa ou por partidos e políticos os mais retrógrados.

Nesse processo, passaria, pouco a pouco, a tornar rotineiras – e não só no campo econômico – práticas do pior conservadorismo, como a falta de diálogo, o autoritarismo, o desrespeito ao meio ambiente, às populações indígenas, aos DHs. A truculência foi a tônica na relação com movimentos contestatórios e com o funcionalismo federal. Um exemplo cabal disso foi o tratamento brutal dispensado aos professores universitários em 2012, recusando o dialogo, acossando-os, boicotando-os, procurando ludibriá-los com a criação de um sindicato pelego, espancando-os em frente ao MEC - tratamento que acabaria por gerar a mais longa greve da categoria em sua história.

A privatização do Pré-Sal do campo de Libras, traindo compromisso gravado em campanha, marca um momento em que, até para os mais resistentes, deixa de ser possível acreditar que a administração Dilma se tratasse de um governo de centroesquerda.



Cavalo de Troia
Para piorar, a Copa do Mundo, que no governo Lula parecera uma conquista, revela-se um imenso problema para o governo, que apela à privatização desmedida para entregar as obras de acordo com o cronograma, enquanto promove remoções forçadas e mente à população que não haveria dinheiro público no evento. Ante a combinação de renúncia total a uma plataforma de esquerda e autoritarismo incompatível com democracia, Vladimir Safatle escreve um artigo em que decreta: “O governo Dilma acabou”.

O povo brasileiro, aparentemente alheio à politica, demonstra que sua capacidade de tolerância chegara ao fim e resolve dar um basta: os protestos se espalham como um rastilho pelo país, em cidades grandes, medias e pequenas. A reação de Dilma é fazer um teatro sobre a votação urgente da reforma política – que o PT empurrrara com a barriga por 10 anos – e promessas vãs sobre melhoria da mobilidade urbana e criação de novos canais de democracia direta no PT. Nada disso era pra valer: enquanto ganhava tempo, organiza-se a repressão, que logo se mostraria brutal, com as PMs estaduais apoiadas pela Força Nacional arregimentada pelo ministro Cardozo. O saldo: hoje o Brasil tem ao menos 28 presos políticos cujo crime é exercer o direito constitucional à manifestação pública.




Progressismo” chapa-branca
O petismo não foi até hoje capaz de dimensionar e compreender a importância das jornadas de junho, a qual aplicou a costumeira tática da desqualificação, valendo-se de teorias conspiratórias que culpam desde os partidos menores de esquerda até a CIA, além da mídia, é claro. A delação de manifestantes para a polícia e o apoio à repressão brutal dos jovens que protestavam marca o ponto mais baixo da ação política dessa militância.
A partir desse momento se torna cada vez mais inegável a transformação do petismo em uma seita, em que um fanatismo passional se sobrepõe aos fatos e à razão. Ao passo que, por um lado, a crítica ao retrocesso patrocinado pelo governo Dilma vai ganhando adesão e densidade fora dos círculos petistas, por outro, os chamados “blogueiros progressistas” se consolidam como representantes não oficiais do petismo chapa branca, autênticos cães de guarda a serviço não dos interesses do país, mas do partido, faça este o que fizer.



PIG, desculpa multiuso
Disso deriva o hábito de se referir à mídia como PIG (Partido da Imprensa Golpista), rotulação que, ao assumir sempre e a priori a prática de uma grave violação ética por parte da mídia, antecipa, influencia e minimiza a importância efetiva da análise, comprometendo seu rigor; e que, ao desprezar o contexto de cada fato, concede um eterno, gratuito e injustificado álibi ao governo. Autor de um dos melhores textos sobre as transformações na militância do PT após a chegada ao poder, o cientista político Aldo Fornazieri considera tal processo uma das principais “rotas de fuga” do “neopetismo” (a outra seria a justificação da corrupção), por ele assim descrito:
Consiste na sustentação da tese de que todas as acusações não passam de uma conspiração comandada pela grande mídia – o chamado Partido da Imprensa Golpista (PIG). Qualquer crítica dirigida ao partido ou ao governo, mesmo que ela venha de petistas ou de eleitores do partido, é desqualificada com adjetivos e identificada como uma ação do PIG (…) A ação penal 470 (mensalão) é uma perseguição, o governo Dilma não errou na condução da economia, a Petrobras não foi dilapidada e assaltada por grupos corruptos etc.


A desqualificação como método
No bojo desse processo, a autocrítica e a crítica interna, essenciais para fazer qualquer governo corrigir rumos e avançar, virtualmente desaparecem em prol de um circulo vicioso em que blogueiros e militantes virtuais fazem o papel de acólitos, de “yes men” prontos a defender o governo, seja qual for a situação, mesmo que esta se revele claramente contrária aos interesses da maioria do povo e dos desvalidos. Não é preciso se estender muito para verificar o quão contraproducente tal estratégia resulta.

Além disso, desqualificação pasa a ser um conceito-chave, utilizado contra qualquer pessoa ou entidade que ouse se opor a essa omissão acrítica. Vira a regra, em níveis diversos: como já vimos, o que era, no mais das vezes, uma justa crítica contra a mídia torna-se uma muleta argumentativa visando desqualificar qualquer informação negativa advinda de um órgão de mídia (embora estes sejam rotineiramente citados quando as notícias são positivas). Sob o comando de um avatar virtual oculto sob pseudônimo e fotinho de Che Guevara, a tática precípua ante as críticas passa a ser desqualificar agressivamente o crítico, do mero palpiteiro ao mais embasado; até no julgamento do “Mensalão”, ao invés de uma defesa com argumentação jurídica, a desqualificação foi a tática: mesmo com 9 dos 13 nomes que tomaram parte do julgamento tendo sido indicados por Lula ou por Dilma, prevaleceram os ataques desquakificadores, não raro de cunho racista, contra Joaquim Barbosa.



Dilma I: terra arrasada
Havia um clima palpável de desilusão ao final do governo Dilma, mesmo entre velhos aliados: “Os avanços socioeconômicos coincidiram com o retrocesso político. Em 12 anos de governo, o PT despolitizou a nação”, assinala Frei Betto, petista de primeira hora.

Há agraventes para esse retrocesso, pois ele se deu por não priorizar o interesse público e as demandas urgentes da sociedade em relação aos dos bancos e entidades financeiras, por retomar sem delongas as anteriormente tão criticadas privatizações (ou concessões, ou o nome que a novilíngua da vez adotar), por não mostrar-se efetivo no combate à corrução (como o Petrolão deixa claro), por não priorizar efetivamente, senão com palavras, a Educação, por não regulamentar a mídia nem oferecer aos cidadãos e cidadãs do país meios de aprimoramento de sua cultura política.

Tudo isso somado forma, na opinião deste blogueiro, o pior legado que o petismo deixa ao país: a desideologização, a má formação política, a confusão entre esquerda e direita, entre governo e Estado, entre Estado e religião, entre público e privado, entre cultura e entretenimento, entre democracia e autoritarismo. Em termos de democracia política, os até agora 12 anos de PT marcam, por isso, um retrocesso inaceitável: não só deixamos de avançar o tanto que necessitamos, mas regredimos, e muito.



Por debaixo dos panos
Mas mesmo nos próprios termos axiológicos do petismo o retrocesso é evidente. As relativamente baixas taxas de desemprego (se comparadas às do tempo de FHC ou às dos países europeus mais afetados pela crise), têm relevância como amostras quantitativas, mas o aspecto qualitativo que ocultam nunca foi revelado - e muito menos debatido - com a sociedade. Se o fosse, ficaria claro que a imensa maioria dos postos de trabalho disponíveis é de baixa ou baixíssima remuneração, e que o mercado de trabalho, no Brasil petista, passa por um fenômeno atípico e perverso, em que  quanto mais qualificada a pessoa, mais risco ela corre de não conseguir um emprego de nível condizente com sua formação.
 
Tanto a anunciada erradicação da miséria (utilizando dados de 2010) quanto o combate à pobreza, com ascensão das classes D e E, retrocederam nos dois últimos anos do governo Dilma. Cerca de 45 milhões de pessoas chegaram a ser beneficiárias dos programa de seguridade socioeconômica até 2010, sendo que quase a metade disso teria saído da miséria (ou seja, recebe mais de R$70 por mês, definição por si arbitrária). Porém, de lá para cá, como o próprio Ipea reconheceu, além do ritmo muito menor de inclusão de novos beneficiados, a inflação, combinada ao não-repasse aos valores dos benefícios, fez com que ao menos 4 milhões de cidadãos tenham retornado à condição de miseráveis, e que um número igualmente significativo tenha retornado da classe C para a D. São, como apontou um colunista em matéria recente, os que sentirão mais na carne os efeitos da combinação ora vigente de alta inflação com restrição ao crédito serão justamente os pobres e miseráveis outrora resgatados pelo PT.

O que impede uma radiografia exata do grau de retrocesso econômico enfrentado pelas classes mais desabastecidas é a retomada, no governo Dilma, de uma prática politica típica da ditadura em seu pior momento: a maquiagem e o adiamento de dados oficiais. Enquanto as democracias desenvolvidas avançam rumo a uma maior transparência dos atos públicos, no Brasil funcionários do IGBE denunciaram pressões para que, durante as eleições, atrasassem a divulgação de relatóricos oficiais e modificassem critérios de medição de índices. No que concerne à inflação, estes foram manipulados de todas as formas durante a gestão dilmista, como meio de fazer, na marra, ficarem dentro da meta estabelecida. A mentira, a maquiagem e o ocultamento tornaram-se práticas de governo na era Dilma, e seriam reproduzidas sem o mínimo escrúpulo na campanha à reeleição.



O marketing do vale-tudo
A já referida estratégia desqualificadora a qual o neopetismo emprestou do jornalismo neocon e transformou em arma prioritária de luta política assomou ao papel principal do marketing político do partido durante a campanha para reeleição de Dilma. Uma campanha que logo viria a ser lembrada por promover sem pudor a dissociação entre verdade e fatos.

Aética e mentirosa, incluiu, segundo dezenas de denúncias, o uso de carros de som espalhados por pequenas e médias cidades do Nordeste para espalhar o boato de que o Bolsa Família seria cortado. Manifesto-se, ainda, de forma novamente falseadora, nos ataques pessoais contra Marina Silva e de Aécio Neves, que tiveram suas falas deliberadamente distorcidas. A campanha de 2014, a cargo de João Santana, marca o pior momento do PT, ao se igualar aos partidos usuários das táticas eleitorais mais sujas, que denotam um profundo desrespeito pelos demais candidatos, pelo sistema eleitoral e pela própria democracia.



Fundo do poço
Porém, o início do governo Dilma conseguiu ir ainda mais baixo, traindo logo de cara o discurso eleitoral e atacando direitos trabalhistas e previdenciários básicos - o que prometera não fazer durante a campanha. Para completar, Dilma acabaria de perfazer a guinada à direita do PT, colocando um economista ortodoxo oriundo da Escola de Chicago para gerir a economia, numa admissão não oficial (e jamais autoproclamada) de que suas politicas econômicas falharam, num gesto indisfarçável de derrota que torna as práticas econômicas petistas indistinguíveis das de seu rival tucano.

Das tantas contradições do "modelo" político-econômico adotado pelo petismo em seus 12 anos de governo, talvez a mais danosa diga respeito ao modo como, em um partido que se autointitula de esquerda, a crítica ao capitalismo deu lugar a uma aderência total e acrítica ao consumismo e ao desenvolvimentismo predatório como propulsores da economia. Profundamente retrógrada, numa era em que a esquerda se define não apenas por usa posição em relação ao capitalismo, mas também em termos biopolíticos, tal visão, já caramente visível no modelo em que, alegadamente “todos ganham” da Era Lula, iria se aprofundar muito no governo Dilma. Cujo futuro, assim como o do PT, é uma grande incógnita. Dado o retrospecto acima, não parece haver nenhuma razão para otimismo. Ao menos para a esquerda.



(Imagem retirada daqui)


2 comentários:

AF Sturt Silva disse...

Maurício, vc militou no velho e bom PT dos anos 80?

Unknown disse...

Stut,

Tenho um temperamento crítico que não me permite militar em partidos.

Mas vi com muita simpatia - e dei vários votos - para o "velho e bom" PT dos anos 80.


Um abraço,
Mauricio.